Estou de viagem. Cheguei à tarde em Ouro Preto – os emails estão acumulados, mas o mundo não vai acabar por causa disso. Tem muita coisa a ser comentada – peço a paciência dos meus leitores. Se o bom Deus permitir, haverá tempo. Por enquanto, estava perambulando pela bela antiga capital mineira.
Ladeiras e ruas de paralelepípedos; somente amanhã vou poder ver as igrejas e os museus famosos, porque hoje, segunda-feira, estavam fechados. Mas andei um pouco por aí, de bobeira, sem pressa; acostumando-me com a cidade. Aliás, preciso com uma certa urgência providenciar uma câmera fotográfica para as minhas andanças, porque dá vontade de mostrar as coisas que vi, para as quais as palavras são sempre limitadas.
Já hoje encontrei uma pequena preciosidade: o Museu do Oratório, próximo à Praça Tiradentes. Uma coisa simples, um objetivo bem específico: não é “arte sacra”, nem “materiais litúrgicos”, nem “devoção popular”, nem nada disso: oratórios. Dos mais simples, levados pelo povo em viagens ou pendurados aos pescoços dos esmoleres, até os grandes e bem trabalhados que serviam para uso comunitário nas fazendas. Em quase todas as peças, um mesmo comentário: o valor dos oratórios não estava tanto no invólucro, e sim no “santo de devoção” que ele guardava. Muitos eram até mesmo rústicos por fora, mas o interior esculpido, pintado e bem decorado revelava a importância dada às imagens guardadas.
Havia diversos. Oratórios de escravos, de religiosos, de viajantes; oratórios para serem pendurados ao pescoço como colares, ou pequenos para serem guardados nos bolsos. De madeira, de metal, envoltos em cúpulas de vidro. Santo Antônio, Santo Expedito, São Sebastião, Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado, Sant’Anna, a Virgem Santíssima. Por fora, eram muito diferentes – por dentro, sempre as imagens dos santos.
E que excelente catequese: o exterior só tem importância na medida em que serve para guardar o interior. Se o invólucro deve ser ornado – e, sempre que possível, ele deve -, é em honra do santo de devoção que ele armazena. A religiosidade se aprende no dia-a-dia, na família, nas fazendas, nas ruas (aliás, um pequeno e antigo livro de “orações para cristãos” trazia uma curiosa prece pedindo “ouro para guardar, prata para gastar e cobre para dar aos pobres”). A devoção está entrelaçada em todos os aspectos da vida: encontra-se um viajante com o seu oratório no lombo do burro, dá-se esmola a um pobre com um oratório no pescoço, a novena em família é rezada diante do grande oratório da sala, e as orações da noite são feitas diante do oratório particular que fica no quarto de dormir.
Saio do museu e ando um pouco pelas ruas antigas. Em um certo momento, o relevo acidentado da cidade transforma uma rua em uma pequena ponte de pedra, embaixo da qual corre um filete de água. No meio da ponte, um banco de pedra incrustado na murada, encimado por uma grande cruz. Sento sob esta gritante afronta à laicidade do Estado e ponho-me a cismar em outras eras, com uma nostalgia de tempos em que não vivi, e sinto uma tristeza pelos tempos que vivemos e – mais ainda – pelos que virão. A cruz no meio da rua permanece como um testemunho do tempo em que o povo carregava oratórios; e temo que a geração dos nossos dias não deixe como legado ao futuro senão estradas de asfalto e bolas de golfe perdidas.