Um leitor publicou no Deus lo Vult! hoje de manhã o link para um texto do Cum ex Apostolatus Officio onde são tecidas críticas bem ásperas a um novo texto do Papa Bento XVI ao qual eu próprio já fizera referência recente aqui no blog. A análise que o Sandro de Pontes faz é radicalmente diferente da minha; sobre o assunto, vale escrever alguns parágrafos.
A acusação principal do texto é a de que o Papa teria confessado «que o Vaticano II realmente não possui a mesma doutrina que foi ensinada desde a revolução francesa até Pio XII» no tocante à liberdade religiosa. Para fins de organização das idéias, o texto do Papa em litígio é este aqui. Sobre ele, vale dizer quanto segue:
– Como eu já tive a oportunidade de dissertar em outras ocasiões, para mim parece claro que a doutrina exposta na Dignitatis Humanae tem por objeto o (por falta de termo melhor) “Estado Natural”, i.e., o Estado considerado em suas formas mais básicas e primitivas, e não se refere (a não ser en passant) ao Estado Confessional.
– Ao contrário, a totalidade dos textos do Magistério pré-conciliar que versam sobre as relações entre a Igreja e o Estado tem diante dos olhos a realidade histórica do Estado Católico e, portanto, trata sempre sobre um tipo específico de Estado, e não sobre “o Estado em si”.
– Parece-me óbvio que, embora exista o «dever moral» – lembrado pela DH! – «que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo», é fato inconteste que nem todos os homens e sociedades cumprem com este dever e, portanto, existe a realidade factual dos Estados que não reconhecem a Igreja Católica como Religião Verdadeira.
– Assim como até mesmo os homens que não são católicos estão sujeitos aos ditames do Direito Natural, do mesmo modo também os Estados que não são católicos precisam se sujeitar a alguns princípios naturais (mas não naturalistas) da organização das sociedades. Estes princípios obviamente precisam ser mais gerais do que aqueles pelos quais se deve pautar o Estado Confessional Católico. E são estes os princípios que o Magistério do século XX passou a desenvolver (de modo particular na Dignitatis Humanae).
– Por definição, o mais geral é mais abrangente do que o mais específico e, portanto, o que é exposto na DH com relação aos deveres do Estado em matéria religiosa é, sim, realmente, mais amplo e genérico do que o que foi dito por outros Papas com relação aos deveres do Estado Católico. Isto é óbvio e não poderia ser de maneira diferente. Dizer que os princípios específicos “não são mais válidos” (ou qualquer coisa do tipo) porque foi feita (aliás pela primeira vez) uma exposição dos princípios gerais é uma maneira equivocada de interpretar um ensinamento da Igreja que, por definição, só faz sentido se for entendido de maneira orgânica e à luz da totalidade do Magistério.
– Como o “Estado Natural” é um fenômeno moderno, parece-me natural que os documentos do Magistério mais antigos não o tenham abordado diretamente; com o seu surgimento, parece-me igualmente natural que fosse necessário à Igreja debruçar-Se sobre ele.
– Assim, a “insuficiência” da doutrina precedente à qual se refere o Papa decorre simplesmente da (virtual) inexistência deste “Estado Natural” antes do advento do fenômeno do Estado Moderno, da mesma maneira que se poderia falar de uma “insuficiência” da doutrina sobre os juros antes do desenvolvimento da economia ou de uma “insuficiência” da doutrina sobre o respeito devido aos embriões humanos antes do advento da embriologia. Não existe nenhum texto do “magistério pré-conciliar” que trate especificamente dos Estados não-católicos, sendo possível encontrar sobre o assunto apenas determinações esparsas.
– Mesmo entre estes ensinamentos esparsos que é possível recolher nos textos do Magistério pré-conciliar, o que se tem é uma doutrina que, longe de contradizer o ensinamento moderno, vai harmonicamente ao encontro daquilo que se diz na Dignitatis Humanae. Por exemplo, Pio XII na Ci Riesce:
Uma outra questão, essencialmente diferente, é esta: pode-se estabelecer como norma em uma comunidade de estados – ao menos em certas circunstâncias – que o livre exercício de uma prática religiosa ou moral que possua validade em um dos estados-membros não seja prejudicado em todo o território da comunidade de nações por leis nacionais ou medidas coercitivas? Em outras palavras, a questão que se coloca é se nestas circunstâncias [o] “non impedire” ou a tolerância é permitido e se, por conseguinte, a repressão positiva nem sempre é um dever.
Aduzamos a autoridade de Deus. Poderia Deus, embora Lhe fosse possível e fácil reprimir o erro e o desvio moral, em alguns casos escolher o “non impedire” sem com isso contradizer a Sua infinita perfeição? Seria possível que em certas circunstâncias Ele não desse aos homens nenhum mandamento, não impusesse nenhum dever e nem mesmo comunicasse o direito de impedir ou reprimir o que é errôneo e falso? Um olhar sobre as coisas como elas são nos dá [sobre isso] uma resposta afirmativa. A realidade nos mostra que o erro e o pecado existem no mundo em grande medida. Deus os reprova, mas Ele permite que existam. Por conseguinte, a afirmação “o erro religioso e moral deve sempre ser impedido, quando é possível, porque a tolerância deles é imoral em si mesma” não é válida absoluta e incondicionalmente.
Além disso, Deus nem mesmo deu à autoridade humana tal absoluto e universal mandato em matéria de fé e moralidade. Semelhante ordem é desconhecida das convicções comuns da humanidade, da consciência cristã, das fontes da Revelação e da prática da Igreja. Omitindo aqui outros textos escriturísticos que poderiam ser aduzidos para demonstrar este argumento, Cristo na parábola do joio [e do trigo] dá o seguinte conselho: deixe o joio crescer no campo do mundo junto com a boa semente [do trigo], em vistas da colheita (cf. Mt 13, 24-30). O dever de reprimir o erro moral e religioso não pode, assim, ser uma norma última de ação. Ele deve ser subordinado a normas maiores e mais gerais, que em algumas circunstâncias permitem, e até mesmo talvez pareçam indicar como uma melhor política, a tolerância aos erros a fim de promover um bem maior.
Pio XII, Ci Riesce, V
– Nada exige que estas “algumas circunstâncias” sejam sempre uma exceção histórica. É perfeitamente possível e razoável defender que a modernidade, infestada de Estados não-católicos e hostis à Igreja em um mundo globalizado, constitui-se uma dessas “circunstâncias” nas quais a tolerância aos erros é não somente legítima como pode inclusive ser a melhor política a ser adotada.
– Não existe, portanto, nenhuma contradição entre a doutrina tradicional das relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade religiosa pregada pela Dignitatis Humanae. Aquela se refere ao Estado Católico e, esta, ao Estado considerado em sua “forma natural”. Aquela estabelece a melhor maneira de se cumprir um dever moral e, esta, orientações práticas a serem exercidas em circunstâncias específicas.
– Por fim, é importante notar – como lembrou o Sandro de Pontes em seu texto – que o próprio Papa Bento XVI disse, textualmente, que os Padres Conciliares «não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova». Assim sendo, a interpretação de que ele teria “confessado” precisamente aquilo que nega no seu próprio texto com veemência é no mínimo temerária, e não deveria (ao menos por uma questão de respeito intelectual ao escritor cujo texto se está analisando) ser tão prontamente assumida como se fosse um fato auto-evidente. Ao contrário, a prudência exige que se esgotem primeiro as outras alternativas possíveis (mesmo que não sejam as mais simples ou mais imediatas) antes de se acusar alguém de contraditório ou mentiroso.