Certas notícias nos deixam perplexos. Foi o caso de um “falso padre”, membro da Igreja Católica Apostólica Brasileira Missionária [p.s.: ver “este formal comunicado”], que durante dois anos atuou em uma das maiores paróquias da região do Morumbi, a de São Pedro e São Paulo, sem que ninguém parecesse se preocupar com isso.
Durante este tempo, o pe. José Francisco de Lima celebrou missas, batizados, confissões e casamentos. A primeira pergunta feita pelos fiéis quando souberem que ele não era padre católico foi a mais natural possível: e quanto à validade dos sacramentos por ele ministrados ao longo destes dois anos?
Em uma matéria veiculada hoje na Folha de São Paulo (aqui, para assinantes), foram feitas as seguintes declarações:
Validade dos sacramentos
“Todos que foram assistidos pelo ministério do falso padre […] no tocante aos sacramentos do batismo, do matrimônio e da própria penitência, podem ficar tranquilos quanto à validade porque nesse caso a boa-fé dos fiéis é contemplada e a igreja, sendo mãe solicita e benigna, supre a eficácia sacramental”, diz a nota [da Diocese de Campo Limpo].
A posição é contrária à defendida pelo padre Geraldo Martins Dias, da área de comunicação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Em entrevista à Folha na semana passada, disse que os sacramentos ministrados por falsos padres não têm validade.
Para o especialista em direito canônico e professor da PUC Edson Chagas Pacondes, a igreja tem o direito de suprir os sacramentos pois foi enganada.
Ele explica que não há problemas no batismo, que por regra é ministrado por um padre, mas pode também ser dado por outra pessoa em situações excepcionais. Já no matrimônio, os ministros são os próprios noivos, e o padre é uma testemunha qualificada.
O perdão e a eucaristia é que não poderiam ser ministrados por alguém que não tenha recebido o sacramento da ordem. Teoricamente, não seriam válidos, mas a igreja tem o poder de validá-los, afirma Pacondes.
Em resumo, um verdadeiro festival de informações desencontradas. Como cada Sacramento é um Sacramento, separemos as coisas para melhor as entender.
1. Batismo
O ministro do Batismo é qualquer pessoa – até mesmo um herege ou um ateu – que derrame água na cabeça do batizando e pronuncie corretamente a fórmula “eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Portanto, os batismos ministrados pelo pe. José Francisco são, em princípio, válidos sem maiores problemas.
2. Eucaristia
Para a Eucaristia, exige-se um sacerdote ordenado. Não sei se o pe. José Francisco é validamente ordenado; caso ele seja, as missas por ele celebradas foram válidas porém ilícitas e, caso não seja, foram inválidas. No entanto, os fiéis que, em boa fé, assistiram a missa dominical celebrada pelo padre da Igreja Brasileira Missionária não cometeram pecado, mesmo que a missa tenha sido inválida, uma vez que não tinham como adivinhar que o sacerdote que estava naquela paróquia era um impostor. Quanto a isso, também não há maiores problemas.
3. Confissão
Aqui a coisa começa a ficar complicada. Para a validade do Sacramento da Confissão, exige-se não apenas a potestade de perdoar pecados (que possuem apenas os ministros ordenados – os leigos, não) como também a jurisdição para fazê-lo.
Se o pe. José Francisco é sacerdote validamente ordenado (coisa que não sei), as confissões feitas a ele seriam inválidas por ausência de jurisdição. Entretanto, existe um princípio do Direito Canônico de suplência da Igreja – Supplet Ecclesia – que diz que, no erro comum de fato ou de direito, a Igreja supre a falta de jurisdição do sacerdote, tornando válido o Sacramento que, sem isso, não o seria, em benefício do penitente que não tem culpa da confusão toda. Em poucas palavras: em sendo, o falso padre, sacerdote validamente ordenado, e em não sabendo os fiéis que ele não possuía jurisdição, o Sacramento é válido pela aplicação do princípio acima mencionado. Peca o sacerdote por estar fazendo o que não deve, mas os fiéis recebem a graça sacramental.
Se o pe. José Francisco não for sacerdote ordenado, não existe suplência da Igreja e, portanto, as Confissões são inválidas mesmo. Em atenção à ignorância e à boa vontade do fiel, é possível que Deus conceda a Graça do perdão extra-sacramentalmente em casos assim; em todo o caso, sem dúvidas não cometem “pecados adicionais” quem se confessou com o falso padre e, por isso, julgou de boa fé estar confessado e em estado de Graça. Se eu fosse perguntado, recomendaria repetir a(s) confissão(ões) com um sacerdote verdadeiro assim que seja possível.
4. Matrimônio
Para católicos, a validade do Matrimônio depende da forma canônica, ou seja, da presença de uma testemunha qualificada da Igreja. O falso padre não é uma testemunha qualificada e, por isso, os Matrimônios por ele assistidos são todos inválidos, (salvo gravíssimo engano) aqui não cabendo suplência.
Aqui não importa se o falso padre é sacerdote ordenado ou não; não sendo católico, não é testemunha qualificada e, portanto, não pode receber o consentimento dos noivos.
Não pecam os católicos que, de boa fé, casaram-se na presença deste padre, mas a situação precisa ser regularizada. A sanatio in radice é o ato jurídico que, no meu entender, cabe em casos assim. Salvo melhor juízo, é possível até mesmo que o bispo faça uma sanatio geral, para todos os casos (já que são todos iguais) em que há a deficiência da forma canônica por causa da irresponsabilidade e da total falta de respeito do pe. José Francisco. É possível até mesmo que o bispo já a tenha feito, sendo talvez oportuna uma consulta à Diocese para confirmar isto.
Por fim, não poderia deixar de protestar (a) contra a irresponsabilidade da paróquia, que deixou por dois anos um sujeito atender espiritualmente aos fiéis sem ser padre católico; (b) contra o próprio padre, que não teve a menor consideração com a Fé alheia e deliberadamente fingiu ser uma coisa que não era, pouco se importando com a Fé Católica ou os cânones do Direito Canônico da Igreja; e (c) contra as reportagens, que divulgaram informações malucas e desencontradas sobre o assunto, provavelmente lançando os fiéis em mais confusão do que eles já estavam com semelhantes notícias. Rezemos para que casos assim não tornem a se repetir.