E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – III (Final)

Finalmente, após a epopéia iniciada na terça e ontem continuada, qual é o resumo da ópera? Afinal de contas, e se a renúncia de Bento XVI tiver sido inválida mesmo, o que acontece?

Pois bem. De acordo com o ensino da Igreja, provavelmente é preciso sustentar que, ainda que Bento XVI tenha sido forçado a renunciar, ainda que a renúncia proferida há dois anos passados tenha sido real e verdadeiramente nula, não muda absolutamente nada e S.S. o Papa Francisco é o Vigário de Cristo gloriosamente reinante mesmo assim.

O porquê disso é simples: razões de segurança espiritual exigem que a infalibilidade da Igreja se estenda àqueles fatos que estão tão conexos com a Revelação que, sem eles, o próprio acesso à Verdade Revelada ficaria comprometido. Categoria deste «objeto secundário da infalibilidade» é a que engloba os assim chamados fatos dogmáticos (facta dogmatica), dos quais a legitimidade da eleição de um Papa é provavelmente o exemplo por antonomásia.

A necessidade disso é fácil de ser vista por um exemplo. Todo mundo sabe que não pode negar a Imaculada Conceição da SSma. Virgem, posto que é dogma de Fé proclamado pelo Bem-Aventurado Papa Pio IX. No entanto, para que esse dogma tenha de fato o condão de obrigar o católico à Fé, é preciso que Pio IX tenha sido Papa verdadeiro – caso contrário, a “proclamação” ocorrida em 1854 seria tão-somente um teatro pomposo, sem a menor relevância para a vida espiritual dos católicos do orbe.

O mesmo pode ser dito com relação a qualquer outra coisa da vida da Igreja. O Magistério é a regra próxima da Fé; mas seria completamente sem sentido que se devesse obedecer o Magistério e, ao mesmo tempo, não fosse nunca possível ter certeza a respeito de se aquilo que se apresenta como o Magistério – e o Magistério Pontifício é o Magistério por excelência – é, realmente, de fato e de direito, o Magistério da Igreja Católica. A submissão às legítimas autoridades eclesiásticas seria um flatus vocis na impossibilidade prática de reconhecer tais autoridades legítimas. A regra próxima da Fé seria absurda, um mandamento impossível de ser cumprido.

Ludwig Ott assim se expressa a respeito dos fatos dogmáticos (negritos meus, itálico no original):

Al objeto secundario de la infalibilidad pertenecen: a) las conclusiones teológicas de una verdad formalmente revelada y de una verdad de razón natural; ß) los hechos históricos, de cuyo reconocimiento depende la certidumbre de una verdad revelada («facta dogmatica»).

E, em outro ponto:

Entre las verdades católicas se cuentan:

[…]

2. Los hechos dogmáticos (facta dogmatica). Por tales se entienden los hechos históricos no revelados, pero que se hallan en conexión íntima con una verdad revelada, v.g., la legitimidad de un Papa o de un concilio universal, el episcopado romano de San Pedro. En sentido más estricto se entiende por hecho dogmático el determinar si tal o cual texto concuerda o no con la doctrina de fe católica. La Iglesia no falla entonces sobre la intención subjetiva del autor, sino sobre el sentido objetivo del texto en cuestión; Dz 1350: «sensum quem verba prae se ferunt».

Não é portanto possível haver dúvidas com relação à legitimidade da eleição de um Papa. A infalibilidade da Igreja de Cristo se estende também ao resultado dos seus conclaves; pertence ao conjunto das verdades católicas crer que aquela pessoa que se apresenta como Papa é de fato o Papa da Igreja. Não fosse assim, repita-se, seria impossível ter certeza a respeito de todo o resto.

Os próprios sedevacantistas, a propósito, registre-se, dizem que a aceitação de uma pessoa por toda a Igreja como Papa faz com que ele seja Papa verdadeiro:

Sim, se a Igreja universal com unanimidade moral aceita pacificamente um homem como Papa legítimo, ele realmente deve ser um Papa legítimo. A razão disso é que o Papa é a regra próxima da fé. Os fiéis aceitam o ensinamento doutrinal do Papa e, se a Igreja inteira aceitasse uma falsa regra da fé, Cristo estaria expondo Sua Igreja ao erro, o que não pode acontecer.

John S. DALY, Bento XVI e a aceitação pacífica pela Igreja inteira, 2006,
trad. br. por F. Coelho, São Paulo, fev. 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1gg

A aceitar a argumentação que o John Daly emprega em sequência para fugir da necessidade de reconhecer o Papa como Papa – a de que os papas conciliares na verdade não gozam de “aceitação pacífica pela Igreja inteira” -, não haveria sentido em restringir a sua aplicação ao Papa Francisco. Por força de conseqüência, o mesmo teria que ser dito dos outros Papas (inclusive Bento XVI). Não se sustenta, portanto, esta espécie de “sedevacantismo restrito”, que nega a legitimidade somente ao Papa Francisco e não aos seus predecessores imediatos. Na prática, a aceitação da qual goza o Papa Francisco não é significativamente diferente – nem quantitativa nem qualitativamente – da que gozava Bento XVI ou S. João Paulo II. O murmurinho pela ilegitimidade do Papa Francisco, quer se baseie na invalidade da renúncia de Bento XVI, quer em defeitos processuais ocorridos na condução do conclave, é obra de uma minoria sinceramente inexpressiva para além dos palanques que é próprio da internet conceder a qualquer pessoa. Não é relevante. Não a ponto de valer o risco à salvação da própria alma que a insubmissão ao Romano Pontífice acarreta.

Portanto, mesmo que o Papa Bento XVI tivesse sido forçado a renunciar, mesmo que a Declaratio de 2013 não tivesse surtido efeitos jurídicos, Bento XVI teria deixado de ser Papa no dia da fumata bianca do fim do conclave que elegeu o Papa Francisco, no instante em que ele foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro e recebido como Papa pelos católicos do mundo inteiro. Isso porque a Igreja não pode ter senão um Papa, e se o homem que toda a Igreja reconhece como Papa é Papa verdadeiro, então o Papado pertence a ele e não a nenhum outro. A situação de fato sobrepõe-se à de direito e, neste caso, confere eficácia jurídica à situação que por si mesma seria ilegítima. Para que fosse diferente, o Papa legítimo precisaria reclamar o sólio petrino. Bento XVI jamais o fez.

Por fim, uma última dúvida. Na hipótese de que Bento XVI seja realmente o Papa verdadeiro, o que aconteceria se – Deus o livre! – ele viesse a morrer amanhã?

a) A Sé ficaria vacante, posto que o Papa Francisco não teria sido eleito legitimamente?

b) O Papa Francisco se tornaria imediatamente Papa, posto que o único obstáculo a que ele ocupe a Sé Apostólica é o fato de ela já se encontrar regularmente ocupada?

O primeiro caso recai no sedevacantismo clássico, sendo-lhe portanto imputável todas as críticas e dificuldades que por décadas dirigimos aos sedevacantistas. No segundo caso… então a legitimidade do governo da Igreja está atrelada à contingência biológica de morrer um ancião que tem gastado os últimos anos da vida a repetir em público que o Papa a quem é devida a submissão católica não é ele próprio, mas sim o Papa Francisco? Os que adotam semelhante tese, então, não possuem nenhuma perspectiva quanto ao futuro, estando apenas aguardando o Bispo emérito de Roma morrer para a situação da Igreja ipso facto se regularizar – é isso mesmo? Que sentido isso faz?

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I

O Rorate Coeli estampou hoje, com alarde, uma carta aberta de S. E. R. Dom Jan Pawel Lenga, bispo emérito de Karaganda (Cazaquistão), a respeito da crise da Igreja. O Fratres in Unum já a traduziu. Um dos seus pontos mais impactantes – e que consta até mesmo como subtítulo da chamada – é o que diz ser «difícil acreditar que o Papa Bento XVI tenha renunciado livremente [ao] seu ministério como sucessor de Pedro».

O problema é de ordem estritamente canônica. O Código atualmente vigente diz o seguinte:

Cân. 188 — A renúncia apresentada por medo grave, injustamente incutido, por dolo ou erro substancial ou feita simoniacamente, é inválida pelo próprio direito.

E ainda:

Cân. 332 — (…) § 2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.

O que o Direito dispõe é bastante lógico e justo: para a renúncia ser válida, ela precisa ser livre. O problema, assim, coloca-se com clareza: se o Papa Bento XVI não renunciou livremente, se ele o fez motivado por alguma espécie de medo grave, então esta sua renúncia não foi válida. Logo, ele jamais deixou de ser Papa. Logo, a Sé não ficou vacante, o Conclave foi convocado ilegitimamente e o Papa Francisco não é Papa verdadeiro, senão um usurpador.

O raciocínio parece sedutor. Os seus sucessivos passos parecem muito bem concatenados. Cada consequente parece decorrer, por exigência lógica, do seu antecedente.

No entanto, alguma coisa incomoda: a conclusão parece não estar muito bem. A seguir-lhe ferreamente, às últimas consequências, então tudo fica dependendo das disposições interiores do Papa Bento XVI naquele fatídico 11 de fevereiro. Tudo – a validade da eleição do Papa Francisco e todos os sucessivos atos de governo que se lhe seguiram, as nomeações episcopais, os consistórios, as normas canônicas promulgadas nos últimos dois anos, as canonizações, tudo – fica dependente do grau de liberdade subjetivo com o qual Bento XVI proferiu a Declaratio da Grã-Renúncia.

E isso não faz o menor sentido. Não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem, por mais importante que ele seja. Não tem lógica absolutamente nenhuma fazer a validade de tudo o que é de competência eclesiástica – por natureza visível e externo – depender de determinadas condições subjetivas que ninguém tem condições de perscrutar com exatidão. Tal seria o triunfo completo do subjetivismo. A insegurança generalizada.

Faça-se um pequeno exercício de imaginação. Imagine-se que S.S. Francisco não seja Papa. Então

i) os cardeais que ele criou não são cardeais verdadeiros e, portanto, não têm direito a voto em um eventual futuro conclave – o que, com o passar do tempo, iria fazer não só com que ele próprio não fosse Papa legítimo mas com que fosse canonicamente impossível eleger um Papa legítimo, uma vez que a Capela Sistina teria cada vez mais homens fantasiados de púrpura e cada vez menos Príncipes verdadeiros da Igreja de Cristo;

ii) os bispos que ele nomeou igualmente não têm jurisdição verdadeira sobre as suas dioceses, o que acarreta a invalidade de todos os sacramentos cujo exercício depende de jurisdição eclesiástica – i.e., os matrimônios e as confissões;

iii) os santos que ele canonizou não são santos verdadeiros e, portanto, a infalível Igreja de Deus está, pública e universalmente, prestando um falso culto a homens comuns, usurpadores da glória dos altares;

iv) etc.

É até possível arranjar subterfúgios para fugir aos pontos i) e ii) acima. Quanto ao primeiro, é possível dizer que a Sé há de ficar vacante no momento em que Bento XVI morrer – e, a partir de então, um Papa pode vir a ser eleito legitimamente, ainda que objetivamente violando (mas em boa fé) certos dispositivos de direito eclesiástico. Quanto ao segundo, bom, é sempre possível aplicar o supplet Ecclesia – e, assim, garante-se a graça sacramental aos ignorantes sem maiores dificuldades.

Mas quanto ao terceiro não dá para tergiversar. Se o Papa Francisco não é Papa, então a Igreja está prestando um falso culto a todos os santos que ele canonizou de 2013 pra cá. E a Igreja, que é infalível em Sua liturgia, simplesmente não pode prestar um culto falso. Se o fizer, Ela deixa de ser Igreja. O problema não se resume, portanto, a uma questão de a Igreja estar temporariamente acéfala – fato extremamente banal e corriqueiro. Se o Papa Francisco não fosse Papa, a Igreja Católica, a Igreja de Cristo, a Igreja visível, estaria fazendo, hoje mesmo, uma coisa que Ela simplesmente – por promessa divina – não pode fazer: prestando um culto litúrgico espúrio.

Deixou de existir, portanto, Igreja visível. Recaem-se, aqui, em rigorosamente todos os problemas do sedevacantismo “clássico” (o que remete a Paulo VI, João XXIII, Pio XII ou seja lá até onde se deseje retroceder a vacância da Sé Apostólica). Estarão os críticos do Papa Francisco dispostos a aceitar tanto? Ou não pensaram jamais nisso – e acham que a hipótese de um falso Papa no sólio pontifício com o soberano legítimo ainda vivo é de algum modo menos problemática do que a de uma Igreja com o trono abandonado, esquecido e empoeirado por gerações a fio?

Sim, Francisco é o Papa: resposta às teses de Antonio Socci

Mais de uma pessoa já me perguntou sobre a história de uma possível irregularidade canônica no conclave que elegeu o Papa Francisco – uma irregularidade tal que acarretaria a invalidade da eleição e, por conseguinte, faria o Card. Bergoglio não ser Papa verdadeiro. A tese consta em um livro escrito recentemente pelo sr. Antonio Socci. Examinemo-la.

Toda a celeuma se resume ao seguinte: na contagem da quarta votação do segundo dia do conclave, percebeu-se haver, na urna, uma cédula a mais. Acto contínuo, desprezaram-se todas as cédulas e se refez a votação, cujo resultado elegeu Papa o então Cardeal Jorge Bergoglio. Acontece que as normas sobre o conclave vigentes proíbem que haja um quinta eleição no dia; logo, aquela votação foi ilegítima, sendo portanto também ilegítimo o seu resultado. O cardeal Bergoglio não fora eleito validamente e, portanto, não pode ser o Papa reinante.

O fato, relata-nos uma jornalista argentina, Elisabetta Piqué, em um livro – Francisco, vida y revolución – lançado há já quase um ano. «Após serem contadas uma por uma as cédulas, foram contabilizadas 116 na quinta votação, antes do escrutínio. A votação foi então anulada, e os cardeais se dispuseram pacientemente a um novo sufrágio.»

A norma, consta na Universi Dominici Gregis: «se a eleição não se fizer no primeiro escrutínio, deverá haver duas votações, tanto da parte da manhã como da tarde» (nn. 63); e também:

No caso de a eleição ser feita de uma forma diversa daquela prescrita na presente Constituição ou sem terem sido observadas as condições aqui estabelecidas, tal eleição é por isso mesmo nula e inválida, sem necessidade de qualquer declaração, e, portanto, não confere direito algum à pessoa eleita (Universi Dominici Gregis, 76).

Ora, houve mais de duas votações na parte da tarde e, portanto, segundo o Direito, a eleição foi inválida: esta é a tese. Diante dela, é imperativo perguntar: será verdade?

E, sinceramente, não parece que o arrazoado proceda. Este artigo – que merece uma leitura na íntegra – dá uma detalhada explicação canônica sobre o assunto; em resumo

  1. as cédulas da segunda votação da tarde foram descartadas em observância ao artigo 68 da Constituição Apostólica;
  2. procedeu-se «imediatamente a uma segunda votação» em atenção ao mesmíssimo dispositivo;
  3. a votação anulada não conta como um escrutínio independente, uma vez que este possui três elementos constituintes – «1) a deposição das fichas de voto na respectiva urna; 2) a mistura e a contagem das mesmas; 3) o apuramento dos votos» (nn. 66) – e, havendo uma irregularidade na segunda etapa, a apuração não chega a ocorrer; por conseguinte, não cabe falar aqui na existência de uma votação. O “quinto sufrágio” foi, portanto, na verdade o quarto.

Isso já seria suficiente para encerrar a questão. Mas vai ainda além o pe. Giancarlo Cerrelli – o canonista que responde ao livro do Socci – e dispara, com clareza extraordinária, este raciocínio cogente:

Socci, portanto, não tem razão alguma em nenhum dos pontos que afirma. No entanto, se tivesse razão, e se realmente tivessem ocorrido cinco votações no mesmo dia, ou se houvesse sido anulada uma votação que, na verdade, era para ter sido apurada, por conta disso Francisco não seria Papa? Na verdade não, nem sequer neste caso. Socci, que ainda não é advogado, interpreta o artigo 76 da Constituição “Universi Dominici Gregis” de maneira literal e formalista. O artigo afirma que «se as eleições se derem de outro modo que o prescrito na presente Constituição ou se não tiverem sido cumpridas as condições estabelecidas neste documento, a eleição é portanto nula e sem efeito». Isso, no entanto, não quer dizer, como crê Socci, que qualquer descumprimento formal anula algo tão importante quanto a eleição do Papa.

Tomemos um exemplo: o artigo 67 estabelece que, se um cardeal se encontra enfermo, apresentará as cédulas de votação e a caixa «em uma pequena bandeja». Se, por erro, for utilizada uma bandeja grande no lugar de uma pequena, pensa acaso Socci que a eleição do Papa é inválida? O exemplo é caricato [paradójico], mas serve para esclarecer que as palavras “de outro modo” e a referência às “condições” dizem respeito às linhas essenciais do conclave, e não a elementos individuais, por úteis que sejam ao desenvolvimento ordenado da votação. A doutrina canônica mais autorizada sustenta que, com o fim de evitar incertezas e outros problemas graves, as condições para questionar a validade dos votos para eleição do Romano Pontífice (ou tecnicamente a “provisão do ofício supremo” [“provisión del oficio primado”]) foram reduzidas ao mínimo: sendo suficiente que as eleições tenham sido secretas e que tenham contado com o suficiente consentimento, evidentemente. Deste modo, não anula a eleição, portanto, nem o erro, nem o medo, nem sequer um ato gravíssimo como a simonia (artigo 78 da Constituição). Apenas se o esquema essencial da eleição estiver alterado será possível dizer que ocorreu um conclave “de outro modo” que o prescrito pela Igreja e sem observar as “condições” que ele requer. E, realmente, se o esquema essencial do conclave tivesse sido alterado, como é que nem um único cardeal protestou?

Está resolvido, portanto, o problema? A mim, parece que sim, e aliás parecia desde o começo. Buscar tecnicismos para dizer inválida uma eleição aceita por todos os cardeais-eleitores e pela virtual totalidade da Igreja Católica me parece superstição e desespero. Superstição, por achar que uma eleição pontifícia se dá através de uma recitação cabalística de algum hocus pocus, cuja inobservância – mesmo mínima e involuntária! – teria o condão de fazer com que o Papa não fosse Papa legítimo, ainda na eventualidade de ninguém jamais o pôr em dúvida. E desespero, pela tentativa patética de buscar “no tapetão” uma justificativa para desobedecer ao Romano Pontífice – ou ao menos uma certa tranquilidade de consciência para o fazer.

Se São Pedro tinha sogra, por que o Papa não pode casar?

Alguém me pergunta: Se Nosso Senhor curou a sogra de Pedro, é sinal de que ele era casado. Por que, então, o Papa não pode casar?

O raciocínio está corretíssimo quanto à primeira parte. Sim, é óbvio que S. Pedro, se sogra tinha, é porque era ou fora casado e não pode ser jamais de maneira diversa. O erro se faz presente quanto ao non sequitur elíptico: o argumento desdobrado tem a seguinte forma:

SE o primeiro Papa foi casado ENTÃO os próximos o deveriam [poder] ser também.

E a conclusão não segue das premissas. Não, não é porque S. Pedro tinha sogra que os outros papas deveriam ter também. Não é porque S. Pedro era ou fora casado, do mesmo modo, que os seus sucessores deveriam poder igualmente casar.

São Pedro tinha barba, como já ouvi alguém jocosamente retrucar. Disso evidentemente não decorre que os Papas precisem ser barbudos. Decerto eles podem sê-lo; mas – é este o ponto principal aqui – se fosse emitida uma regra canônica que instituísse a figura do Barbeiro Pontifício, sob cujo encargo ficaria manter sempre lisa e lustrosa a face do Romano Pontífice, isso poderia até ser visto por alguns como uma extravagância; mas decerto ninguém sustentaria haver, aqui, uma contradição com o que está consignado nos Evangelhos. Por que com relação às sogras as coisas são diferentes?

Ser celibatário não é uma condição para alguém ser validamente Papa; não se trata de uma imposição análoga àquela que exige, p.ex., que se seja batizado para receber os demais sacramentos. Outro exemplo talvez mais claro: uma mulher não pode ser “Papisa” porque o Papa precisa ser Bispo, e o Episcopado é um dos graus do Sacramento da Ordem, o qual não pode ser validamente ministrado senão a varões. Assim, uma mulher não pode ser “bispa” (“não pode”, aqui, significando verdadeira impossibilidade metafísica: nada pode ser feito que confira o caráter sacerdotal a uma mulher) e, se fosse – por engano – eleita ao sólio pontifício, não se trataria verdadeiramente de “sucessora de Pedro” com as prerrogativas que lhe são próprias (não gozaria, por exemplo, da infalibilidade).

Coisa distinta é ser casado / celibatário, relação (categoria aristotélica) que por si só não implica nem em condição para se ser Sucessor de Pedro e nem em impedimento ontológico para ascender ao Sumo Pontificado. Pode ser validamente ordenado o «vir baptizatus» (CIC 1024); é ser varão e batizado o que faz S. Pedro – e todos os seus sucessores – poder(em) ter sido Papa, e não o ser(em) casado ou celibatários.

Orientações sobre práticas penitenciais

Esses dias alguém me perguntou sobre se devia manter ou não a penitência quaresmal durante os Domingos da Quaresma. A pergunta revela um sadio interesse sobre os tempos litúrgicos da Igreja e oferece ensejo para esclarecer alguns termos que costumam aparecer juntos e, por isso, provocam às vezes confusões.

Em um apêndice (o X) ao Código de Direito Canônico disponível no site da Santa Sé encontram-se as «Normas de observância penitencial para as dioceses portuguesas». Vale a pena conhecê-las, mesmo em se tratando de um documento de uma Igreja Local, uma vez que as definições e as práticas lá mencionadas são tradicionais em toda a Igreja.

O jejum é «a forma de penitência que consiste na privação de alimentos» (Normas, 3.). A abstinência, a «escolha de uma alimentação simples e pobre» (Normas, 4.), definição que permite compreendê-la melhor do que falar simplesmente em «abstenção de carne». Todo católico está obrigado a deixar de comer carne nas sextas (no Brasil há indulto da Conferência que permite trocar essa abstenção por outra forma de penitência à escolha do fiel, mas isso é outra história); mas simplesmente trocar a carne por um farto rodízio de Sushi talvez não o permita vivenciar com igual fruto o significado da abstinência das sextas-feiras. Isso vale uma reflexão.

Jejuar é privar-se de alimentos. Certo, mas de que maneira? Nesses tempos penitenciais costumam aparecer explicações bem didáticas sobre como se pode jejuar. Não sei de onde saem os diferentes tipos de jejum, e imagino que isso seja de piedade pessoal ou costume local. Sei que o jejum (digamos) “canônico” é o que consiste em fazer somente uma refeição completa no dia, reduzindo-se as demais. Salvo melhor juízo, costumes locais (digamos, jejum absoluto até a hora do almoço e alimentação comedida a partir de então) cumprem o preceito da Quarta-Feira de Cinzas e da Sexta-Feira da Paixão (os dois dias do ano em que os católicos estão obrigados a jejuar).

Penitência é gênero do qual jejum e abstinência são espécies. É qualquer ato humano orientado à conversão; ou, como a conceituou João Paulo II,

penitência significa, no vocabulário cristão teológico e espiritual, a ascese, isto é, o esforço concreto e quotidiano do homem, amparado pela graça de Deus, por perder a própria vida, por Cristo, como único modo de a ganhar: esforço por se despojar do homem velho e revestir-se do novo; por superar em si mesmo o que é carnal, para que prevaleça o que é espiritual; e esforço por se elevar continuamente das coisas de cá de baixo para as lá do alto, onde está Cristo (Reconciliatio et Paenitentia, 4).

Em resumo, fazer penitência é mortificar-se, e mortificação é qualquer exercício que tenha por objetivo domar a vontade. Assim são penitenciais o jejum e a abstinência (sacrificando o prazer da alimentação), a esmola (enfraquecendo o nosso apego aos bens materiais em prol das necessidades dos outros), a própria oração etc. E é também penitência, em suma, qualquer sacrifício de prazer legítimo que se faça durante a Quaresma: «por exemplo, privar-se de fumar, de algum espectáculo, etc» (Normas, 9.).

Todos os cristãos estão sempre obrigados à penitência no sentido latu (cf. CIC 1249), e devem fazê-la a vida inteira. Certos tempos têm um caráter penitencial mais acentuado (como a Quaresma) e, portanto, devem neles os fiéis empregarem maior diligência em se penitenciar. À abstinência estão obrigados os fiéis maiores de 14 anos em todas as sextas-feiras do ano que não coincidam com solenidades (cf. CIC 1252) e, ao jejum, os cristãos entre 18 e 60 anos (cf. id. ibid.) na Quarta de Cinzas e na Sexta da Paixão.

Não se faz jejum aos Domingos, nem mesmo nos da Quaresma. Mas faz-se penitência na Quaresma, inclusive aos Domingos. Este é o espírito. Como o viver concretamente é matéria de piedade particular, a ser decidida pelo fiel em conjunto com seu confessor ou diretor espiritual. O que é realmente importante é distinguir os tempos: é viver a penitência do tempo comum de modo mais brando do que a penitência quaresmal, e a alegria de um Domingo da Quaresma de uma forma mais contida do que em outro Domingo mais festivo. Esta é a vida cristã, cuja essência não desconhece nem a dor do pecado nem a alegria do perdão: é por meio daquela que chegamos a esta. Aqui não há verdadeira oposição entre penitência e alegria. Entendê-lo é fundamental para viver com fruto este e todos os tempos litúrgicos.

Notas avulsas sobre o 31 de outubro

– Hoje é Haloween. Ao contrário do que é comum pensar, não é uma festa pagã. Trata-se da All Halows’ Eve, a Vigília de Todos os Santos, festa catolicíssima portanto. Só se comemora hoje o Haloween porque amanhã nós celebraremos a Solenidade de Todos os Santos, não convém esquecer. “Gostosuras ou travessuras”, com os olhos fitos na Festividade de amanhã, não fazem assim mal a ninguém.

– Parece que é também “Dia do Evangélico” em alguns lugares do Brasil; p.ex., aqui no Cabo de Santo Agostinho, é o «Dia Municipal da Reforma Protestante e Ação de Graças». Isso porque as bruxas já estavam soltas nos idos de 1500, e os demônios pagãos que voavam pelos ares alemães daquela época inspiraram Lutero a pregar as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg exatamente no Dia das Bruxas. São uma dessas ironias históricas que dão o que pensar.

– Hoje, no almoço, alguém comentava que amanhã devia ser feriado. E de fato era; como os feriados civis dos países católicos (como o Brasil) seguiam o calendário litúrgico da Igreja e como o Dia de Todos os Santos é dia santo de guarda (cf. CIC, Cân. 1246, §1), era igualmente feriado civil. Não sei quando foi que o deixou de ser no Brasil; em Portugal, este é o primeiro ano em que o 1º de novembro não é feriado.

– Há três anos, em 2010, o Haloween caía num domingo. Segundo turno de eleições presidenciais. Outra ironia eloqüente… No dia das Bruxas daquele fatídico ano, para a nossa desgraça, a sra. Rousseff era eleita presidente da República. Desde então, afundamos cada vez mais.

– Hoje, o Papa Francisco celebrou (ao que me conste pela primeira vez) uma Missa versus Deum junto ao túmulo do Beato João Paulo II. O Rorate Caeli discordou das razões expostas pelo Fratres e disse (com o que concordo, aliás) que um altar improvisado se poderia facilmente arranjar caso o Papa assim solicitasse. De minha parte, acho que o Sumo Pontífice não estava acostumado a celebrar dessa maneira. Espero que ele tenha gostado.

Extra! Extra! O Papa NÃO vai criar uma mulher cardeal!

Não que isso fosse realmente necessário, mas o Vaticano desmentiu a história louca publicada recentemente por El País de que o Papa Francisco iria “nomear” (sic) uma mulher cardeal. Excelente a colocação incisiva do pe. Lombardi:

“Não se pode ter El País como uma fonte do Vaticano”, assinalou o porta-voz da Santa Sé.

E – acrescento eu – nem tampouco o resto da mídia ávida por novidades na qual o próprio Papa já mandou recentemente que não acreditássemos.

Apenas a título de curiosidade, um «Cardeal» não é um grau do Sacramento da Ordem “acima” do de Bispo. A Ordem só tem três graus: o diaconato, o presbiterato e o episcopado, e mais nada. O Colégio Cardinalício é uma espécie de “para-hierarquia”.

Embora historicamente já tenha havido cardeais leigos, o Código de Direito Canônico vigente (Cân. 351) prescreve que só podem ser escolhidos para cardeais os que forem «pertencentes pelo menos à ordem do presbiterado», e acrescenta que «os que ainda não forem Bispos, devem receber a consagração episcopal». Como mulheres não podem ser ordenadas, tampouco podem ser cardeais.

Uma modificação no CIC para retirar essa exigência seria despropositada e inaudita, porque mesmo os antigos cardeais leigos recebiam a tonsura e as ordens menores – donde a história do Juan Arias sempre foi sem pé nem cabeça de uma ponta a outra.

Dom Oppermann e Aleteia prestam enorme desserviço à Igreja Católica com absurdo artigo sobre o aborto

Péssimo e contraproducente este artigo sobre aborto e excomunhão que D. Oppermann escreveu (!) e Aleteia (re)publicou (!!). O bispo que já escreveu tantas coisas interessantes poderia ter evitado tocar neste assunto de maneira tão desastrosa, e o portal católico cujo lema é «em busca da verdade» não precisaria ter se sujeitado a disseminar assim a confusão entre os católicos.

A excomunhão latae sententiae para quem pratica aborto é «uma pena pesada», sem dúvidas; mas o crime de assassinar uma criança inocente no ventre é porventura leve? A gravidade da pena é proporcionada e adequada à gravidade do delito. As alegadas «razões» expostas por D. Aloísio para considerar a «penalidade inadequada» (sic) falseiam de maneira grotesca o Direito da Igreja e a realidade dos fatos.

Espanta-me Sua Excelência dizer que «[n]unca vi[u] um mandante desse péssimo procedimento ser punido». Ora, se a excomunhão é automática, o que ele esperaria ver? Na pena de excomunhão conseqüente ao aborto incorrem todas as pessoas que colaboraram com o efeito: quem «aconselhou a prática abortiva», quem «providenciou a execução», os que «pressionaram sem parar», todos estes. E isto não se “vê” porque, por ser excomunhão, não provoca nenhuma “marca” visível em quem a recebe e, por ser latae sententiae, i.e., automática, prescinde de qualquer declaração para que surta efeito.

Se Sua Excelência estiver se referindo às declarações públicas emanadas pelas autoridades eclesiásticas, aí é que a frase dele se torna ainda mais incompreensível. O que nunca se viu, jamais, foi um bispo vir a público lavrar uma declaração de excomunhão para uma mulher que tivesse abortado! Ao contrário, quando os gêmeos de Alagoinha foram assassinados aqui em Recife, Dom José Cardoso levantou a sua voz para declarar que estavam excomungados os médicos aborteiros, não a mãe! Disse-o com toda a clareza possível em público, à imprensa: «todas as pessoas que participaram do aborto, com exceção da criança, estão excomungadas da Igreja».

Não é crível que Dom Aloísio ignore o caso, que ganhou repercussão internacional. É uma injustiça atroz que ele venha dizer não ter visto jamais «um mandante desse péssimo procedimento ser punido», quando no único caso em que se tornou pública a punição para este «péssimo procedimento» o Arcebispo Metropolitano disse com todas as letras que a excomunhão atingia todos os envolvidos no aborto, à exceção da mãe que fora violentada. A realidade é portanto o contrário do que diz o bispo autor do artigo!

Mais: a pena de excomunhão não é – ao contrário do que diz Dom Aloísio no seu texto – uma pena «sem remissão». Pode ser perfeitamente remida no Tribunal do Sacramento da Confissão, diante do Bispo Diocesano ou de qualquer sacerdote que tenha faculdade para removê-la. Novamente, as palavras que Dom Oppermann aplica são inverídicas e só se prestam a espalhar o ódio contra uma disposição justa e necessária do Direito da Igreja.

Por fim, ao contrário do que insinua Sua Excelência nas últimas linhas do seu artigo, não é verdade que o Papa Francisco tenha modificado de qualquer maneira o Direito da Igreja no que concerne à pena de excomunhão automática para quem realiza aborto. Aborto continua punível com excomunhão latae sententiae de acordo com o Cânon 1398 do Código de Direito Canônico. E misericórdia para a «pecadora arrependida» que, uma vez excomungada, pode se aproximar do Sacramento da Confissão e receber de volta a Graça Santificante e a comunhão com a Igreja Católica é coisa que sempre existiu. Não há a mais mínima mudança neste assunto, como se agora as mulheres que abortam não fossem mais excomungadas (ainda são) ou como se antes elas não pudessem se reconciliar com a Igreja caso se confessassem arrependidas (sempre puderam).

Assim, este artigo de Dom Oppermann não fala nada com coisa nenhuma e, inexplicavelmente, apresentando um retrato totalmente falsificado quer da situação eclesiástica anterior, quer da atual, leva os seus leitores a pensarem que algo mudou nesse assunto (quando tudo está do mesmíssimo jeito como sempre esteve), além de alimentar uma – neste caso totalmente delirante – mentalidade de ruptura entre a Igreja de hoje e a de ontem. Um lamentável desserviço à Igreja de Cristo e ao Evangelho.

Amanhã, 07 de setembro, «dia de jejum e de oração pela paz na Síria»

O Santo Padre, o Papa Francisco, convocou no Angelus do último domingo toda a Igreja Católica para um dia de jejum e de oração pela paz na Síria e no mundo inteiro. As suas exatas palavras foram as seguintes:

Por isso, irmãos e irmãs, decidi convocar para toda a Igreja, no próximo dia 7 de setembro, véspera da Natividade de Maria, Rainha da Paz, um dia de jejum e de oração pela paz na Síria, no Oriente Médio, e no mundo inteiro, e convido também a unir-se a esta iniciativa, no modo que considerem mais oportuno, os irmãos cristãos não católicos, aqueles que pertencem a outras religiões e os homens de boa vontade.

A convocação suscitou algumas dúvidas. Duas delas me parecem as mais importantes.

Primeiro, importa esclarecer que o dia não é de jejum e abstinência, como a Sexta-Feira Santa e a Quarta-Feira de Cinzas. É uma dia de jejum e oração. A carne, portanto, está liberada, com a parcimônia que se exige de um dia de jejum, é lógico, mas ainda assim liberada.

Segundo, algumas pessoas quiseram saber se elas estão obrigadas sob pena de pecado mortal a atenderem a este pedido do Papa. Vejam, existe a obrigação, sim, inclusive sub grave, de obedecer aos Mandamentos da Igreja. O Direito Canônico diz que «[t]odos os fiéis, cada qual a seu modo, por lei divina têm obrigação de fazer penitência», e que os «dias de penitência» são prescritos para que os fiéis possam vivê-los «cumprindo mais fielmente as próprias obrigações e sobretudo observando o jejum e a abstinência» (CIC, Cân. 1249). Isto, no entanto, vale, de acordo com o mesmo cânon, «segundo as normas dos cânones seguintes». E os cânones seguintes (1250-1253) tratam dos dias de jejum e penitência ordinários da Igreja: as sextas-feiras, a Quarta de Cinzas e a Sexta da Paixão. Não fala nada sobre um dia de penitência convocado extraordinariamente (como é o caso atual) e, portanto, não permite ser extrapolado para impôr a este as mesmas obrigações decorrentes daqueles.

O Papa fez um convite que exige séria consideração, sem dúvidas, uma vez que é um convite do próprio Romano Pontífice, mas que não tem a mesma natureza dos dias de penitência ordinariamente prescritos para toda a Igreja. Portanto, deixar de fazer jejum e oração amanhã não é de per si um pecado grave. Esta é opinião de alguns sacerdotes nos quais confio, e é a opinião do pe. Z. exposta em seu blog no início desta semana.

No entanto, é importante que nos unamos sim, cada qual na medida das suas capacidades, a esta louvável inciativa à qual nos chama o Vigário de Cristo. Se pudermos fazer jejum amanhã, não deixemos de fazer: não percamos esta oportunidade de unir as nossas penitências às de toda a Igreja, sob o convite expresso do Papa Francisco, pela paz na Síria e no mundo. E, se por alguma razão o jejum nos for muito penoso ou impossível (sei lá, se já havíamos marcado um churrasco de aniversário, ou coisa parecida), não descuidemos da oração: elevemos particulares súplicas ao Todo-Poderoso, em união com toda a Igreja, a fim de que Ele nos conceda a paz de que o mundo tanto precisa e não tem condições de a obter por conta própria.

Elevemos estas preces a Deus principalmente no momento em que o Papa estiver rezando especificamente para este fim. Segundo ele, no «dia 7 de setembro, na Praça de São Pedro, aqui, das 19h00min até as 24h00min, nos reuniremos em oração e em espírito de penitência para invocar de Deus este grande dom para a amada nação síria e para todas as situações de conflito e de violência no mundo». Daqui para Roma são cinco horas de fuso-horário; então, aqui no Brasil isso será das duas da tarde às sete da noite. Reservemos estas horas, ou ao menos alguma(s) destas horas, para nos unir ao Papa em oração. Que o Todo-Poderoso nos ouça. Que o Príncipe da Paz venha em nosso socorro. Que Ele nos consiga o que está para além do nosso alcance.

“Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!”

Depois de tudo o que já foi falado aqui sobre o padre Beto, eu pensava em não mais voltar ao tema do arrogante sacerdote. No entanto, permito-me mais algumas palavras, por conta de um comentário sem sentido que, nos últimos dias, tem ganhado corpo e merece uma resposta.

Ele veio do próprio padre Beto: «Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!», choramingou o sacerdote, em um arroubo patético de apelo sentimental vazio. É bem pouco provável que o padre Beto realmente não entenda o porquê das coisas serem assim; o mais verossímil é que ele esteja fazendo uma chantagem emocional barata, para posar de coitadinho ao mesmo tempo em que lança sobre a Igreja a pecha de intransigente e contraditória. Mas vá lá: tenhamos um pouco de paciência com a ignorância ou a cretinice alheia. Exponhamos o discurso do óbvio e expliquemos ao reverendo sacerdote por que sua situação é diferente da dos ditos “padres pedófilos”.

Convém ter em mente, antes de qualquer coisa, que a excomunhão não é um passaporte irrevogável para o inferno. Trata-se de uma pena eclesiástica, em última instância orientada – como aliás todas as penas eclesiásticas – para a salvação das almas. De que maneira?

Ora, os pecados não se dividem em leves, graves e “excomungantes”. Há somente os leves (ou veniais) e graves (ou mortais), e só. Os primeiros são os que mantém a alma em estado de graça e, os últimos, são os que fazem perder a graça santificante; aqueles permitem que se vá ao Céu passando pelo Purgatório e, estes, conduzem ao Inferno. Não há na alma de um assassino (ou adúltero ou ladrão) mais graça santificante do que na de um médico punido com excomunhão, e nem vai menos para o Inferno um católico impenitente do que um herege excomungado. Excomunhão não é, portanto, simples qualificador agravante de condutas pecaminosas. Que coisa é ela, então?

A excomunhão é uma espécie de censura eclesiástica ao mesmo tempo grave e branda. Grave, porque rompe no foro externo a comunhão com o Corpo Místico de Cristo que é a Igreja; branda, porque para ser retirada exige somente um pedido de perdão do excomungado. E os pecados punidos com excomunhão têm geralmente também essa curiosa antinomia: são, ao mesmo tempo, graves em si mesmos e negligenciados por quem os comete. Vejamos alguns exemplos.

Quem é este excomungado? Henrique VIII da Inglaterra. Que crime cometeu? O de separar a igreja anglicana da Igreja Católica. Que importância lhe deu? Nenhuma. Como se sentia? Julgava-se vítima das absurdas pretensões papais sobre o seu casamento, sobre o futuro da família real inglesa.

Quem são estes excomungados? Dom Marcel Lefebvre, Dom Antônio de Castro Mayer e os quatro bispos por eles sagrados sem mandato pontifício. Que importância deram à sagração episcopal ilícita? Nenhuma, pois se julgavam vítimas da Roma Modernista.

Quem é este excomungado? O pe. Roy Bourgeois. O que ele fez? Participou de uma tentativa de “ordenação feminina”. Que importância deu ao fato? Nenhuma, pois se julgava vítima da misoginia da hierarquia católica, do secular machismo eclesiástico.

Quem são estes excomungados? Os médicos que realizaram um aborto numa menina de nove anos aqui no Recife. Como se sentiam? Heróis injustiçados que salvaram uma criança dos obtusos e medievais dogmas da Igreja Católica.

Quem, por fim, é este excomungado? O padre Beto, que falsificou a doutrina da Igreja, corrompeu a juventude e, agora, adota um discurso vitimista, nem por instante se arrependendo do escândalo que suas atitudes provocaram e continuam provocando entre católicos e não-católicos.

O que todas essas coisas  têm em comum? São pecados graves, em primeiro lugar; cometidos não por impulso, mas friamente pensados e executados, insistidos mesmo após as admoestações e súplicas da Igreja, em segundo; e, em terceiro, considerados de pouca importância (às vezes nem percebidos como pecados!) por aqueles que os cometem e pelos que lhes são próximos. Em geral, são estas características e não outras as que a Igreja observa quando decide excomungar alguém.

A excomunhão é, assim, uma espada brandida pela Igreja com fins duplamente pedagógicos. Primeiro, para que se arrependa o excomungado, uma vez que os pecados punidos com excomunhão costumam ser de tal natureza que repelem o arrependimento e debilitam a vontade de se reconciliar com a Igreja; e, segundo, para que as outras pessoas percebam-lhes a gravidade (geralmente escondida sob a aparência de heroísmo, martírio, louvável resistência ou coisa análoga) e não se deixem seduzir por eles. E esta finalidade pedagógica da excomunhão se vê com clareza quando se considera que ela encontra o seu término no Tribunal do Sacramento da Penitência, ao qual o excomungado pode acorrer sempre que desejar.

A excomunhão, assim, só persiste enquanto o excomungado não se volta para a Igreja. Aliás, pode-se dizer que ela existe precisamente para constranger quem a recebe a voltar-se para a Igreja. Voltemos, enfim, ao caso atual. Foi excomungado o padre Beto? Mas, ora, se ele quiser, pode perfeitamente ter a sua pena remitida hoje mesmo, bastando para isso correr ao seu bispo e dizer-lhe que aceita, sim, integralmente, a Doutrina da Igreja Católica. No entanto, ele não o faz. Prefere continuar aferrado às suas próprias “reflexões” estúpidas a se render à clareza da Verdade que refulge no ensino da Esposa de Cristo. Está excomungado porque quer ser excomungado, essa é a grande verdade que convém não ser esquecida aqui.

Coisa totalmente diversa ocorre com o padre que viola o sagrado celibato. Primeiro porque o abuso sexual de crianças é em si mesmo coisa horrenda e repulsiva, sem que haja ninguém que o justifique ou defenda. Segundo, porque jamais se teve notícia de algum padre pedófilo que tivesse anunciado “é, eu sou pedófilo mesmo, a pedofilia é uma coisa boa e a Igreja devia refletir melhor sobre isso, porque os tempos mudaram e a gente tem mais é que ser pedófilo mesmo, etc.” – se o fizesse, é certíssimo que seria excomungado tão rapidamente quanto o padre Beto o foi, e pela mesmíssima razão. Querer no entanto equiparar um crime oculto e infame a um pecado glamouroso cometido pública e impenitentemente não passa de um sofisma grosseiro. Não se sabe a quem o padre Beto quer enganar com esse espantalho ridículo; mas o recurso a tal expediente desonesto por parte de um homem presumivelmente inteligente já diz muito sobre o seu caráter.

Como os padres pedófilos não saem por aí alardeando em público a sua pedofilia da mesma maneira que o padre Beto parece ter um prazer depravado em confessar-se publicamente herege, é impossível que ambas as coisas sejam punidas igualmente. Os pedófilos, portanto, só podem ser punidos ao final de um processo canônico próprio. E eles o são: as normae de gravioribus delictis da Santa Sé prevêem que os padres que pecam contra a castidade com menores de dezoito anos ou que recorrem a material pornográfico de menores de catorze anos «seja[m] punido[s] segundo a gravidade do crime, não excluída a demissão ou a deposição». E a demissão [do estado clerical] é mais dura do que a excomunhão, uma vez que esta é retirada pelo simples pedido de perdão do condenado e, aquela, não. Ou seja: o padre Beto pode levantar a sua excomunhão hoje mesmo, mas um padre pedófilo demitido do estado clerical “não pode ser reintegrado entre os clérigos a não ser por rescrito da Sé Apostólica” [CIC 293]! Para o padre Beto voltar a exercer as suas funções basta-lhe confessar-se com o seu bispo (coisa que, repito, ele pode fazer agora mesmo), enquanto que um padre que cometeu pedofilia só volta ao sacerdócio com autorização explícita da Santa Sé – e o sacerdote de Bauru ainda vem reclamar! Ainda tem a cara de pau de insinuar que a sua situação está pior do que a dos pedófilos!

Pedófilos geralmente não são excomungados, padre Beto, porque (ao contrário do senhor) não saem por aí dizendo-se orgulhosos de serem pedófilos. Mas, quando descobertos e julgados, são punidos com mais rigor. O senhor, padre Beto, foi excomungado porque é um vândalo hipócrita que quer ser excomungado: porque gosta mais de contar mentiras em público do que pregar o Evangelho para o qual a Igreja o ordenou. Pedófilos ao menos têm vergonha dos seus crimes, enquanto o senhor, padre Beto, tem orgulho dos seus.

E é por isso que o senhor foi excomungado: porque a excomunhão não é meramente um indicador de gravidade dos pecados, e sim a censura dos orgulhosos. Existe não para dizer que aquele monstro vermelho e chifrudo é o diabo, mas para desmascarar Satanás travestido de anjo de luz. É empregada não para coroar a maldade dos pecados que já são abjetos por natureza, mas para revelar a malícia escondida sob aqueles que parecem inofensivos ou mesmo virtuosos. E é exatamente por isso, em suma, que ela lhe cai tão bem. É exatamente por isso que os verdadeiros católicos estão serenos e agradecidos enquanto essas cretinices do senhor dissipam quaisquer dúvidas que porventura pudessem restar sobre o seu caráter ou a seriedade do seu ministério sacerdotal. É exatamente por isso, em suma, que poucas decisões recentes do episcopado brasileiro foram tão acertadas quanto essa declaração de excomunhão de Dom Ferrari.