A liberdade de expressão e os seus limites

Um leitor do Deus lo Vult! deixou, aqui, o seguinte comentário:

Sobre a liberdade de ofender e escarnecer, como se pode definir que alguém foi ofendido ou escarnecido se os pontos de vista são tão diferentes? Essa batalha que deve ocorrer no âmbito civil e com critérios muito claros. Pois muitos do movimento gay também consideram ofensivo que representantes das igrejas apareçam na TV bradando que os homossexuais são pecadores, pode-se evocar a liberdade de expressão nesse caso ou estamos diante de um outro limite para a liberdade de expressão?

Penso que o assunto merece um post à parte.

Antes de qualquer coisa, o problema, a nível teórico, se resolve de maneira muitíssimo simples: a rigor, a única liberdade que existe é «a liberdade fundamentada sobre a verdade» (Paulo VI, Mensagem para o 9º dia mundial das comunicações sociais, 19 de abril de 1975). A fórmula de Pio XII (Miranda Prorsus, Parte Geral, “Liberdade de Difusão”), por sua vez, é bastante intuitiva e pode nos ser muito útil nesta seara:

[A] verdadeira liberdade consiste no uso regrado da difusão daqueles valores que ajudam ao aperfeiçoamento do homem.

Assim, o único discurso que pode pretender propriamente um “direito” à existência em sociedade é, portanto, o discurso verdadeiro e bom. A mentira, o erro e o engano não podem ter um direito infrene à livre-proliferação em público, e não tem o menor cabimento conceder às verdades e às fábulas o mesmo status social. Enquanto este princípio generalíssimo não for assimilado, não se vai conseguir resolver a contento o problema da «liberdade de expressão» nas sociedades complexas contemporâneas.

Deve ser buscado o «aperfeiçoamento do homem», pois bem. Em teoria, está perfeito. A nível mais concreto, contudo, a questão se impõe com contornos mais complicados a partir do momento em que diferentes pessoas não conseguem entrar em mútuo acordo a respeito de qual seja, especificamente, o discurso verdadeiro e qual o falso, qual o pernicioso e qual o útil. O socialismo matou milhões de pessoas ou é o responsável por avanços civilizacionais de outro modo inalcançáveis? A democracia representativa brasileira contemporânea é eficaz para reproduzir fidedignamente a vontade política dos cidadãos, ou é um instrumento de manipulação demagógica concebido e executado para atender a interesses particulares inconfessáveis? A religião verdadeira é a Católica Apostólica Romana ou é o Islão? Como saber qual dos discursos é verdadeiro e proveitoso,  e qual é falso e daninho? Onde está a verdade?

Evidentemente, não se negam as dificuldades existentes para identificar quem está com a razão em cada caso concreto. É óbvio que a verdade a respeito de toda e qualquer coisa não é imediatamente evidente a toda e qualquer pessoa. Há, no entanto, maneiras civilizadas e inteligentes de minimizar esta contingência:

1. Via de regra, descobrir o que não é verdade é mais fácil do que identificar o que é verdade, e existem muitos casos em que fazê-lo está ao alcance de qualquer pessoa. Por exemplo, diante de alguém que apresenta o punho cerrado e pergunta “o que tenho na mão?”, pode ser bastante difícil descobrir o que a mão fechada esconde; não obstante, é facílimo dizer, com bastante segurança, o que ela não esconde. Diante de tal indagação, alguém pode não saber responder ao certo se o que está na mão do interlocutor é uma moeda, uma tampa de caneta ou um piolho-de-cobra; mas qualquer um consegue dizer, com bastante segurança, que o que está lá não é uma jaguatirica, um capacete de moto tamanho padrão ou a Grande Muralha da China.

As questões que interessam à sociedade são um pouco mais complicadas do que este exemplo ilustrativo, é verdade, mas mesmo entre aquelas é possível encontrar vastos territórios de coisas que inequivocamente não «ajudam ao aperfeiçoamento do homem», para usar a fórmula de Pio XII. Por exemplo, a imensíssima maior parte das pessoas há de concordar que a proposta de acabar com a pobreza exterminando fisicamente os pobres é totalmente inadmissível, e está disposta até mesmo a conceder que a veiculação pública de semelhante ideia possa e deva ser inibida pelos poderes públicos. No atual estado de coisas, aliás, não faz o menor sentido alguém protestar contra a “imposição de limites à liberdade de expressão”: em qualquer lugar civilizado do orbe ela já tem limites, aceitos pacificamente pela esmagadora maioria dos membros da sociedade.

2. Dada a intrínseca contingência humana e a (conseqüente) natural e inevitável falibilidade de tudo o que ele produz – inclusive julgamentos -, nenhum tema pode ser “indiscutível” em absoluto. Futebol, política e religião, tudo, há que se discutir sim. No entanto, duas coisas precisam ser aqui observadas. Por um lado, qualquer assunto só é discutível em razão inversa à solidez que ele estabeleceu na sociedade: isso significa que as coisas com as quais virtualmente todo mundo concorda precisam de novos e fortes argumentos para serem colocadas em discussão, enquanto aquelas que encontram maior resistência social para se disseminar têm exigências argumentativas mais modestas (*). Por todo lado, “discutir” significa se utilizar de um discurso racional argumentativo para convencer o interlocutor de uma determinada tese: a simples peça publicitária (pior ainda, enganosa), a ofensa gratuita, a desmoralização do “oponente” e coisas parecidas estão fora do escopo dessa discutibilidade universal de todas as coisas aqui apresentada.

[(*) No Brasil atual, note-se, ocorre justamente o contrário: coisas evidentíssimas e que gozam de ampla aceitação popular, como por exemplo que o aborto é moralmente condenável e não deve ser aceito, discute-se com a superficialidade das escalações da seleção brasileira, o tempo todo, em todos os foros possíveis e imagináveis. Por sua vez, a uma coisa de que ninguém (a não ser uma meia-dúzia de ditos intelectuais) se convence, que não haja diferença alguma entre o casamento vitalício e monogâmico entre o homem e a mulher e a mera união entre dois homens ou duas mulheres, quer-se conceder ares de indiscutibilidade, chegando até mesmo à criminalização do contraditório…]

Duas implicações decorrem daqui: inexiste um direito de ofender, uma vez que toda e qualquer discussão deve ser construída sobre as bases da argumentação racional e não de ofensas gratuitas; e ao mesmo tempo ninguém tem um direito de não ser ofendido, um vez que o detentor de uma ideia não pode alegar “ofensa” para coibir uma refutação intelectual, racionalmente fundamentada, daquela ideia. Abrem-se, assim, as portas para o futuro e o progresso, ao mesmo tempo em que se protegem as conquistas civilizatórias já historicamente adquiridas.

3. Por fim, é necessário que haja instâncias de decisão para apaziguar os ânimos e arbitrar possíveis discussões entre cidadãos que possam surgir, mormente nos casos-limites (“ah, isso é ridicularizar a minha crença!”, “não, senhor, trata-se de emprego de reductio ad absurdum para demonstrar racionalmente a falsidade da sua tese”…). Tais instâncias necessariamente serão uma espécie de elite intelectual, comprovadamente hábeis na arte de aplicar os princípios acima elencados na solução de conflitos concretos; e precisarão, igualmente, ser dotadas de legitimidade moral para fazer valer as suas decisões sobre os contendedores, i.e., precisarão exercer, em quanto maior medida melhor, uma autoridade natural sobre a sua esfera de “jurisdição”.

Em observância ao princípio da subsidiariedade, é preferível que tais instâncias se multipliquem em diversos níveis – familiar, condomínio/bairro, comunidade, município, região metropolitana, estado etc. -, preservando assim características e valores locais ao mesmo tempo em que se evita a ingerência de pretensos iluminados na autodeterminação dos legítimos agrupamentos sociais intermediários. Começa-se a discutir religião, assim, dentro de casa, e não nos jornais das metrópoles. São os grupos de pais que decidem a respeito da educação de seus filhos, e não os ministros de Brasília.

À luz de todo o exposto, por fim, responde-se ao comentário que deu origem a este post da seguinte maneira:

  • identifica-se a ofensa, primeiramente, pelo critério da evidência: um discurso argumentativo a respeito do que quer que seja é uma coisa, e a veiculação de peça publicitária aviltante é outra coisa completamente distinta;
  • nos hard cases, é necessária a intervenção de uma instância superior, o mais localizada possível, e que (evidentemente) goze de autoridade sobre todas as partes envolvidas no litígio, a fim de discernir se se trata de exercício adequado da liberdade de expressão ou não;
  • o critério para a difusão pública de discursos não é o “movimento gay” e nem ninguém “sentir-se” ou deixar de se sentir “ofendido”, e sim se a mensagem veiculada ajuda «ao aperfeiçoamento do homem» ou não; isso se determina, mais uma vez, pelos critérios supramencionados da racionalidade do discurso e do prestígio (ou falta de prestígio) social de que gozam as teses em lide.

Concordo que é muito difícil obter consenso entre pessoas diferentes; tal, contudo, torna-se completamente impossível se a discussão e o debate racional são socialmente desestimulados. É bem provável que a plena concórdia a respeito de tudo seja inalcançável; penso, no entanto, que existem amplas margens para consensos substanciais a respeito de um grande número de coisas – para a obtenção dos quais é contudo necessário, mais uma vez, que a discussão pública, séria e honesta seja cada vez mais incentivada e não tolhida. Um mundo perfeito é sem dúvidas impossível, mas isso não dá a ninguém o direito de desistir de trabalhar por um mundo um pouco melhor do que este que está aí: em direção a este objetivo, sim, nós podemos e devemos caminhar com valentia e determinação.

A importância do bate-boca

Há discussões e discussões. Algumas são intrinsecamente infrutíferas, quando o assunto tratado tem pouca ou nenhuma importância para a salvação das almas ou – pior ainda – quando é-lhes prejudicial. Outras, são extrinsicamente infrutíferas, quando as condições não são propícias, ou quando os interlocutores não estão com as disposições de espírito exigidas para um debate frutuoso, ou quando se observa algum motivo semelhante. Por fim, há outras que são profícuas, que são todas as demais.

Tenho um natural otimismo com relação às discussões. Acredito que um número considerável delas vale a pena – a despeito do pouco fruto que elas pareçam dar – porque acredito que o ser humano tem uma natural sede da Verdade, e que argumentos racionais tendem a atrair a atenção das pessoas. Parece-me que foi Chesterton quem certa vez disse que, se ele tivesse um bom amigo e pudesse conversar com ele todas as noites por longos anos, conseguiria converter este amigo à Fé Católica. Neste aspecto, estou com o insigne escritor inglês.

Primeiro, porque acredito que a Fé Católica é “intrinsecamente convincente”; sendo Ela verdadeira, e possuindo o ser humano um inato desejo de Verdade, a Fé é, em Si, a resposta às aspirações últimas de todas as pessoas. Segundo, porque acredito na capacidade humana de mudar; uma vez que Nosso Senhor Jesus Cristo disse-nos para que pedíssemos, pois receberíamos, e batêssemos, pois abrir-se-nos-iam as portas, acredito piamente que um desejo sincero de encontrar a Deus é capaz de “mover o coração do Altíssimo”, e de provocar mudanças profundas e verdadeiras na visão de mundo das pessoas, quaisquer que sejam elas.

Para Chesterton, todavia, é necessário que o amigo dele seja “muito amigo” e que eles possam conversar por “muitos anos”. Isso acontece porque a Fé, embora seja em Si convincente, não Se apresenta à alma de maneira imediata. Obstáculos podem ser colocados ao esplendor da Verdade Católica. Principalmente dois: as duas pessoas que estão discutindo. E, exatamente por isso, discutir é necessário.

É necessário, porque existem preconceitos da parte de quem ouve que precisam ser quebrados – e quebrar preconceitos leva tempo. É também necessário, porque existem limitações de expressão da parte de quem fala, que precisam ser contornadas da melhor maneira possível – isso também requer tempo. Não acredito muito em “conversões miraculosas” de mudanças radicais de pessoas após pouca conversa e pouca discussão, porque milagres são raros e a minha (parca, reconheço) experiência me ensinou que é muito fácil colocar obstáculos a Fé, e muito difícil contorná-los. O que não significa que eles sejam “incontornáveis”.

Mas não é suficiente somente tempo, se não houver aquela “disposição de ânimo” necessária à assimilação daquilo que é ouvido. Chesterton fala em ser “muito amigo” do interlocutor; isso sem dúvidas seria muito bom, mas parece-me suficiente que você não seja muito inimigo dele. Ter inimizade por um contendor é a maneira mais fácil e eficaz de transformar uma discussão interessante em uma daquelas extrinsicamente estéreis – porque, mesmo que o assunto em si seja nobre e verdadeiro, se o adversário estiver “cego” pela inimizade que devota a você, não adianta de nada. Tempo, pois, para que os preconceitos sejam efetivamente derrubados; amizade (ou pelo menos “não-inimizade”), para que eles possam ser derrubados.

Há uma história atribuída a [se não me falha a memória] Santo Inácio de Loyola, segundo a qual o santo, certa vez, ao encontrar os seus filhos espirituais em silêncio, perguntou-lhes irado por que eles não estavam discutindo. Não sei se é história verídica ou se é anedota, e também vale salientar que a discussão entre a Fé e a incredulidade é de uma espécie diferente daquele na qual se busca aprofundar a Fé, mas o que eu quero reforçar trazendo este episódio à baila é que a discussão é importante, tão importante que não se podem privar dela nem mesmo os que já quebraram os muros iniciais do preconceito e começaram a dar passos em sua caminhada espiritual; a meu ver, nem mesmo estes o podem por três motivos principais.

O primeiro, para que aprendam a discutir. É necessário exprimir com fidelidade o que deve ser expresso, é necessário entender o pensamento do seu interlocutor [sem isso nada funciona], é necessário saber manter a calma e evitar a todo custo angariar inimizades. E discutir é fundamental para a pregação do Evangelho, para a propagação da Fé Católica, para a glória de Deus e para a salvação das almas.

O segundo, para que aprofundem o seu conhecimento; “entender para crer, crer para entender” é o conhecido adágio agostiniano, e é pressuposto da caminhada espiritual. Um corpo que não se desenvolve é um corpo morto e, nos caminhos espirituais, não progredir já é um retrocesso – para usar dois conhecidos ditados que vêm muito a calhar. Sempre há para onde progredir pois, aqui na Terra, é-nos impossível chegar onde não haja mais progresso espiritual possível.

O terceiro – e muitas vezes ignorado – motivo, é para que aprendam a aprender; coloquem-se “do lado de lá” da discussão, e saibam reconhecer os próprios erros e as próprias limitações. Isto é fundamental para o progresso espiritual – afinal, sempre há o que aprender – e é também fundamental para entender melhor a situação daqueles a quem os argumentos são dirigidos; sem isso, não se aprende a discutir.

“Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança”, escreveu o primeiro Papa; mas acrescentou logo em seguida: “mas fazei-o com suavidade e respeito” (1Pd 3, 15). De onde nós temos que, sim, discutir é essencial, mas também é essencial a maneira como discutimos. Se o bate-boca não dá resultado, não pode ser por culpa da Doutrina Católica; por conseguinte, deve ser procurado entre os contendores o culpado. Afinal, como já dizia o pe. António Vieira no Sermão da Sexagésima:

Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? — Por culpa nossa.

Isto pode, mutatis mutandis, ser aplicado a nós também. Aprendamos a discutir, para podermos trabalhar pela maior glória de Deus. E termino com as palavras do mesmo pe. Vieira, com as quais termina o conhecido sermão:

Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.

Amen.