No início do mês passado, ganhou repercussão na mídia nacional e internacional um artigo publicado no L’Osservatore Romano, que foi interpretado como uma “mudança” da posição da Igreja referente à morte encefálica e, em particular, à moralidade da doação de órgãos. O Marcio Antonio imediatamente refutou a besteira no seu blog. Hoje, descobri que o site do Vaticano publicou um texto da Pontifícia Academia de Ciências sobre o assunto, em três idiomas, sob o título de POR QUÉ EL CONCEPTO DE MUERTE CEREBRAL ES VÁLIDO COMO DEFINICIÓN DE MUERTE, que é claro e coeso o bastante para me desestimular a trazer trechos para aqui; remeto os leitores ao original (tem em inglês, italiano e espanhol).
O texto, entre outras coisas, tem o mérito de fazer uma distinção entre “dois processos”; um processo que se inicia com o agravamento da saúde e culmina com a morte da pessoa, e outro processo que se inicia com a morte da pessoa e culmina com a decomposição do cadáver e a morte de todas as células. Cita até um exemplo bastante didático, ao falar que até mesmo os antigos já sabiam que as unhas e o cabelo continuam a crescer em um cadáver durante dias após a morte. Se, portanto, é evidente que a morte da pessoa não coincide com a morte de todas as suas células, o fato de (p.ex.) o coração estar vivo em uma pessoa com morte encefálica não é motivo para se inferir que esta pessoa está ainda viva. Fazer isso é – segundo o documento – “confundir estes dois processos”.
A Igreja acompanha a ciência naquilo que compete à ciência – fato historicamente incontestável. Por exemplo, toda a confusão envolvendo Galileu: não foi “a Igreja” quem inventou que o Sol girava em volta da Terra, isto foram os gregos que disseram e era patrimônio científico incontestável até Copérnico. Por exemplo, as referências à Astrologia nos escritos de Santo Tomás de Aquino não foram invenções do santo; eram o senso comum científico da época, que foi assimilado pelo teólogo com as devidas correções. Não é portanto função da Igreja estabelecer critérios científicos para a determinação da morte de uma pessoa; o que Ela deve fazer (e faz) é analisar os critérios científicos vigentes e verificar se eles contradizem ou não o que se sabe sobre o ser humano pela Revelação.
O assunto é recente, mas o Magistério da Igreja tem se pronunciado no sentido de dizer que não, o que a ciência define como “morte encefálica” não parece contradizer o que a Igreja sabe sobre o homem. Não existem atualmente definições definitivas e irreformáveis sobre o assunto, de modo que uma discussão – como a que apareceu no L’Osservatore Romano e provocou o rebuliço internacional – é perfeitamente lícita. Existem pessoas que discordam do atual critério; tudo bem. Considero inclusive muitíssimo natural e até salutar que as pessoas analisem criteriosamente as teorias científicas, mormente as que se referem a assuntos importantes como a vida humana. Afinal, a Igreja é infalível, mas a Ciência não é.