Começa a Semana Santa

São poucos os dias que separam o Domingo de Ramos da Sexta-Feira da Paixão: que separam a entrada gloriosa de Nosso Senhor em Jerusalém, aclamado pelo povo, da Sua Crucificação horrenda, instigada também pelo povo, poucos dias depois. Na Liturgia de ontem, o drama se desenrola com ainda maior volatilidade: o contraste entre os gritos de «Hosana!» e «Crucifica-O!» atinge o fiel católico que assiste à Missa no pequeno intervalo entre a procissão de entrada e o Evangelho. Nós O saudamos! Nós O crucificamos!

A súbita mudança de humor pode parecer inverossímil; no entanto, com que facilidade os nossos melhores propósitos de amor e dedicação a Deus esvanecem-se e dão lugar, da noite para o dia, aos mais mesquinhos sentimentos de egoísmo e amor-próprio! Não cabe somente aos judeus daquele tempo o terrível crime do deicídio; em verdade, cada um de nós, e por incontáveis vezes!, assassinamos a Deus. Verdade que aprendemos no Catecismo. Verdade que a Sagrada Liturgia não nos deixa esquecer. Verdade enfim que experimentamos em nossa carne – que, se mirarmos com sinceridade o espelho de nossa alma, não deixaremos de ver com desconcertante clareza.

Começa a Semana Santa. É uma síntese de nossa vida. Sigamo-la atentamente.

Temos ainda os ramos na mão

Ontem foi Domingo de Ramos e muita gente não sabe o que a data significa. Eu já vi quem perguntasse, ao que tudo indica a sério, quem era esse “Ramos” que a Igreja estava comemorando…

A resposta é muito simples: trata-se de “ramos”, substantivo comum plural, e não “Ramos”, nome próprio singular. São ramos de plantas. A celebração de ontem relembra uma passagem específica dos Evangelhos: aquela em que Nosso Senhor, pouco antes da Crucificação, entra em Jerusalém montado num burrico e é aclamado pelo povo, que O saúda agitando ramos – «ramos de palmas», diz a Escritura.

Acho que foi Bento XVI quem disse, num dos volumes do «Jesus de Nazaré», que o povo que aclamou Jesus ontem não é o mesmo que vai gritar “crucifica-O!” na próxima Sexta-Feira. A distinção não é todavia indispensável à verossimilhança do relato; seria em princípio possível que as pessoas se houvessem decepcionado, no decurso de uma semana, com este Messias que parecia o Salvador do mundo mas que, de repente, Se apresentava preso, ferido e humilhado. Seria possível que O tivessem tomado por um farsante. Seria possível que gritassem para O crucificar, já que Ele não realizara a esperada restauração de Israel pela qual O haviam aclamado poucos dias atrás.

E essa rápida passagem do amor ao ódio apresenta-se na Liturgia de ontem de maneira bem significativa: nela, os dois Evangelhos são lidos. A entrada triunfante em Jerusalém se lê no início da procissão; a ignominiosa Paixão, no lugar tradicional do Evangelho, após as duas leituras. Temos ainda os ramos na mão quando gritamos, no jogral evangélico, que Cristo seja crucificado! E o simbolismo aqui presente é bastante verdadeiro.

Nós muitas vezes pecamos quando acabamos de sair da presença de Deus: a boca que lança imprecações por vezes acabou de recitar a Ave-Maria, e há pecados mortais que são cometidos já à saída do Confessionário. Lembro-me de uma personagem fictícia de uma história que ainda não escrevi: a menina se crismara. Recebera na testa o óleo crismal perfumado. Saíra da igreja direto para uma festa. Lá, encontrara um menino com quem decidira “ficar”. E, num canto escuro, empenhado em atos mais próprios de esposos do que de jovens que acabaram de se conhecer, o garoto percebe, sem dar muita importância ao fato, que aquela menina que encarna lascívia diante dele rescende a bálsamo.

Outros exemplos poderiam ser citados, mas não é necessário. Basta saber que é possível, sim, negar a Cristo logo depois de O ter aceito, ofendê-Lo logo em seguida a O louvar. É possível e muitos de nós experimentamos essa sensação por diversas vezes. E, quando o notamos, a nossa vergonha é maior, a nossa dor é mais pungente e – se o bom Deus o permitir – o nosso arrependimento é mais sincero.

É nisso que penso quando assisto à Liturgia de Ramos. Quando o braço que se eleva para exigir a crucificação do Filho de Deus tem ainda no punho cerrado os ramos com os quais há pouco se cantava «Hosana ao Rei de Israel!», é impossível não cobrir o rosto de vergonha. O pecado assim resplandece com maior fealdade: a alcova impregnada de perfume barato é horrenda, mas a alcova que cheira a bálsamo tem um quê de blasfema e sacrílega. É preciso uma consciência muito anestesiada para agir com indiferença diante disso.

E essa verdade, aqui ilustrada com cores tão vivas e marcantes, é exatamente o que acontece a cada vez que trocamos Deus pelos nossos prazeres, cada vez que expulsamos a Graça Santificante de nossas almas para a fazer resfolegar na imundície do pecado. Ou a vida de Graça é menos importante que um ramo de palmeira? Ou nossa alma não brilha, inflamada pela caridade, mais do que a nossa testa de recém-crismados exala perfume? Se nos enchemos de horror quando percebemos que as coisas santas – o ramo nas mãos, o bálsamo na testa – estão ainda presentes em quem crucifica a Nosso Senhor, por que nos escandalizaríamos menos ao notar que esta coisa santíssima, a Graça Santificante, está presente e viva em quem está na iminência de ofender gravemente a Deus?

Inicia-se a Semana Santa: cubramos o nosso rosto de culpa e vergonha, e nos voltemos para Aquele que traspassamos com os nossos pecados. São grandes os nossos crimes, mas maior é a Sua misericórdia. Que o Seu Amor vença as nossas misérias. Que a Sua Paixão nos seja propícia.