Quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha

Causou-me espanto esta notícia segundo a qual uma revista jesuíta (!), em solidariedade à Charlie Hebdo, após o recente atentado, resolveu publicar algumas charges do semanário francês agressivas ao Catolicismo (!!). Segundo explicou originalmente Étvdes, a tese era que rir de certos traços da instituição “Igreja” era «uma demonstração de força» (!), uma vez que mostrava que aquilo a que os católicos estavam realmente ligados [Cristo, suponho] está «além das formas sempre transitórias e imperfeitas [nas quais a Igreja visível se manifesta, acredito]».

[No original francês a que tenho acesso somente de segunda mão: C’est un signe de force que de pouvoir rire de certains traits de l’institution à laquelle nous appartenons, car c’est une manière de dire que ce à quoi nous sommes attachés est au-delà des formes toujours transitoires et imparfaites.]

A extravagante iniciativa recebeu diversas críticas; em particular este pedido de um jesuíta francês por «um pouco de bom senso» merece-nos alguma atenção. Como é possível que um católico ache que o escárnio da sua Fé é algo cuja divulgação possa ser sequer considerada por uma revista religiosa? A falta de visão sobrenatural e a pouca importância com a qual os editores da Étvdes tratam as coisas mais importantes da vida são de estarrecer. A revista – que se diz «de culture contemporaine»… -, com isso, mais parece um veículo de toda a podridão debochada, de mau gosto e descartável que se auto-intitula “cultura” nos dias de hoje. Desse tipo de mundanidades o mundo já está muitíssimo bem servido. Para quê pôr religiosos no desempenho de tão deplorável papel?

As caricaturas foram posteriormente retiradas. No lugar delas, a revista pôs uma nota sobre a «Repercussão», dizendo que a reprodução das irreverências era «um meio de afirmar que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas que [dela] se podem fazer, ainda que os cristãos se sintam ofendidos». Ora, a explicação não faz nenhum sentido.

Primeiro, porque é óbvio que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas. Qualquer ideia é mais forte do que as representações caricaturescas que os seus oponentes possam conceber para a ridicularizar. Isso independe da veracidade ou falsidade da ideia, sendo um simples dado da realidade: por definição, a caricatura é menor do que o caricaturizado. Também a fé islâmica ou o Nationalsozialismus são maiores do que as garatujas de Maomé ou os cartuns antinazistas britânicos da década de 30, por exemplo.

Segundo, porque quem se ofende são as pessoas mesmo, e não as suas crenças. Em qualquer agrupamento humano civilizado, é esta a razão que faz com que certos comportamentos sejam socialmente aceitos e, outros, reprováveis. Pretender que não haja problema com a blasfêmia porque “Deus Todo-Poderoso pode muito bem aguentar uma piada” é uma argumentação que não tem cabimento nem teológica e nem sociologicamente. Teologicamente é um absurdo, porque do fato de Deus ser perfeitíssimo só segue que a Sua glória intrínseca não sofre dano com o pecado dos homens: a glória extrínseca d’Ele, por sua vez, dado que depende não d’Ele próprio mas do mundo que Lhe é externo, aumenta ou diminui de acordo com os homens honrarem-No ou O rejeitarem. E sociologicamente é um nonsense porque, para além de quaisquer possíveis desavenças teológicas, indiscutivelmente o crente é ofendido com a blasfêmia, e isso por si só dificulta o bom e pacífico relacionamento entre os cidadãos que é um dos fins mais óbvios de qualquer sociedade.

Terceiro, por fim, porque a revista comodamente “se esqueceu” do que dissera anteriormente – e que é o seu erro maior. A questão de fundo é que, para os jesuítas da Étvdes, como eles disseram originalmente, há uma distinção radical entre um Cristo invisível e espiritual e as instituições humanas que se reúnem para falar d’Ele, há uma Igreja espiritual que nada tem a ver com a Igreja visível e histórica: isto, sim, explica que eles não vejam problema em escarnecer da Igreja Católica!

O problema é que tal se trata de uma concepção herética incontáveis vezes condenadas: a Igreja Católica é o Corpo Místico de Cristo e, portanto, não existem essas «formes toujours transitoires et imparfaites» além das quais a revista parece crer que Cristo está. Entre incontáveis outros, quem o disse – e muito recentemente – foi o próprio Papa Francisco: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo». O que passa pela cabeça desses jesuítas franceses, que não dão ouvidos ao Papa nem mesmo quando é um jesuíta a sentar-se no sólio pontifício?

«Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita», disse Cristo aos Apóstolos – à Igreja, portanto (cf. Lc X, 16). Estas palavras continuam válidas nos dias de hoje, e em observância a elas podemos muito bem concluir: quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha. Não se trata de nenhuma conclusão teológica de altíssima sofisticação: é matéria de doutrina católica a mais comezinha, da mais básica piedade popular. É questão de bom senso! Bom seria se os editores da Étvdes não tivessem somente retirado os cartoons blasfemos por conta da repercussão que eles tiveram. Bom seria se estes jesuítas tivessem se dado conta de que, na verdade, escarnecem de Cristo quando não se pejam de escarnecer da Igreja d’Ele.

A Igreja universal e as Igrejas particulares

Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica – assim reza o Símbolo Niceno-Constantinopolitano que professamos nas nossas missas. Uma dúvida pode ocorrer a quem se demore a meditar um pouco sobre o assunto: ao que parece, «Igreja» pode significar duas realidades (interdependentes, sem dúvidas, mas a rigor distintas) com as quais os católicos travam contato em sua vida espiritual. Uma, a Igreja particular, concreta, à qual territorialmente pertencem; outra, a Igreja universal, “Católica” propriamente, da qual fazem igualmente parte todos os católicos de todas as partes do mundo. A uma Igreja particular pode pertencer um católico e, outro, não; à Igreja Universal, contudo, pertencem todos os membros (católicos, evidentemente) de toda e qualquer Igreja particular do orbe.

Consideradas as coisas dessa maneira, poderia ser tentador pensar que a Igreja universal fosse formada pela reunião de todas as Igrejas particulares – as quais, em seu conjunto, constituiriam a Única Igreja de Cristo. A relação entre Igreja Universal e Igreja Particular seria, assim, uma relação todo-parte. A ordem de constituição da Igreja seria “de baixo para cima”, do mais concreto ao mais abstrato, do particular ao genérico: das Igrejas particulares para a Igreja universal.

Este assunto foi abordado recentemente no blog do pe. Hunwicke, e a resposta do conhecido sacerdote é taxativa: na verdade, quem vem primeiro é a Igreja Universal. Ela vem primeiro temporalmente, porque já nasce Una em Pentecostes; vem primeiro teologicamente, porque é Ela que é o Corpo Místico de Cristo; e, por fim, vem primeiro ontologicamente, porque as Igrejas particulares provêm d’Ela e não o contrário. Não é exato, portanto, afirmar que a Igreja universal seja a soma das Igrejas particulares: são estas, na verdade, que são realizações d’Aquela.

Não se trata de mero preciosismo: o tema tem relevância, uma vez que (ainda) ganha espaço uma eclesiologia que pretende “construir” a universalidade da Igreja a partir das especificidades das Igrejas particulares. Assim, por exemplo, poderia haver espaço para certo desacordo – mesmo em temas morais ou doutrinários… – entre o Bispo de uma Igreja particular e o Papa, Pastor da Igreja universal. É a antiga tese de Kasper esposada pelo pe. Libânio (p. 127): a “precedência ontológica e temporal” da Igreja universal sobre a particular seria uma “eclesiologia (…) anterior ao Vaticano II”. A perspectiva na qual “a Igreja local está no centro de modo claro e decisivo”, por sua vez, seria a “virada eclesiológica do Concílio Vaticano II”.

Sabe-se bem que essas tentativas de opôr o Vaticano II ao (dito) Magistério pré-conciliar carecem de fundamento: são, sempre, retórica vaniloquente de falsos mestres, cuja propriedade para ensinar a Doutrina Católica é sempre inversamente proporcional aos arroubos com os quais alardeiam as maravilhosas novidades teológicas das últimas décadas. Neste caso, contudo, é ainda mais fácil demonstrar a falsidade da tese: há um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo então Card. Ratzinger e aprovado por São João Paulo II, que a refuta específica e pormenorizadamente.

Trata-se da Communionis notio, que vale uma leitura na íntegra, e da qual cito (destaques no original):

  • «Por isso, a Igreja universal não pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares. Ela não é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular» (n. 9).
  • «Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares» (id. ibid.).
  • «O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral, mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”» (n. 13).

Não há portanto espaço para tergiversar: até os termos são os mesmos. Ao contrário do que diz o pe. Libânio (e outros), portanto, a Igreja universal ainda «é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular», e isso é a única eclesiologia “vigente” – é a boa eclesiologia “moderna” da Igreja “pós-conciliar”, redigida pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (depois Papa) e chancelada por São João Paulo II. É assim que a Igreja  entende-Se a Si mesma. É esta a verdadeira eclesiologia católica. Qualquer coisa que se oponha a isso deve ser prontamente rechaçada como doutrina espúria e já condenada pelo Magistério – inclusive recente! – da única e verdadeira Igreja de Nosso Senhor: a única que pode, com propriedade, dizer ao mundo como Se compreende.

“Igreja: Carisma e Poder”, por pe. Paulo Ricardo

Gostaria de recomendar, com alegria, este Parresía do padre Paulo Ricardo. O reverendíssimo sacerdote [continua a] fala[r] sobre a eclesiologia anti-católica do Leonardo Boff (expressa originalmente no livro “Igreja: Carisma e Poder”), a qual – infelizmente – é a mesma idéia de Igreja que muitos “católicos” têm hoje em dia.

O padre Paulo Ricardo, com maestria, mostra como esta idéia é insustentável à luz da integridade da Revelação – e mesmo das Escrituras Sagradas sozinhas, ao contrário do que tentam fazer parecer alguns “lobos em pele de cordeiro” (ou, pior ainda, “lobos com cajado de pastor”…) que encontramos por aí. E ele conclama: à união com o Papa! À união com Pedro! Porque a comunhão católica, a verdadeira, não é só comunhão “aqui e agora”: é também comunhão com a Igreja do mundo inteiro e com a Igreja de todos os tempos. Não existe uma igreja “do Brasil”, nem muito menos uma igreja “dos dias de hoje”. Se a Igreja é Católica, é porque Ela é universal – tanto no espaço quanto no tempo. Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus.

http://www.youtube.com/watch?v=bMM2mDbA5WQ

A Igreja, de certo modo, nasceu da Tradição; e esta tem os seus Guardiões: o Magistério. A Igreja tem uma hierarquia, com o dever de garantir a transmissão da Graça: desde o Seu Divino Fundador até os dias de hoje. E, para garantir este influxo salutar da Graça, é necessário estar em comunhão com a Igreja, é necessário ser ramo unido à Oliveira. O resto vem como conseqüência.

Porque “a palavra de Deus não precisa ser defendida. (…) A palavra de Deus é um leão que só precisa ser solto; ele faz o resto do serviço. (…) Defender a Fé e a palavra de Deus é simplesmente soltá-la[s]. Se nós soltarmos a palavra de Deus, se nós despertarmos na multidão de católicos que nós temos aqui no Brasil a consciência de que a nossa Fé de dois mil anos ainda vive, é verdadeira e ainda vale… se nós despertarmos isto nos católicos, nós teremos a palavra de Deus como um leão que ruge no nosso país. (…) Não tenhamos medo de nos unir ao Papa, que está unido aos outros Papas e, conseqüentemente, a São Pedro ao longo dos séculos. Não tenhamos medo de ter, ainda hoje, a mesma Fé: a Fé de Pedro, aquela Fé que é rocha firme, na certeza de que as portas do Inferno não prevalecerão”.