Um leitor do blog pede-me que teça alguns comentários sobre a reabertura das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, cujo anúncio ontem surpreendeu o mundo. Parece que não se fala de outra coisa. Não faltou quem comparasse o acontecimento com a queda do muro de Berlim; sou um pouco mais cético com relação às proporções que o dia de ontem é capaz de tomar, mas mesmo assim não me parece possível negar que este 17 de dezembro tenha sido histórico.
Meu ceticismo deriva de um sentimento de pouca consideração para com o cenário mundial contemporâneo: acho-o sofrível, mesquinho e decadente, com atores medíocres completamente incapazes dos arroubos de grandeza que marcaram as grandes personalidades mesmo do passado relativamente recente. Obama não está à altura de Bush pai, nem Raúl Castro tem um mínimo da envergadura de Mikhail Gorbachev; os Estados Unidos hoje em dia são indignos do país que Reagan entregou ao fim do segundo milênio, Cuba não chega aos pés do que foi a Alemanha Oriental e a Revolução Cubana precisa comer muito feijão com arroz para chegar perto da Guerra Fria.
Um pouco de senso de proporções, parece-me, é necessário: o que houve ontem foi uma mera constatação formal de que o regime cubano já havia caído de podre há muito tempo. Não fazia sentido continuar impondo a Cuba sanções que não se costuma aplicar a outros países comunistas do globo – maiores, mais relevantes e mais perigosos do que a pequena ilha dos Castro. A sucursal latino-americana do que foi a U.R.S.S. jamais conseguiu levantar-se muito acima das barras da saia da Mãe Rússia. Havia um quê de desproporcionalidade e incoerência no tratamento que lhe era dispensado, hoje feliz e finalmente revisto. Nada de excepcional.
No entanto, como no meio do descampado qualquer arbusto adquire imponência, assinale-se o fato: Obama e Castro deram-se as mãos e selaram o fim das hostilidades mútuas, e isso tem a sua importância. Penso, aliás, que é até digno de ser celebrado.
Primeiramente, porque é importante que Cuba tenha contato com o mundo: trata-se de um reconhecimento simbólico de que o regime da ilha-prisão fracassou e, agora, é necessário abrir as fronteiras, é necessário garantir certo livre trânsito de bens e pessoas entre o país e o resto do mundo. Nas últimas décadas, foram incontáveis os cubanos que perderam a vida tentando atravessar, em balsas improvisadas, os mares revoltos do Caribe a fim de aportar nas costas liberais dos Estados Unidos da América: reatando-se os laços diplomáticos entre os dois países, é de se esperar que esta aventura, doravante, passa a se realizar de modo mais tranquilo e civilizado.
Além disso, a abertura dos mercados vai ter o inegável efeito positivo de enriquecer a sociedade cubana com aquilo que o engenho humano foi capaz de produzir de melhor: e um pouco de opulência capitalista, nas circunstâncias, não há de reduzir o sofrido povo cubano a um estado pior do que aquele a que o degradou meio século de socialismo. Um pouco mais de livre fluxo de informações, por fim, tanto pode ajudar o resto do mundo a conhecer os horrores do regime dos Castro quanto alargar os horizontes daqueles que vivem isolados em Cuba. E talvez estes percebam que não estão sozinhos. E quiçá estes notem que há um mundo inteiro para além das viseiras que o regime, até ontem, impunha-lhes para que não olhassem para os lados.
Em segundo lugar, não se pode esquecer que se trata de um processo. O embargo econômico não foi levantado, uma vez que isso precisa ser ainda apreciado pelo Congresso dos Estados Unidos; e nem foram feitas concessões americanas unilaterais à ditadura caribenha, posto que a boa vontade dos EUA não prescinde da abertura democrática – ao menos em alguma medida – por parte de Cuba: o acordo é que esta venha pari passu àquela. Não há que se falar em fato consumado, e sim no primeiro passo de um caminho cujo destino não é daqui possível senão vislumbrar.
É ainda digna de nota a atuação (só ontem tornada pública) de um personagem oculto nesta trama: o Papa Francisco. Figura «crucial na mediação entre EUA e Cuba», o Sumo Pontífice tanto escreveu repetidas vezes aos dois países cobrando soluções para o impasse que já se arrastava por décadas quanto inclusive acolheu, no Vaticano, as representações diplomáticas de ambos, criando as situações favoráveis para que as negociações pudessem avançar. Felizes os que promovem a paz, diz a Bem-Aventurança; segue a Igreja de Cristo imiscuindo-se na política de Estados Soberanos e, sem se preocupar com as censuras que porventura Lhe atirem à face, continua fazendo o que é possível também no campo político para soprar no mundo o doce frescor do Evangelho de Cristo.
A este respeito, vale muito a pena a leitura deste texto do “Contos do Atrio”: «[o] papado tem a experiência da diplomacia e da solução de conflitos em praticamente toda a sua história». E é uma sensação assaz aprazível ver a Igreja continuar agindo como sempre agiu, mesmo quando o mundo se levanta contra Ela e Lhe exige que se recolha à insignificância da esfera subjetiva dos seus fiéis. Roma se ri, e não se curva às pretensões descabidas dos poderosos dos dias atuais! Vão longe os Dictatus Papae de Gregório VII e é hoje meio anacrônico dizer que ao Romano Pontífice «é lícito depor o imperador»: no entanto, o Vigário de Cristo, de facto, continua derrubando e reconciliando impérios ao longo da História.
Por fim, quanto aos desdobramentos futuros dessa reaproximação entre os dois países, parece-me cedo para falar o que quer que seja. Naquilo que me parece o pior cenário, é possível, sim, que o influxo de dólares americanos garanta uma sobrevida à ditadura castrista, e é possível que o alinhamento ideológico entre os democratas estadunidenses e os descendentes de Che Guevara imponha renovadas dificuldades práticas aos que lutamos contra o (já hegemônico) esquerdismo latino-americano: ora, que venham! Não nos encontrarão desprevenidos, uma vez que não temos esperanças ingênuas sobre o futuro próximo, e sabemos que não nos é lícito depôr as armas por grandes e poderosos que sejam os nossos inimigos. O cenário geopolítico, neste sentido, pode tornar-se-nos mais hostil, é verdade: mas, por um pouco mais de dignidade aos nossos irmãos cubanos, vale a pena a batalha talvez mais encarniçada e difícil. Para que o povo de Cuba possa respirar um pouco melhor, não nos pejamos de nos bater com um inimigo quiçá mais forte.