Guardar e transmitir a Fé

Vivemos em uma era de excesso de palavras. O avanço das telecomunicações garantiu que toda informação estivesse imediatamente disponível, especializada e atualizada, a qualquer momento, em qualquer lugar, para qualquer pessoa. Para o fim imediato a que elas se propuseram, foi um sucesso extraordinário; penso, no entanto, que o objetivo mediato, o fim último, não foi atingido a contento: porque hoje se tem toda a informação do mundo, mas as pessoas têm sérias dificuldades de se inteirar daquilo que importa. A informação perde relevância na mesma medida em que perde escassez.

Li em um livro há alguns anos (tenho a impressão de que foi “O Filósofo e a Teologia”, de Étienne Gilson, mas não posso afirmar com certeza) que determinado estudioso do Catolicismo certa vez dissera que os Papas deveriam parar de escrever documentos. O motivo era que ele analisara e chegara à conclusão de que seriam necessário vinte e tantos anos para que os documentos que já existiam fossem lidos e assimilados devidamente, e cada nova publicação atrapalhava e atrasava este processo… Na época eu tomei por um chiste despretensioso, mas hoje eu vejo que os melhores chistes são os que portam um fundo de verdade. Ridendo dicere verum.

Hoje começa o Sínodo da Amazônia e as pessoas estão apreensivas ou esperançosas com o que dele pode advir. Falam do horror que é o Instrumentum Laboris e aguardam ansiosamente o documento final do Sínodo (que deve sair no final do mês) ou a Exortação Apostólica (que não tem prazo e pode sair a qualquer momento, ou mesmo nunca vir). De minha parte, penso que são preocupações vãs, que não fazem bem à alma e que temos, uns mais, outros menos, o dever de as afastar dos nossos pensamentos como se afasta uma tentação malsã.

E isso por diversas razões. A primeira e mais óbvia delas é que nós não temos muita influência sobre os rumos do Sínodo. O tema já foi escolhido, os esquemas preparatórios já estão prontos, os participantes já foram convocados, já estão em Roma. O trem já está em movimento. Claro que zelar pela ortodoxia do encontro é o hercúleo dever de quem está envolvido com os trabalhos do Sínodo; à maior parte de nós, no entanto, só o que cabe é rezar pedindo a Deus misericórdia e suplicando ao Espírito Santo que ilumine os Padres Sinodais. E nem isso estamos fazendo direito.

Sugerencias del Sínodo para la Amazonia

A segunda razão é de ordem eclesiológica: é que um sínodo não tem autoridade para mudar o ensino da Igreja Católica. Isso foi lembrado recentemente por Roma tendo em vista o cisma ensaiado pelos alemães, mas é possível ir mais além: nem um Sínodo, nem um Concílio, nem um Papa, absolutamente ninguém tem autoridade para mudar o ensino da Igreja. Qualquer coisa que pareça mudá-lo, deve ser interpretada em sentido diverso ou ignorada. O mais importante é guardar e transmitir a Fé, e não estar permanentemente antenado — com todas as vênias — aos burburinhos prelatícios do dia.

E esta é a terceira razão, talvez a mais forte e mais ousada: é que a linguagem do mundo, em larga escala, já não é mais a mesma, e já não se dá às sentenças, às palavras, o mesmo peso, o mesmo alcance que se lhes dava antigamente. Parece-me que a crítica à ambiguidade da Igreja pós-conciliar, à anfibiologia dos textos recentes do Magistério, outra coisa não é que a insatisfação com este dado da contemporaneidade: hoje em dia se pensa mal e se fala mal. Não há rigor sistemático, não há precisão de termos, não há ressalvas e exceções tratadísticas no corpo das exposições, não há sequer exposições estruturadas. O discurso é fluido, tem saltos, tem elipses, tem pressupostos. Isso torna a hermenêutica atual muito mais difícil do que jamais foi interpretar os documentos papais, mas isso não autoriza ninguém a tirar conclusões disparatadas, nem para um lado, nem para o outro.

Note-se que aqui se faz meramente uma descrição da realidade. Se a Igreja deveria adotar os modos de falar contemporâneos ou se, ao contrário, tinha o dever de emprestar à sua voz o máximo de cuidado e precisão possíveis, isto é uma outra discussão. No entanto, a mim parece que Ela vem adotando a primeira alternativa, e isso impõe alguns condicionamentos aos que desejamos continuar católicos sem enlouquecer. A realidade é que muitos dos discursos de Roma não têm a pretensão de exaurir um assunto, nem de valer absolutamente, e portanto eles devem ser recebidos e a eles se deve aquiescer de acordo com a sua natureza. Mais uma vez, o que importa é guardar e transmitir e Fé.

É possível apontar ainda uma quarta razão, que não conforta e nem justifica nada, mas ajuda a colocar as coisas em perspectiva: nós já estivemos muito pior. Autorizou-se um dia a comunhão na mão! Jogou-se fora um rito milenar e, no seu lugar, foi imposto à Igreja inteira uma liturgia fabricada! E a Igreja, com todas as suas feridas, continuou levando as almas para o Céu, permaneceu a única Arca da salvação fora da qual os homens pereciam no Dilúvio. Não estamos na iminência de nenhum ponto irreversível, grande apostasia ou prevalência das portas do Inferno sobre a Igreja de Nosso Senhor. Às vezes é sinal de pouca Fé pintar as coisas com cores mais feias do que elas merecem. Respiremos fundo e sigamos combatendo os combates e carregando as cruzes que apraz a Deus nos enviar.

E, finalmente, uma quinta razão: vivemos em uma época de muitas palavras, e as coisas que são ditas hoje perdem a importância diante das coisas que serão ditas amanhã. Passou-se o Sínodo da Nova Evangelização, o da Família, o da Juventude; centenas, milhares de páginas foram escritas. Certamente ninguém as leu todas. Os que as escreveram provavelmente não tinham sequer a pretensão de que elas fossem todas lidas. Tudo isso é um tributo pago aos nossos tempos, mas é também uma armadilha em que nós às vezes nos enredamos. Ora, é impossível acompanhar todas essas coisas: e, se é impossível, então não é importante. Não devemos manter os olhos no nosso tempo; é na Eternidade que eles devem estar fitos.

Em tempos de crise, guardar e transmitir a Fé. Antes de dar esses passos não devemos ousar nenhuns outros; depois de os termos dado, mais nenhum será necessário.

Et Verbum caro factum est

O Cristianismo é a religião do Verbo Encarnado, do Logos e, por isso, trata-se sem dúvidas de uma religião eminentemente intelectual. De facto, em sendo a racionalidade uma característica própria do ser humano, e tão intimamente sua que o distingue de todo o resto da Criação, é de se esperar que a Religião Verdadeira possa elevar o homem também – e, aliás, principalmente – em sua capacidade racional. Seria completamente absurdo pretender que a Religião, que trata da relação do homem com o Sagrado, o seu Princípio verdadeiro e seu Fim último, fosse descuidar daquilo que é intrínseco e essencial à natureza humana: a sua capacidade intelectual.

A oposição entre Fé e Razão, entre religião e racionalidade, portanto, é não apenas falsa como também absolutamente vazia de sentido. Os que postulam tal incompatibilidade ignoram quer a natureza humana, quer a natureza da religião. Nunca existiu – e nunca nem poderia existir – uma religião que se apresentasse como “irracional”, que fosse estranha à razão humana, a ela oposta ou mesmo que com ela não se importasse. O problema de Deus, posto em seus termos filosóficos elementares, pode também ser exposto da seguinte maneira (que Gilson já apontava no seu “Deus e a Filosofia”, e que cito de memória): dado que existe racionalidade no mundo, como postular um Princípio que não seja, ele próprio, também racional?

Estas considerações prescindem, até o presente momento, de qualquer credo específico. Não raro encontram-se pessoas que, à vista das provas metafísicas da existência de Deus (como as Cinco Vias tomistas, por exemplo), e não lhes podendo negar a força, afirmam que, do Primeiro Motor Imóvel à Trindade Santa, vai uma distância muito grande que a razão humana “sozinha” não é capaz de atravessar. Isto, concedemos facilmente (até porque nunca foi segredo que a Fé ensina coisas que, embora não contrárias à razão humana, por esta sozinha não poderiam ser descobertas); o que não concedemos é que tal constatação (aliás, do óbvio) seja suficiente para impugnar a racionalidade quer da própria existência de Deus, quer da Doutrina Cristã.

Porque, vejamos: da mesma forma como é necessário que haja um Primeiro Motor que seja a origem do movimento no Universo, que haja um Ser Subsistente no qual esteja a origem do ser dos entes criados, é também necessário que haja uma Inteligência que seja a causa da natureza racional encontrada no mundo. O Primeiro Princípio, portanto, é necessariamente racional. A esta conclusão é capaz de chegar a teologia natural; e,  ao encontro dela, vem a Revelação Cristã dizer que in principio erat Verbum.

E, ainda: se o Primeiro Princípio é racional, então Ele é pessoa, porque pessoa – na definição de Boécio adotada por Santo Tomás de Aquino – é precisamente uma subsistência individual de natureza racional. Ora, o Primeiro Princípio é subsistente por definição. É necessário que Ele seja de natureza racional, para explicar a existência da racionalidade no mundo. Logo, o Primeiro Princípio é pessoa. Deus é pessoal, e não é (ainda) preciso que as luzes da Fé venham em auxílio à razão humana para que este conceito de Deus seja pelos homens atingido.

Se, portanto, Deus é Pessoa, Ele naturalmente pode relacionar-Se com os homens: segue-se daí, portanto, que a possibilidade de uma Revelação é perfeitamente coerente com a natureza humana e com a natureza divina conhecida a partir da razão humana. E então a Revelação judaico-cristã vem – mais uma vez – ao encontro deste anseio legitimamente humano, integralmente humano. Não se trata de uma “fuga” da realidade, de uma superstição irracional, mas ao contrário: da realização concreta de uma perfeita possibilidade racional. O homem investiga o Universo e conclui que há um Deus; investiga a si próprio e conclui que este Deus possui inteligência. E anseia por encontrar este Princípio racional, este Deus que é a causa da sua própria existência.

E Deus veio ao encontro do Homem. E uma Luz brilhou nas Trevas. E, a despeito das Trevas não A compreenderem, o Verbo – que no Princípio estava junto de Deus, e era Deus –  Se fez Carne, e habitou entre nós.

Sancte Thoma de Aquino, ora pro nobis

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[Benozzo Gozzoli (1421-1497), Trionfo di san Tommaso, 1471, Louvre, Parigi.]

Hoje a Igreja celebra Santo Tomás de Aquino, o mais santo dos homens sábios e o mais sábio dos homens santos. Recomendamo-nos à intercessão do Doutor Angélico; que aprendamos dele a colocar todos os dons com os quais a Divina Providência nos agraciou a serviço de Deus e de Sua Santa Igreja.

Além da verdade que não se pode conhecer sem a revelação divina, muitas verdades há que não estão fora do alcance da razão humana, mas foram, não obstante, reveladas por Deus ao homem. Por que? Porque é necessário à salvação do homem que estas verdades sejam conhecidas, e, desde que, por várias razões, nem todos os homens são capazes de descobri-las através da indagação filosófica, Deus revelou-as a todos. Ainda que reveladas a todos, estas verdades são cognoscíveis racionalmente. Toda investigação racional dedicada à investigação daquilo que, muito embora revelado por Deus, é conhecível racionalmente, constitui parte da Teologia, tal como a entende S. Tomás de Aquino.

Um fato basta para prová-lo. A Summa Contra Gentiles é um tratado puramente teológico. Foi às vezes chamada a “Suma filosófica” porque contém de fato grande proporção de especulação puramente racional. Mas o prólogo mostra, de modo claro, que a intenção do autor, ao escrevê-la, foi puramente religiosa. Reconhecemos aí o Dominicano que estamos habituados a ouvir na Summa Theologiae, quando, no capítulo II da Contra Gentiles, S. Tomás faz suas as palavras de S. Hilário: “Estou consciente de que devo a Deus a principal obrigação de minha vida, que minha palavra e minha inteligência possam falar dele.” Além disso, São Tomás diz (C.G. II, 4, 6) que, na Contra Gentiles, ele segue a ordem teológica que procede de Deus para a criatura, e não a ordem filosófica que procede da criatura para Deus. Qual é, na Contra Gentiles, a proporção da especulação destinada às verdades reveladas que são inacessíveis à razão sem o auxílio da Fé? Uma quarta parte do todo. O próprio S. Tomás de Aquino o diz. No Prólogo do Lv. IV. 1, 10, S. Tomás assinala a mudança de atitude, de método e de ordem: “no que precede, as coisas divinas foram objetos de exposição na medida em que a razão natural pode obter conhecimento delas pelas criaturas: imperfeitamente, é claro, e conforme à capacidade de nossa inteligência… Agora resta falar daquilo que foi divinamente revelado para nós como algo que se deve acreditar, pois que excede à razão.” Portanto, na Summa Contra Gentiles, três partes da obra estudam as verdades acessíveis à razão humana; e ainda assim todas as coisas nela são Teologia. Evidentemente, S. Tomás adotou este plano porque desejava mostrar aos pagãos e infiéis, que não acreditavam nas Escrituras, quão longe a razão humana pode ir sozinha a caminho da revelação cristã, mas, proceder assim, é precisamente o que São Tomás de Aquino chama ensinar Teologia. Tudo o que está na Contra Gentiles, inclusive a ordem de exposição, é Teologia. Tudo o que está na Summa Theologiae (e o próprio nome bastaria para o tornar claro), é Teologia. Numa palavra, tudo o que ensinamos nas Escolas como Filosofia de São Tomás de Aquino, foi primeiro ensinado por ele nos tratados teológicos, como parte da verdade teológica.

Seja portanto isto ponto pacífico: como a Teologia inclui tudo o que se pode conhecer à luz da revelação, inclui o que S. Tomás chamou: “a verdade sobre Deus alcançada pela razão natural”, e que, no entanto, Deus “convenientemente propôs ao homem para crer” (C. G. I, 4, título). Isto não é tudo. Além daquilo que o homem não pode conhecer sem a revelação, e além daquilo que o homem conhece, de modo mais fácil e perfeito se lhe é revelado, há o imenso campo de tudo aquilo que, embora não atualmente revelado, pode ser usado pelos teólogos como meios para estabelecer, de modo racional, a verdade revelada, quando isto é possível, ou, ao menos, para defendê-la contra as objeções dos adversários. Na doutrina de São Tomás de Aquino, tudo o que pode servir ao principal objetivo do teólogo, que é fazer conhecer melhor o sentido da verdade revelada, é, pela mesma razão, Deus que a revelou sob a razão formal da revelação, e, portanto, pode incluir-se na Teologia. S. Tomás de Aquino não fixou limites à extensão possível do campo da especulação teológica. Chama revelabilia, “revelável” todo o material não especificado que, segundo o seu talento, gênio, ou aprendizado pessoal, o teólogo pode pôr a serviço da Teologia.

A Filosofia, incluindo todas as ciências que esta palavra evocava na linguagem de Santo Tomás, pode, portanto, integrar-se na Teologia, sem abdicar de seus métodos próprios ou quebrar a unidade da sabedoria teológica. A serviço da Teologia a Filosofia guarda as suas características, mas serve a um fim mais alto.

Esta noção elevada da Teologia assume sentido total à luz de uma observação feita várias vezes por Santo Tomás de Aquino, à qual ele dá grande relevância, ao passo que nós relegamos como não importante para nossos problemas. “Os objetos que são matérias das diferentes ciências filosóficas podem ser ainda tratados por esta única doutrina sagrada, sob um aspecto, a saber, na medida em que são divinamente reveláveis. Deste modo, a doutrina sagrada traz a marca da ciência divina, que é uma e simples, ainda que se estenda a todas as coisas.” (S. Teol. Ia., q. 1, a. 3, ad 2 um).

Estamos no centro da noção tomista de Teologia, concebida como ciência. Todo o saber humano está, nessa concepção, à disposição do teólogo, que dele se serve em vista do seu fim. Não há limites? Sim, realmente, há limites. Nem todo conhecimento humano é igualmente importante para a interpretação da verdade revelada. Ainda assim, esta restrição se deve antes às limitações do homem do que aos objetos das disciplinas filosóficas ou científicas. Na ciência divina, nada conhecível é sem importância para Deus. Na ciência teológica, nada do que nos pode fazer conhecer melhor a Deus é sem importância. Como diz S. Tomás de Aquino na Contra Gentiles, com energia insuperável: muito embora instrua o homem principalmente sobre Deus, a fé cristão faz também do homem, “através da luz da revelação divina, um conhecedor das criaturas” (per lumen divinae revelationis eum criaturaram cognitorem facit), de tal modo que “nasce, então no homem uma espécie de semelhança com a sabedoria divina” (C. G. II, 2, 5). E, realmente, se a Teologia pudesse conhecer as coisas como Deus as conhece, conheceria todas as coisas sob uma só luz, a luz divina. Não é esse conhecimento acessível ao homem nesta vida, mas, a Teologia, pelo menos, nos dá uma pálida idéia da espécie de conhecimento que é aquela sabedoria, que tudo abrange.

[Étienne Gilson, “O Doutor da Verdade Cristã”]

Encadeando os argumentos

Comecemos pelo estudo do orgulho. Um fato que para logo se apresenta no vestíbulo das nossas indagações é o da sua freqüência na incredulidade. Quase todos os homens notáveis pela inteligência e hostis à fé foram também notoriamente soberbos; uniram a uma estima de si, não raro superior à própria valia, um desprezo altivo dos merecimentos alheios.
[Pe. Leonel Franca, “A Psicologia da Fé & O Problema de Deus”, pág. 121. Ed. PUC-Rio/Loyola, Rio de Janeiro, 2001]

Já mais de uma vez fui questionado quando, no meio de algum debate sobre religião, respondi simplesmente, como motivo para justificar determinado ponto, que “a Igreja disse”. Ora – poderia dizer alguém -, dizer “a Igreja disse” não é um argumento; é antes uma falácia, argumentum ad verecundiam, pois o simples fato de uma autoridade ter dito alguma coisa não faz com que a coisa dita seja verdadeira.

O argumento cristão definitivo, a instância última para além da qual não é possível apelar, é sem dúvida alguma o juízo da Suprema Autoridade da Igreja Católica; na célebre expressão de Santo Agostinho, Roma locuta causa finitaRoma falou, encerrou-se a questão. Isto é, sim, um argumento, mas é preciso reconhecer que tal argumento não tem valor sem uma série de pressupostos que o legitimam e sem os quais, de fato, ele não faz muito sentido. É necessário percorrer um longo caminho até se chegar ao Roma Locuta; e se os católicos não o percorrem de uma ponta a outra diante de cada situação prática com a qual se deparam, fiando-se sempre na palavra da Igreja, é porque já estão convencidos de todas as premissas que o legitimam e para o qual conduzem inelutavelmente. Como, p.ex., ao dirigir um carro, as pessoas simplesmente ligam o carro e saem, sem se preocuparem com os complexos conhecimentos mecânicos e eletrônicos sem os quais os carros não poderiam andar. A diferença é que os carros quebram, porque são obras humanas; já a Igreja é indefectível, por ser obra da mão de Deus.

O pe. Leonel Franca, no texto em epígrafe, fala-nos sobre o que ele chama de “obstáculos morais” à Fé. Com uma tremenda perspicácia, mostra-nos o insigne autor que – ao contrário do que alegam aqueles que são hostis à Igreja – os motivos que levam os homens a se afastarem da Igreja, muitas vezes, não são de origem intelectual, e sim moral. “É através de um programa de viver – diz o pe. Franca – que optamos por uma fórmula de pensar” (id. ibid., p. 119). Para o homem, crer é uma atitude razoável; há muitos que não crêem porque a Fé traz junto com ela exigências de vida que, não raro, chocam-se com o “programa de viver” por eles adotado.

Voltemos à questão da autoridade; se, por um lado, qualquer um há de convir que a mera afirmação de alguma coisa por parte de alguém, por mais douta e honesta que seja esta pessoa, não faz com que ipso facto a coisa afirmada se transforme em verdade incontestável, por outro lado é igualmente óbvio que a recusa sistemática em se levar em consideração as colocações das demais pessoas, pelo simples fato de que tais colocações não constituem demonstração definitiva, é uma atitude muito pouco razoável. Ora, seria simplesmente impossível viver em um mundo no qual todas as afirmações de todas pessoas precisassem ser postas à prova para que fossem aceitas. Ao contrário, é plenamente razoável que as pessoas assimilem, na sua vida, as experiências e o conhecimento daqueles que lhes precederam, sem precisarem refazer por si próprias todos os caminhos que trilharam os que vieram antes delas; a menos que – nas palavras do pe. Franca – sejam detentoras de “um desprezo altivo dos merecimentos alheios”…

Mas passemos a vista, ainda que do alto e bem superficialmente, por estes caminhos trilhados; olhemos para a história do Cristianismo, demonstração eloqüente da sua veracidade e confiabilidade. Tenhamos em conta que a pequena sociedade fundada por um Homem da Galiléia, dois mil anos atrás, cresceu e se desenvolveu ao longo dos séculos e se transformou na maior Família que o gênero humano já conheceu; a Igreja nascida do lado aberto de Nosso Senhor na Cruz transformou-se n’Aquela que mudou os rumos da História e construiu a civilização ocidental. Ora, não há efeito sem causa; qual é porventura a causa do extraordinário crescimento e da ainda mais extraordinária sobrevivência deste grupo de pessoas as mais distintas, unidas – ultrapassando os séculos, as culturas e os povos – ao redor do legado de um Carpinteiro de Nazaré? É porventura razoável imaginar que, sendo conhecidas as causas de um sem-número de efeitos, justamente este – sem sombra de dúvidas o mais portentoso que a História é capaz de narrar – não tenha nenhuma causa? É sensato postular que, no mundo em que o homem explica todos os fatos, justamente este esteja condenado a permanecer sem explicação?

Santo Tomás de Aquino já evocava este raciocínio, para demonstrar a importância da Fé para o cristão. São tão fortes e convincentes as palavras do Doutor Angélico que peço licença para deixá-lo falar por si próprio:

Se um rei enviasse suas cartas com o selo real, ninguém ousaria dizer que aquelas cartas não eram do próprio rei. É claro que as verdades nas quais os Santos acreditaram e que nos transmitiram como sendo de fé cristã, estão seladas com o selo de Deus. Tal selo é significado por aquelas obras que uma simples criatura não pode fazer, isto é, pelos milagres. Pelos milagres Cristo confirmou as palavras dos Apóstolos e dos santos.

Podes, porém, replicar, dizendo que ninguém viu esses milagres. É fácil responder esta objeção. É conhecido que toda a humanidade prestava culto aos ídolos e que a fé cristã foi perseguida, confirmando-o, além do mais, a história do paganismo. Converteram-se todos a Cristo, porém, em pouco tempo. Os sábios, os nobres, os ricos, os governos e os grandes converteram-se pela pregação de poucos homens rudes e pobres. Ora, não há saída: ou se converteram porque viram milagres, ou não. Se foi porque viram milagres que se converteram, a tua objeção não tem sentido. Se não o foi, respondo que não poderia haver maior milagre que esse de todos os homens converterem-se sem ter visto milagres. Deves te dar por vencido.

Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos. Porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível.
[Santo Tomás de Aquino, “Exposição sobre o Credo”]

A História da Igreja Católica é simplesmente inexplicável, quando se a considera sob uma ótica meramente naturalista. Ao contemplar esta longa sucessão de séculos, por meio dos quais a Barca de Pedro navegou – não sem tempestades! – incólume e intacta, o espírito humano livre de preconceitos inclina-se naturalmente à conclusão de que está diante de alguma coisa extraordinária. Étienne Gilson repete isso, no seu estilo peculiar, que peço mais uma vez permissão para aqui reproduzir:

Não se vê na história nenhum caso de uma sociedade espiritual feita de homens unidos pelo único amor a uma verdade comum que transcende a razão e mantendo-a durante vinte séculos, sem nunca traí-la. Procura-se não menos em vão um outro exemplo de uma fé religiosa alimentando, durante dois mil anos, um fluxo ininterrupto de especulação racional e, para dizer tudo, de filosofia, toda ocupada em definir seu objeto de especulação, em defender-se dos inimigos de fora, em munir-se de razões, em conquistar alguma intelecção de um mistério que ela aliás não ousa evacuar. A admiração se instala diante dessa interminável linhagem de doutores de múltiplas origens, de algum modo se sucedendo ao longo dos séculos, para manter intacto o ensino de um homem que, no limite de três anos, pregou a doutrina da salvação aos pobres e aos humildes. Três anos somente de vida pública, e esse imenso rio de doutrina circulando por todo o lado há vinte séculos, sem jamais permitir que príncipes, povos, filósofos, enfim, nenhum poder deste mundo o desvie um pouco que seja do seu próprio curso. Nada pode substituir aqui a experiência direta e pessoal dessa história. Aqueles a quem a vida concede a oportunidade de adquiri-la sabem que ela dá invencivelmente a impressão de que uma força mais do que humana atua incessantemente nela. Podemos dizer que o simples olhar para esses vinte séculos de fecundidade doutrinal, que nada de humano pode explicar, nos coloca diante de uma prova manifesta da existência de um Deus imediatamente presente em sua Igreja. Mas talvez tal visão dessa história pressuponha uma longa vida despendida a estudá-la.
[Gilson, Étienne; “O Filósofo e a Teologia”, pp. 212-213. São Paulo, Paulus, 2009]

Eis, portanto, os argumentos, alcançáveis pela Razão Humana, que testemunham em favor da Fé. Há um Deus; houve um dia um Homem que Se disse Deus; os portentosos sinais por Ele realizado e o extraordinário sucesso – aliás, imprevisível e inverossímil – alcançado por Sua obra ao longo dos séculos concedem-Lhe credibilidade; a Igreja por este Homem fundada, até aqui, mostrou-Se incompreensivelmente, por vinte séculos, fiel a Ele. Eis os fatos. Eis o caminho que já foi incontáveis vezes percorrido por aqueles que nos precederam e que nos falam da Fé Católica. Eis as longas veredas que conduzem à filial submissão que o católico tem à Suprema Autoridade da Igreja Católica, sem que ele próprio precise percorrê-las por si mesmo a cada vez que se deparar com um ensino da Esposa de Cristo: basta-lhe saber que tais caminhos existem, e que outros já o percorreram antes dele.

Não é uma atitude razoável reinventar a roda a cada vez que ela precisar ser utilizada, nem mesmo negar a sua existência porque não fomos nós próprios a produzi-la. Não é sensato menosprezar os ensinamentos daqueles que nos precederam pela simples razão de que não fomos nós mesmos a adquiri-los. Não é inteligente desdenhar daquilo que nos dizem os que são mais sábios do que nós, meramente por uma recusa obstinada em admitirmos que possa existir uma realidade com a qual não tivemos ainda contato. Escutemos, portanto, a Igreja; até mesmo porque a reinvenção da roda é trabalhosa – segundo Gilson, talvez despenda uma vida inteira – e não há sentido em condicionarmos a nossa aceitação de uma conclusão à sua “refazenda” por nós próprios. Não é necessário que trilhemos todos os caminhos que já foram trilhados; convençamo-nos, ao invés disso, que eles existem, podem ser percorridos e já o foram por diversas vezes. Concedamos crédito à experiência dos que nos precederam. E termino com mais uma citação do filósofo francês, nas páginas finais do seu livro já citado:

[D]irei que, na noite de uma vida passada no estudo da filosofia cristã, plenamente consciente da evolução histórica por ela sofrida – exatamente aquela que o Papa Leão XIII descreveu com tanta lucidez em Aeterni Patris -, não sou menos consciente da milagrosa fidelidade à fé cristã que ela testemunha. (…) Relatando minha experiência, digo somente que, caso tivesse encontrado algo mais inteligente e mais verdadeiro do que aquilo que São Tomás disse sobre o ser, eu me apressaria em dizê-lo a meus contemporâneos. Contudo, acabei por concluir que sua metafísica é verdadeira, profunda, fecunda, e é essa verdade sem originalidade que devo me contentar em transmitir-lhes.

[…]

Como se poderia acreditar que esse belo cargueiro, que há tantos séculos percorreu tantos caminhos sem nunca mudar de rota, esteja hoje prestes a trocar de direção ou chegar ao fim da linha? Nem a energia lhe falta para seguir sua viagem, nem a assistência daquele que prometeu estar conosco até a consumação dos séculos.
[Gilson, op. cit., pp. 236-237. 239]

Eis os fatos que atestam o valor do Cristianismo, eis as razões que a Razão Humana aduz em favor da Fé, eis o tributo que a História presta à Igreja de Nosso Senhor.

A precisão das imprecisões

O acesso a elas [às encíclicas papais] não é dos mais fáceis. A dificuldade não está no fato de serem escritas num latim de chancelaria florido de elegâncias humanistas, mas no fato de nem sempre ser facilmente perceptível o sentido da doutrina. Decide-se então traduzi-las e, ao tentar fazê-lo, acaba-se por compreender pelo menos a razão de ser de seu estilo. Não se podem substituir os termos desse latim pontifical por outros emprestados de alguma dessas grandes línguas literárias modernas, e muito menos desarticular as frases para articulá-las de outra maneira, sem logo perceber que, por mais cuidadoso que se tente ser, o original perde muito de sua força ao longo da tradução, e não somente de sua força, mas de sua precisão, o que ainda não é o mais grave, pois a verdadeira dificuldade, bastante conhecida daqueles que se arriscam nesse desafio, é a de respeitar exatamente o que se poderia chamar, sem nenhum paradoxo, de a precisão de suas imprecisões. A precisão sabiamente calculada de suas imprecisões desejadas. Quantas vezes não se pode pensar, após madura reflexão, que se sabe o que, num determinado aspecto, a encíclica quer dizer, mas ela não o diz expressamente e, sem dúvida nenhuma, ela tem seus motivos para interromper, em determinados princípios, a determinação mais precisa de um pensamento preocupado em se manter sempre aberto, pronto a dar acolhida a novas possibilidades. Além do curso de teologia que lhes faz falta, e que demandaria vários anos, seria útil aos filósofos cristãos freqüentar por algum tempo uma escola de aperfeiçoamento, uma finishing school, situado em algum lugar entre a Basílica do Latrão e o Vaticano, e vinculada preferencialmente à Gregoriana, onde se ensinaria a arte de ler uma encíclica pontifícia.
[Gilson, Étienne; “O Filósofo e a Teologia”, pp. 184-185. São Paulo, Paulus, 2009]

Eu já tive a oportunidade de comentar aqui sobre o que eu considerava ser a verdadeira intransigência, necessária aos católicos de todos os tempos. Aproveito o texto em epígrafe para fazer algumas outras considerações sobre o tema, que tem uma importância capital nos dias de hoje, em que os católicos atravessam, além de outras, uma crise intelectual.

Desnecessário julgo reafirmar a importância capital das expressões com as quais os dogmas católicos foram expostos ao longo dos séculos; a Fé é uma virtude intelectual, definida como a adesão – voluntária e movida pela graça – do intelecto às verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja. A célebre definição do Doutor Angélico (credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam) complementa-se com o Actus Fidei ([m]eu Deus, eu creio tudo o que Vós revelastes e a Santa Igreja nos ensina) e com o Credo do Povo de Deus ([n]ós cremos todas essas coisas que estão contidas na Palavra de Deus por escrito ou por tradição, e que são propostas pela Igreja): não há veritati divinae à qual aderir que não nos venha mediante o ensino da Igreja, de modo que negar este é negar a Verdade e, por conseguinte, perder a Fé.

No entanto, permanece sempre a radical incapacidade da linguagem humana de exprimir plenamente o infinito. As fórmulas utilizadas pela Igreja expressam, efetivamente, a Verdade Divina, e isto é evidente e incontestável. Não esgotam, contudo, esta mesma Verdade; há sempre espaço para que – sem que as fórmulas antigas deixem de ser verdadeiras, óbvio – as coisas sejam ditas de uma forma diferente. Gilson fala, aliás, de uma maneira muitíssimo curiosa, das imprecisões desejadas com as quais a Igreja se expressa. E isso foi escrito antes do Concílio Vaticano II…

Por que motivo seria útil à Igreja manter imprecisões no Seu ensinamento? Justamente por uma questão de fidelidade à Verdade Revelada, que a Igreja não pode trair com as fórmulas que propõe. Não há interesse da Igreja em “esgotar” um certo aspecto do Dogma, exatamente porque Ela sabe que a Verdade é “inabarcável” e, se por um lado é possível garantir a perfeita correspondência entre uma fórmula e a Verdade, por outro lado não é possível fechar à inteligência humana a possibilidade de expressar a Verdade de uma outra maneira.

E, mais ainda: se por um lado é relativamente fácil dizer o que uma coisa não é, em contrapartida é extremamente difícil dizer o que a mesma coisa é. Dizer o que algo não é, é excluir uma tese errônea; dizer o que algo é, é excluir todas as teses, concebidas ou por conceber, que contradigam a afirmação realizada. Para utilizar um exemplo meramente ilustrativo, se eu mostro uma mão fechada e pergunto para alguém o que tem dentro, é muito mais fácil ele dizer o que não tem dentro (não tem um elefante, não tem um piano de cauda, não tem um alienígena) do que o que tem dentro. Muitas vezes é necessário dizer o que as coisas não são, apontar simplesmente o erro, ao invés de afirmar categórica e univocamente o que elas são; e a Igreja, que é sábia, muitas vezes apenas delimita o espaço da investigação teológica, sem contudo traçar uma linha única que deva ser universalmente seguida. Para tanto, Ela Se utiliza de imprecisões deliberadas.

Há, infelizmente, incontáveis exemplos de pessoas que não percebem e não respeitam estas imprecisões desejadas no ensino da Santa Igreja. A maneira mais fácil de se apontar uma “contradição” entre o “Magistério pré-conciliar” e o “Magistério pós-conciliar” é, exatamente, atropelar este terreno voluntariamente impreciso e restringir os limites que a Igreja manteve deliberadamente flexíveis. É sem dúvidas necessário, sim, ser intolerante e defender a Doutrina Católica de deturpações; no entanto, é igualmente necessário ter a sensibilidade intelectual para identificar e respeitar, nos ensinos dos Papas, “a precisão de suas imprecisões”. Referindo-se a tal arte, que não é fácil, Gilson diverte-se falando que, para dominá-la, seria necessário um curso específico em Roma para isso… no entanto, quantos leigos auto-intitulados teólogos nós encontramos, atacando – sem pudor e sem prudência – a Igreja de Nosso Senhor!

Que a Virgem, Sedes Sapientiae, alcance-nos as luzes do Alto, do Espírito Santo de Deus, a fim de que não percamos o rumo em meio aos nossos combates. E que nos esforcemos para estarmos sempre muito bem unidos à Igreja de Nosso Senhor, em comunhão afetiva e efetiva com o Sucessor de Pedro, o Doce Cristo na Terra e cabeça da Igreja de Deus, Ela que é Coluna e Sustentáculo da Verdade, contra a qual podemos ter a certeza de que as portas do Inferno jamais prevalecerão.

Os falsos símbolos natalinos

Para se acabar com o Natal, não é sempre necessário atacá-lo frontalmente. Uma das formas de se descristianizá-lo é esvaziá-lo do seu significado próprio, enchendo-o de futilidades, soterrando sob uma avalanche de elementos estranhos aquilo que lhe é essencial. Isso nós podemos ver com particular clareza, por exemplo, nas “decorações natalinas” das nossas cidades. Árvores, renas, neves, bolas, grinaldas, papais noéis, luzes piscando, etc, etc. O número de presépios – enfeite natalino por excelência – é irrisório diante do volume de coisas estranhas à festa celebrada.

Em uma cidade da Alemanha, vi há alguns dias uma notícia segundo a qual o Papai Noel havia sido proibido. “Zona livre de Papai Noel”. Um amigo gosta de me dizer que a figura natalina é vermelha e branca por causa de um comercial da coca-cola (antes ele era, sei lá, verde); não sei qual o grau de confiabilidade que merece a informação, mas me parece um fato incontestável que o “Bom Velhinho” dos nossos natais está longe o bastante do verdadeiro São Nicolau que (supostamente) o inspirou para que não tenhamos nenhum problema em rejeitá-lo como um símbolo espúrio e usurpador do verdadeiro espírito do Natal.

Num livro [recém-publicado] que estou lendo de um filósofo francês (Étienne Gilson, “O Filósofo e a Teologia”, Paulus, Santo André, 2009), falando em certo momento sobre a educação das crianças, ele diz:

A oração mais simples a Deus implica a certeza da sua existência. A prática dos sacramentos insere a criança numa vida de relações pessoais com Deus, não lhe parecendo evidente que essa vida possa ser desprovida de objeto concreto. As palavras “Deus”, “Jesus”, “Maria” logo significam para ela pessoas reais. É preciso que elas existam, pois ela lhes fala. A Igreja vela cuidadosamente para que nenhum cristão, por mais jovem que seja, pronuncie palavras para si mesmo destituídas de sentido. As controvérsias sobre a transubstanciação não atormentam a cabeça da criança que faz a primeira comunhão, mas sua piedade em relação à Eucaristia não se engana de objeto. (…) Sua religião inteira lhe é dada de uma só vez nesse grande sacramento e se ela ainda não a conhece senão imperfeitamente, ela já pode vivê-la perfeitamente. A criança não pode ser um doutor da Igreja, mas pode ser um santo.
[op. cit., Cap. I – “As infâncias teológicas”; p. 18]

Eu não saberia dizer com certeza se, para a criança, “Deus” e “Papai Noel” são conhecimentos da mesma ordem, capazes de provocar-lhe confusão; no entanto, eu sei que, para muitos adultos, são sim, de modo que a (in)capacidade cognitiva daqueles que (supostamente) já atingiram a idade da razão me faz temer pelos efeitos que possam advir da exposição das crianças, no mesmo natal, simultaneamente ao Menino Jesus e ao Papai Noel. Eu seria capaz de concordar que não há problema intrínseco com a fantasia, mas os dois problemas aqui levantados são (1) a virtual substituição da realidade pela fantasia, na medida em que o Papai Noel é amplamente preferido ao Menino Jesus e (2) a questão – bastante discutível – sobre se as crianças têm capacidade cognitiva para separar devidamente a realidade da fantasia.

É duro dizer isso, mas é necessário recristianizar o Natal – recristianizar o Nascimento de Jesus Cristo. Para citar mais um exemplo: própria substituição do “Feliz Natal” por um genérico “Boas Festas” ilustra bastante essa necessidade – aliás, há poucos dias saiu uma notícia segundo a qual uma mulher alega ter sido demitida por desejar “feliz Natal”, contrariando a orientação da empresa para a qual trabalhava de só dizer “boas festas”. Afinal de contas, qual o problema com as renas e os duendes, o Papai Noel e a neve, os pinheiros e as bolas, as grinaldas e as boas festas, as luzinhas piscando e tudo o mais? Ora, essas coisas – repitamos – são no mínimo supérfluas e soterram o essencial. Puer natus est – eis a verdadeira alegria natalina! Que possamos sempre proclamar esta verdade com destemor. Mesmo que – à semelhança do que aconteceu em Belém, há dois mil anos – este Nascimento não encontre lugar senão às escondidas, longe das hospedarias e estalagens que, abarrotadas de pinheiros e renas, não têm lugar para receber o Menino Deus.