Nova redação do Catecismo sobre a pena de morte

A respeito da recente alteração do parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, diga-se apenas, preliminarmente, quanto segue:

  1. Um catecismo é um resumo da Fé Católica; é um texto, por excelência, pedagógico, que se propõe a apresentar de maneira orgânica a Doutrina da Igreja, conforme interpretada pelo Seu Magistério. Rigorosamente falando, um catecismo não é fonte magisterial, mas instrumento de exposição doutrinária.
  2. Assim, o Catecismo não é nem “falível” e nem “infalível”: simplesmente essas categorias não se aplicam a ele. A infalibilidade é uma nota do Magistério da Igreja, que tem os seus meios próprios de manifestação. Assim, por exemplo, o Magistério Pontifício pode se manifestar através de uma Carta Encíclica (veículo de exercício do magistério papal por excelência): um catecismo pode (e deve) apresentar de maneira orgânica e acessível o conteúdo das encíclicas papais, mas o que é “Magistério”, a rigor, são as encíclicas e não o catecismo. Catecismos e suas formulações são contingentes, ao passo que a Doutrina é imutável.
  3. Ou seja, um catecismo não possui autoridade por si só. A Doutrina Católica apresentada por um catecismo, qualquer que seja ele, somente é infalível na medida em que o Magistério que lhe subjaz é, ele próprio, infalível. A rigor, o Catecismo não obriga à Fé: o que obriga são os documentos magisteriais que embasam o Catecismo.
  4. Mudanças na formulação de algum ponto de um catecismo, assim, não têm característica de aprofundamento doutrinário. Simplesmente não podem ter, porque a doutrina se aprofunda pelo labor orgânico do Magistério, e jamais pela forma eventualmente escolhida para a sua exposição pedagógica. A mudança na redação de algum ponto do Catecismo deve, necessariamente, encontrar o seu fundamento no exercício do Magistério que precede a modificação do texto, não podendo a simples reescrita de um parágrafo funcionar como sucedâneo de um ato magisterial.
  5. Isso significa que eventuais dificuldades suscitadas pela formulação de algum parágrafo do Catecismo devem ser resolvidas nas referências magisteriais que digam respeito ao ponto controverso. O Catecismo não esgota a Doutrina nem a substitui.
  6. A nova redação do parágrafo 2267 provocou uma enorme e desnecessária confusão sobre a pena de morte; isso porque o texto mistura aspectos principiológicos com questões contingentes, substituindo a redação anterior, que era boa e clara, por uma bastante inferior e confusa.
  7. Diga-se, antes do mais, que a Doutrina da Igreja a respeito da pena de morte não mudou. Não mudou, primeiro porque Doutrina não muda e, segundo, porque redação de parágrafo de catecismo não é veículo idôneo para desenvolvimento doutrinário. Assim, a posição da Igreja a respeito do assunto há forçosamente de ser, hoje, após a nova redação do parágrafo 2267, rigorosamente a mesma da semana passada, quando ainda vigente a redação antiga. Não entender isso é desconhecer os rudimentos da Doutrina Católica.
  8. A nova redação, injustificadissimamente, substituiu a referência à Evangelium Vitae, Encíclica que fala especificamente sobre a inviolabilidade da vida humana, por um discurso do Papa Francisco onde o tema da pena de morte é mencionado en passant. Ora, à toda evidência, remover a referência à Evangelium Vitae não tem o condão de revogar a Carta Encíclica, de modo que ela permanece sendo o referencial doutrinário válido, vigente e autorizado sobre o assunto.
  9. A referida Carta Encíclica dizia (n. 56) que a pena de morte não devia ser aplicada «senão em casos de absoluta necessidade», os quais, «graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, (…) são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes». Em outras palavras, o fundamento da não-aplicação da pena capital hoje é a «organização cada vez mais adequada da instituição penal», e não uma suposta “inadmissibilidade intrínseca” da pena de morte.
  10. Ou seja, ao contrário do que dá a entender a novel formulação do parágrafo 2267, in finis, do Catecismo da Igreja Católica, a pena de morte é inadmissível não simpliciter, mas apenas secundum quid: na medida em que existem «sistemas de detenção mais eficazes» e em que se disseminou «uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado», então a pena de morte é inadmissível. Fora dessas condições, não.
  11. Esses fundamentos, como salta aos olhos, são intrinsecamente contingentes: podem existir hoje e, amanhã, não mais se verificarem, como também podem não ser rigorosamente os mesmos nos diversos países do globo. Ademais, um Catecismo versa precipuamente sobre doutrinas e não sobre situações de fato, estas as quais são, por sua própria natureza e ao contrário daquelas, extremamente mutáveis. 
  12. Que a carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema não discorra sobre estes assuntos tem pouca importância: principalmente no âmbito do Catolicismo, as coisas não deixam de existir se as pessoas silenciam sobre elas. E, principalmente!, apesar de o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé falar várias vezes em «desenvolvimento da doutrina», na verdade não existe aqui desenvolvimento algum. O juízo prático sobre a aplicação de tal ou qual pena em determinadas situações concretas é, em essência, um juízo prudencial e não doutrinário. Além do mais, a doutrina, se se desenvolve, só o faz de maneira orgânica e harmônica, e não negando hoje o que até ontem afirmava.
  13. Se o objetivo das autoridades eclesiásticas é, hoje, «empenha[r]-se com determinação a favor da sua [da pena de morte] abolição em todo o mundo» (CCE, 2267), elas têm todo o direito de fazê-lo — e, aliás, já o vinham fazendo há muitos anos mesmo com a antiga redação do Catecismo, como a carta de D. Ladaria exemplifica fartamente. Não era absolutamente necessário proceder a esta modificação confusa em um texto de referência catequética para se colocar contra a pena de morte no Ocidente do século XXI.
  14. Sobre o tema, por fim, reitero tanto quanto escrevi aqui ainda em 2014, em particular o seguinte: «é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; (…) [e] é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima».

Sobre o assunto, veja-se, também, entre outros, este texto sobre o ensino tradicional da Igreja acerca do assunto; este outro texto, pequeno, mas relevante, sobre a distinção entre a dignidade da natureza humana e a dignidade moral do homem; e estas considerações do Joathas sobre a nova redação do Catecismo acerca da pena de morte.

As vitórias de Charlie Gard

Thanatos é uma divindade menor no panteão grego. Quando queremos invocar o deus da morte nós geralmente pensamos em Hades, senhor do mundo dos mortos; Thanatos, no entanto, personificando a Morte, é digno de algumas passagens clássicas. Por exemplo, na Ilíada é ele, junto com o seu irmão Hypnos (o Sono), quem é encarregado de levar o corpo do herói Sarpedon, morto no campo de batalha de Tróia, para os funerais em sua terra natal.

É curioso que estejamos relativamente familiarizados com o pós-morte (os infernos de Hades, por exemplo, guardados pelo Estige e por Cerberus), mas o próprio ato da morte (Thanatos) nos seja estranho. Da subdivindade temos hoje talvez apenas algumas menções obscuras nas músicas de Renato Russo; ironicamente, no entanto, é ela quem dá nome a três importantes conceitos de bioética hoje particularmente importantes: eutanásia, distanásia e ortotanásia.

Eles se encontram (embora não sob esta nomenclatura) no parágrafo 65 da Evangelium Vitae de São João Paulo II. Eutanásia é «uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento» (id. ibid.). Do conceito tiramos algumas importantes conclusões. A primeira delas é que eutanásia, ao contrário do que comumente se pensa, não necessariamente é um ato comissivo — i.e., nem sempre ela se caracteriza por um fazer algo. Eutanásia pode ser uma omissão — um deixar de fazer algo que, nas circunstâncias, seria moralmente exigido. Eutanásia não é somente aplicar veneno no doente para que ele venha a morrer; pode-se praticar eutanásia também quando se negam determinados cuidados médicos sem os quais sabe-se que o doente virá a óbito. O exemplo talvez mais conhecido é o da americana Terri Schiavo, que em 2005, após uma longa agonia, morreu de fome e de sede após o marido conseguir na Justiça uma ordem para que o hospital interrompesse a hidratação e a nutrição artificiais. Terri estava em Estado Vegetativo Permanente; a Terri não foi dada, que se saiba, nenhuma substância para lhe produzir a morte; não obstante, Terri sofreu eutanásia.

A segunda importante conclusão é que a eutanásia se caracteriza não apenas pela forma (comissiva ou omissiva) como ela se manifesta, mas também por suas intenções. O que formalmente caracteriza a eutanásia é a intenção de «provoca[r] a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento» (EV 56). Se o sujeito quer provocar a morte para eliminar o sofrimento, estamos falando em eutanásia; se ele quer provocar a morte por outra razão (digamos, para se desvencilhar de um familiar incômodo, ou para antecipar alguma herança), então se trata de assassinato puro e simples; e se o sujeito se preocupa com o sofrimento do doente mas não lhe quer provocar a morte, ou seja, se a morte não é de nenhuma maneira desejada mas simplesmente aceita, então estamos diante daquilo que se convencionou chamar ortotanásia.

A ortotanásia é a recusa à distanásia (esta última também chamada “obstinação terapêutica”, ou “excesso terapêutico”, na terminologia empregada pela Igreja desde pelo menos a década de 90), e um conceito se compreende em face do outro. Querer manter um paciente vivo a qualquer custo, utilizando-se de meios desproporcionados ao resultado que deles se espera, é obstinação terapêutica, é distanásia. Já não o fazer, negar-se à prática de intervenções médicas demasiado onerosas e cujos benefícios esperados não sejam proporcionalmente benéficos ao paciente, em suma, aceitar o estado terminal do paciente e reconhecer que o engenho humano não é capaz de fazer frente à iminência da morte, é ortotanásia.

Dessas definições infere-se que a distanásia é em regra comissiva (i.e., ela se caracteriza sempre por fazer alguma coisa, por tentar uma nova intervenção, um novo medicamento, uma nova cirurgia etc.) e, a ortotanásia, omissiva (o que significa dizer que ela, em essência, é a aceitação da morte natural, sem que se faça nada para a impedir): é muito difícil imaginar exemplos que fujam a esta classificação. Tanto a distanásia (recusar-se a aceitar a morte) como a eutanásia (provocar a morte) são pecados: a atitude moralmente exigível do ser humano é que aceite a morte quando ela se apresenta inevitável, sem a procurar mas também sem lutar desproporcionadamente contra ela.

Por fim, a terceira importante conclusão que se pode tirar do parágrafo 56 da Evangelium Vitae é que a eutanásia (ao contrário, por exemplo, do homicídio) se justifica pelo alegado bem do paciente.

Claro que tudo isso tem a ver com Charlie Gard, o bebê britânico cujos pais perderam recentemente uma batalha judicial para que ele fosse levado aos Estados Unidos tentar um tratamento experimental. Charlie tem uma doença rara, fatal e incurável (uma miopatia mitocondrial) que se agrava rapidamente; os médicos do Great Ormond Street Hospital de Londres — onde a criança está internada — estão convencidos de que não há mais nada a ser feito e querem desligar os aparelhos de respiração, nutrição e hidratação artificiais que mantêm o bebê vivo. Os pais conseguiram arrecadar cerca de um milhão e trezentas mil libras via crowdfunding para custear o tratamento nos EUA, mas o hospital não quer liberar a criança. Os médicos entendem que, no atual estado de Charlie, ulteriores intervenções terapêuticas são desproporcionadas. Já os pais querem tentar o tratamento americano. O impasse foi levado ao judiciário, e um juiz decidiu que o hospital deveria desligar os aparelhos. Os recursos judiciais dos pais ao Tribunal (Court of Appeal), à Suprema Corte britânica e à Corte Européia de Direitos Humanos foram sucessivamente recusados. Até onde vi, os aparelhos podem ser desligados a qualquer momento.

O que dizer? A própria judicialização do caso é já um absurdo. Não se trata de um pai querendo forçar os médicos a realizarem algum procedimento do qual eles discordem, mas sim do hospital querendo impedir os pais de buscarem, por sua própria conta, um tratamento alternativo para uma criança já desenganada. Como bem apontou o Matt Walsh, há uma diferença muito grande entre um médico que não quer, ele próprio, realizar um tratamento que julgue desproporcionado, e um médico que não quer deixar que ninguém mais realize uma terapia com a qual ele não concorda.

Além disso, nos casos em que haja dúvida legítima sobre a moralidade de um procedimento (ou da supressão de um procedimento) é preciso fazer o juízo pender em favor da vida do paciente e da vontade dos pais. Se houvesse algum conflito entre esses dois vetores (digamos, se os médicos quisessem manter os cuidados artificiais mas os pais os quisessem dispensar) então se poderia cogitar levar o assunto aos Tribunais; contudo, no caso, é a própria vontade dos pais que a vida da criança seja sustentada ainda mais um pouco — de modo que não há razão para se falar em “impasse”. Impasse nós temos diante de duas posições igualmente razoáveis. Entre um hospital querendo deixar uma criança morrer e os pais querendo levá-la para ser tratada não há impasse: há violência e crime. Não faz nenhum sentido fazer prevalecer a posição do hospital que quer a morte da criança sobre a dos pais que querem que ela viva.

Também não é possível dizer que a vontade dos pais deva ser posta de lado porque é desproporcionada. Pode até ser que seja, mas o Estado não pode se imiscuir aqui. Afinal de contas, embora tanto a eutanásia quanto a distanásia sejam pecados, a primeira é mais grave porque agir contra a vida é em si mesmo mais grave do que não aceitar a morte; e se seria necessário que o Estado se levantasse contra os familiares que quisessem praticar eutanásia em alguém, não lhe é lícito impedir os familiares de se obstinarem na distanásia. Para impedir a morte dos indivíduos os Poderes Públicos são legítimos; para aceitá-la contra a vontade expressa dos familiares, aí não.

A linha entre a eutanásia omissiva e a ortotanásia é por vezes tênue. Nestas áreas cinzentas, no entanto, a decisão tem que caber às pessoas mais próximas, à família, jamais aos burocratas do Estado. Isso significa que, no caso, não interessa saber se levar a criança aos Estados Unidos é excesso terapêutico ou não: o que importa é que essa decisão seja tomada por quem de direito, pelos pais. O Estado em tese até poderia intervir em uma ortotanásia que considerasse eutanásia omissiva, porque o papel dele é preservar a vida; mas nunca poderia intervir em uma terapia que julgasse ser distanásia, porque não compete a ele aceitar a morte.

Havendo dúvida legítima entre duas atitudes é possível optar por qualquer uma delas, não se podendo impôr nem uma, nem outra. E no caso de Charlie a legitimidade da dúvida parece evidente — afinal de contas, há um tratamento alternativo disponível. Ora, falando exatamente sobre este assunto, a Congregação para a Doutrina da Fé cita, explicitamente, entre os meios terapêuticos proporcionados (legítimos portanto), o recurso às terapias experimentais quando não haja outros meios conhecidos de se obter a cura:

— Se não há outros remédios, é lícito com o acordo do doente, recorrer aos meios de que dispõe a medicina mais avançada, mesmo que eles estejam ainda em fase experimental e não seja isenta de alguns riscos a sua aplicação. Aceitando-os, o doente poderá dar também provas de generosidade ao serviço da humanidade.

(Congregação para a Doutrina da Fé, “Declaração sobre a eutanásia”, Cap. IV — O uso proporcionado dos meios terapêuticos)

A decisão judicial, assim, é duplamente ilegítima: porque não cabe ao Estado impedir os particulares de praticarem a distanásia e porque, no caso concreto, há verdadeira dúvida sobre se a manutenção dos aparelhos de Charlie configura ou não distanásia.

Dos últimos dias para cá a repercussão do caso foi grande: um abaixo-assinado dirigido à Família Real britânica está atualmente com 170.000 assinaturas, o Papa interveio para dizer que a vontade dos pais deveria ser respeitada e o próprio presidente Donald Trump se ofereceu para ajudar o bebê. Independente do que ocorra, Charlie Gard já é um herói, tendo já feito mais em sua curta vida do que muitos de nós que há anos estamos aqui fora tentando fazer do mundo um lugar melhor. Estamos convencidos de que um mundo melhor é aquele onde a vida humana é tida como sagrada — onde os pais têm direito de lutar pela vida de seus filhos mesmo contra as cortes do mundo inteiro e onde hospitais são lugares em que se busca o restabelecimento do corpo e não uma morte alegadamente “digna”. E sob essa bandeira o pequeno Charlie mobilizou exércitos inteiros, pelo que merece — ele e sua família — o nosso agradecimento, o nosso apoio e as nossas orações. Força! Ao redor do mundo multidões de almas estão unidas ao bebê e aos seus pais.

O aborto como meio para salvar a vida da gestante

Alguns questionamentos surgiram aqui nos últimos dias, sobre a Doutrina Moral da Igreja, especificamente sobre qual seria a posição d’Ela caso a menina de Alagoinha corresse efetivamente risco de vida. Expondo de outra forma: é lícito o aborto se este for o único meio de salvar a vida da gestante?

A resposta é não, porque o aborto é a morte direta de um inocente, e não é lícito matar um inocente nem mesmo para salvar outra vida. Este é o entendimento de S.S. João Paulo II na Evangelium Vitae [grifos meus]:

É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente. [Evangelium Vitae, 58]

Este é o entendimento da Congregação para a Doutrina da Fé na Declaração sobre o aborto provocado [grifos meus]:

Não ignoramos estas grandes dificuldades: pode tratar-se de um grave problema de saúde, ou por vezes mesmo de vida ou de morte, para a mãe; pode ser o encargo que representa mais um filho, sobretudo quando existem boas razões para temer que ele virá a ser anormal ou gravemente defeituoso; pode ser, ainda, o peso de que se revestem, em diversos meios, as considerações de honra e de desonra, de baixar de nível social, etc. Mas deve-se afirmar de modo absoluto que jamais alguma destas razões poderá vir a conferir objectivamente o direito de dispor da vida de outrem, mesmo que esta esteja a começar; e, pelo que diz respeito à infelicidade futura da criança, ninguém, nem mesmo o pai ou a mãe, se podem substituir a ela, embora se encontre ainda no estado de embrião, para escolher, em seu nome, a morte de preferência à vida. Ela própria, na sua idade amadurecida, jamais virá a ter o direito de optar pelo suicídio; e enquanto não está ainda na idade de decidir por si própria menos ainda os seus próprios pais podem escolher para ela a morte. A vida é um bem demasiado fundamental, para poder ser posto assim em confronto com inconvenientes mesmo muito graves [Congregação para a Doutrina da Fé, Declaratio de abortu procurato, 14].

Este é o entendimento também de Del Greco, no seu reconhecido Compêndio de Teologia Moral [grifos meus]:

O abôrto pode ser a) terapêutico, se, por indicação médica, é provocado para salvar a vida da mãe; b) eugenético, se é provocado para impedir o nascimento de pessoas afetadas com doenças hereditárias; c) criminoso, se é provocado com fim perverso.

[…]

1. O aborto voluntário, diretamente provocado, é sempre gravemente ilícito

De fato, equivale ao assassínio direto do inocente, tomado como fim da ação.

[…]

É condenado, por conseguinte, não só o abôrto criminoso, como qualquer outro abôrto diretamente provocado.

[Del Greco, Compêndio de Teologia Moral, pág. 233]

Esta é a conclusão, enfim, dos princípios morais mais basilares, segundo os quais – ao contrário do que disse Maquiavel – os fins não justificam nunca os meios, sob nenhuma hipótese, e não é lícito praticar um ato mau nem mesmo para que, dele, provenha um resultado bom. Na sentença lapidar do Catecismo da Igreja Católica: “Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem” (CIC 1756).

Uma outra coisa é o que se chama de causa com duplo efeito, em relação à qual recomendo enfaticamente a leitura deste texto do pe. Lodi que eu já citei aqui diversas outras vezes. A pergunta sobre a qual estamos tratando aqui, e cuja resposta é negativa, refere-se à licitude do aborto como meio para salvar a vida da gestante, e não como um segundo efeito de um ato bom. A leitura do texto acima mencionado é excelente para um correto entendimento dos conceitos aqui utilizados.

Sobre este último assunto, diz ainda Del Greco (op. cit., p. 234):

[O abôrto indireto] é somente permitido quando não há nenhuma conexão entre a gravidez e a doença da mãe, de modo que a mesma intervenção teria lugar mesmo se a mulher não estivesse grávida.

E exemplifica (id. ibid.):

De acôrdo com o parecer de muitos moralistas (Genicot-Salsmans, Vermeersch e outros) é lícito tirar o útero grávido canceroso de uma mulher, porque isso não constitui intervenção direta ao abôrto; ao contrário, é considerado abôrto direto expelir da trompa o feto ectópico.

Consideramos que isto resolve a questão.