Todo mundo certamente travou contato, em algum momento do antigo Segundo Grau, durante os seus estudos da literatura barroca brasileira, com aquele que é o mais famoso dos sermões do Pe. António Vieira: o Sermão da Sexagésima. O que nem todo mundo sabe – eu, mesmo, só o vim saber muito tempo depois de velho… – é o que significa “Sexagésima”.
Surpresa: a Sexagésima é um domingo específico do ano, escondido dos católicos pela Reforma Litúrgica de 1969. Imediatamente antes da Quaresma – a Quadragesima – há três domingos: na ordem, do mais distante para o mais próximo da Quarta-Feiras de Cinzas, os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima.
Mais especificamente, o Domingo da Sexagésima é o último domingo antes do de Carnaval. Ou seja, foi ontem.
Ontem, na Santa Missa, eu ouvi a leitura do Evangelho que o pe. António Vieira leu naquele longínquo ano de 1655. A Wikipedia lusófona, aleatoriamente, diz que o tema do sermão – a parábola do semeador – foi extraído «duma passagem bíblica escolhida para a ocasião». Puro devaneio. A passagem não foi “escolhida” coisa nenhuma, ela é a leitura prescrita pelos livros litúrgicos para o domingo anterior àquele que antecede a Quarta-Feira de Cinzas: o domingo da Sexagesima. Não é meditação sobre uma passagem escolhida ao acaso ou à conveniência. É sermão concernente ao tempo litúrgico em que ele é pregado.
Não achei a data exata do sermão; a referida enciclopédia colaborativa diz, tão-somente, “março de 1655”. Não parece que seja verdade. Podemos aplicar os algoritmos para calcular o dia da Páscoa; com isso, descobrimos que, naquele ano, ela caiu no dia 28 de março. O domingo da Sexagesima, assim, foi no dia 31 de janeiro – e é esta, portanto, a data mais provável em que o conhecido sermão foi pela primeira vez pregado. É até possível que ele, após escrito, tenha sido burilado nas semanas posteriores e tenha recebido a sua forma definitiva – a escrita final, que nos chegou – em meados de março mesmo; mas não tem o menor cabimento imaginar que o sermão da Sexagésima retumbou nas paredes da Capela Real portuguesa em março de 1655 – quase à Páscoa! Seria como dizer que um Sermão de Natal fora proferido no início de fevereiro.
Ontem eu ouvi de novo o milenar Evangelho: «Ecce exiit qui seminat, seminare». Na verdade, ouvi-o diretamente em português, naquela que é quiçá a mais elegante das traduções bíblicas para o vernáculo de Camões: «Saiu o semeador a semear sua semente». A aliteração é deliciosa; a cadência da frase, serpentinando, parece mostrar que o semeador segue em zigue-zague, titubeando, andando de lá para cá – e isso explica a semente caindo ao acaso na estrada, na terra seca, entre os espinhos. Se eu tivesse que escolher uma feliz tradução dos Evangelhos, tal seria este versículo.
Mas o original é sempre o original, e eis porque ele não deve ser jamais posto de lado: há uma belíssima exegese, do próprio Pe. António Vieira, no mesmo sermão citado, que é impossível de ser feita a partir do versículo em português que nos acostumamos a ouvir. Assim ressoou um dia na Capela Real:
A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.
E é por isso que vale a pena o esforço para preservar o latim litúrgico mesmo nas leituras das Escritura Sagradas, é por isso que vale a pena perscrutar a sabedoria dos antigos: muito se perde ao simplesmente verter uma língua n’outra, e a pior forma de ignorância é a de quem acha que já sabe. Aquele antigo adágio do traduttore, traditore! tem mil modos de demonstrar o seu acerto. E, em se tratando da palavra de Deus, não se pode fazer pouco caso dos tesouros que ela tem para nos ofertar. Não podemos deixar que o vernáculo quotidiano oculte as pedras preciosas das Sagradas Escrituras que os antigos já nos garimparam.