Leio hoje que a China pretende “acaba[r] com a política do filho único”, o que é uma excelente notícia. No entanto, ato contínuo, na mesma manchete, vem a brutalidade: agora, o país «permitirá 2 crianças por casal».
Ora, que houvesse uma política de filho único é um absurdo completo; no entanto, que o segundo filho seja uma concessão do Governo chinês é também um absurdo, da mesma gravidade do primeiro. O verdadeiro escândalo aqui é que seja o Partido Comunista a se imiscuir no seio das famílias para lhes dizer quantos filhos tenham: se o número é um, dois ou cinco, isto é meramente um detalhe quantitativo, sem dúvidas relevante, mas de somenos importância no contexto maior. É grave que sejam (só) um ou dois filhos, sem dúvidas, mas ainda mais grave é que se aceite que o Estado diga qualquer coisa a respeito do número de filhos que as pessoas podem ter!
Passando para um assunto análogo: a mentalidade contraceptiva não se manifesta somente no desejo de ter poucos filhos. A sua maior característica é a pretensão de domínio sobre a própria fecundidade, é o desejo prévio de, em matéria de filhos, chegar somente até um certo ponto e dali não passar mais. O casal que diz querer somente “dois filhos, um casalzinho” revela, sem dúvidas, uma perspectiva antinatalista; mas a mesmíssima perspectiva se encontra – embora aqui seja mais difícil de notar – em quem diz “quero ter cinco filhos”. Porque o antinatalismo não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade: a sua específica característica é dizer “somente até aqui”.
O caso chinês ajuda a ilustrar isto: é um absurdo que a China imponha apenas um filho aos seus cidadãos, mas é também absurdo que ela imponha dois – porque, como dizíamos acima, o cerne do problema está na própria idéia de que compete ao Estado dizer quantos filhos as famílias devem ter. Na eventualidade de que o Partido Comunista implementasse uma “política de sete filhos”, ainda que nenhum chinês chegasse jamais ao oitavo filho, ainda assim, tratar-se-ia de uma política ilegítima de um governo ímpio. A questão não é de fato, e sim de princípio: não pode o Estado dizer “somente até aqui”. Se aceitamos que é legítimo a ele fazer isso, então os limites quantitativos deste “aqui” transformam-se em uma questão de grau, a serem mais amplos ou mais estreitos a depender das conveniências políticas de cada momento histórico.
Vale isso também, mutatis mutandis, para as famílias católicas. No dia do seu matrimônio, diante do altar de Deus, os católicos juram receber com amor os filhos que Ele lhes confiar. Não se faz, então, a mais mínima menção ao número destes filhos – como se fosse possível dizer “Senhor, recebo com amor até o terceiro; mais que isso, não”. A questão é de princípio, e não de grau. É este o ensinamento católico da Humanae Vitae, esta encíclica tão importante quanto ignorada: é lícita – e, atenção!, que pode até ser exigível – «a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento» (HV 10). O que o documento não coloca, propositalmente, é que esta evitação possa ser prévia nem definitiva.
Aboliu a China a infame política do filho único: alvíssaras! Que caia, também, a própria intromissão abjeta do Governo na vida das famílias chinesas. E que o fato nos sirva à reflexão: conquanto estejamos acostumados a enxergá-lo com naturalidade, por vezes se encontra camuflado no seio das famílias católicas um antinatalismo da mesma espécie do que é imposto, às escâncaras, pelos regimes totalitários. Um e outro cumpre ser combatido.