[Fonte: sumateologica.wordpress.com
Belas linhas que estão logo no início do terceiro volume da História da Igreja de Cristo do Daniel-Rops. Quando li o texto, não encontrei a imagem à qual o historiador francês se referia; topei com ela hoje na internet, e reproduzo-a aqui. Cliquem para ampliar, é enfaticamente recomendado.
Uma nota de rodapé neste capítulo fala que foi diante deste quadro que um historiador agnóstico lamentou não existir em nossas dias “uma instituição fundada sobre a fé na unidade fraterna do gênero humano sob a paternidade de Deus”. Quanto mais nós, que temos Fé, não sentimos falta do tempo “em que a Filosofia do Evangelho governava as nações”, como disse Leão XIII! Rezemos ao Altíssimo, para que tenha misericórdia de nós e, após tudo o que foi perdido, que Ele não Se afaste da humanidade pecadora.]
Um afresco florentino
Numa das paredes da sala do capítulo, no convento dominicano de Santa Maria Novella, em Florença, há um afresco diante do qual a maioria dos visitantes passa apressadamente e que, no entanto, se presta a uma inesgotável reflexão. Intitulam-no “os cães de Deus”, por causa dos molossos malhados de branco e negro que, na parte inferior do quadro, combatem uma horda de lobos. Na verdade, porém, esta batalha significa algo mais que a luta dos domini canes, dos filhos de São Domingos, contra a terrível matilha de tentações, pecados e heresias que ronda ininterruptamente a pobre humanidade. Seu autor, Andrea de Firenze, não é um mestre de primeira fila; a sua obra não poderia ser comparada aos Duccio, aos Ghirlandaio, aos Orcagna ou aos assombrosos Paolo Uccelo que, a dois passos dali, a ofuscam. Contudo, talvez nenhum outro artista cristão tenha sabido captar melhor do que ele, utilizando apenas alguns metros quadrados de superfície mural, tudo o que uma sociedade inteira quis, sonhou e tentou realizar na terra. Plasmada numa composição única, resume-se nesse afresco a síntese de uma civilização, tal como ela própria se concebeu.
Em primeiro plano vê-se o Papa, de pé, revestido de serena majestade, representante visível dos poderes do alto. A seu lado, quase da mesma altura, o Imperador, que diríamos estar com ele em plano de igualdade se não trouxesse nas mãos uma caveira, lembrando que os domínios da terra perecem, ao passo que os do céu não passam. De cada lado, dispõem-se, numa hierarquia estrita, os cargos religiosos e as dignidades laicas: cardeais, bispos e doutores à direita, e à esquerda reis, nobres e cavaleiros. Na base, o rebanho inumerável dos fiéis, ricos e pobres, piores e melhores, todos aqueles que levam para diante na terra a aventura humana do destino e do combate cotidianos. Estão representadas todas as categorias sociais, e cada uma ocupa o seu lugar nesta ordem, cada uma tem um papel a desempenhar. Qual? A obra indica-o por meio de dois símbolos, pois trata-se de uma dupla tarefa: concretamente, edificar com meios humanos a Igreja da terra, a assembléia dos batizados, cuja imagem visível é a recém-construída cúpula de Florença que se ergue no fundo da pintura; e sobrenaturalmente, participar da Igreja mística, transcender as misérias e as insignificâncias da terra, para elevar-se, ao longo do árduo caminho pelo qual avançam as filas dos eleitos, até o trono inefável em que Cristo, o Deus vivo, reina sobre o mundo, entre os cânticos dos anjos e as preces dos santos.
Esta grandiosa imagem, que por uma coincidência irônica o artista florentino pintou em meados do século XVI, ou seja, quando já deixara de corresponder à verdade, foi a imagem que dez gerações de homens albergaram no coração como o ideal de sua existência, como um desígnio e uma promessa, e tentaram transformar em realidade com o seu sangue e os seus esforços. Esta visão do mundo explicava-lhes tudo o que deviam fazer na terra e esperar do além; mostrava-lhes a humanidade perfeitamente ordenada, submetida a Deus, dirigida pelos seus mandamentos, regida por leis justas. Fazia-os compreender que não havia nenhuma instituição válida que não se encontrasse inserida no quadro das intenções divinas e não devesse ajudar o homem a ascender ao céu. Tudo possuía uma finalidade, um sentido, uma razão de ser; a aventura dos mortais não parecia nem absurda nem desesperadora, e cada um sabia por que trabalhava, sofria, vivia, e também porque devia morrer. Imagem grandiosa que a humanidade bem podia apreciar com nostalgia, num momento em que perdeu o sentido do porquê e do como, num momento em que procura inutilmente reencontrar a sua escala de valores e em que o abandono desse ideal se traduziu para ela num trágico caos.
A primavera da Cristandade
Durante três séculos – entre 1050 e 1350, aproximadamente -, a concepção do mundo que prevaleceu foi essa noção de Cristandade. Formou-se lentamente, à custa de sangue e lágrimas, e foi-se também perdendo aos poucos. Por trezentos anos impôs a sua lei, e, evidentemente não por acaso, foi esse talvez o período mais rico, mais fecundo e, sob muitos aspectos, mais harmonioso de todos os que a Europa conheceu até os nossos dias. Saindo das trevas invernais da época bárbara, a humanidade cristã viveu a sua primavera.
O que inicialmente impressiona a quem analisa o conjunto destes trezentos anos é a sua riqueza de homens e de acontecimentos. À semelhança da seiva que jorra por todos os lados na primavera, tudo parece agora germinar e desabrochar numa abundância de folhagem sobre o solo batizado por Cristo. Em todos os âmbitos se manifesta o fervor criativo, a exigência profunda de empreender, de encaminhar a caravana humana para o futuro. Os mais minuciosos quadros cronológicos não seriam suficientes para captar este impulso. Constroem-se catedrais; parte-se para a conquista do Santo Sepulcro, da Espanha que ainda se encontra submetida ao poder mouro, das regiões bálticas ainda pagãs; nas universidades, discutem-se as grandes questões humanas; escrevem-se epopéias, criam-se mitos eternos; milhares de pessoas transitam pelas rotas de peregrinação; no ímpeto de descobrir o mundo, chega-se até o secreto coração da Ásia; elaboram-se novas formas políticas… E tudo isso simultaneamente, num ardor de vida em que todos os acontecimentos se precipitam e interagem, numa complexidade que desencoraja por antecipação quem quiser abarcá-la.
Este impulso prodigioso, contudo, não é uma improvisação de frágeis resultados, não desemboca numa dessas florações prematuras que os primeiros ventos de abril lançam ao chão. Traz frutos, e que frutos! Perto de algumas criações mais imperecíveis que o gênio europeu produz nesta época, as mais ousadas obras modernas tornam-se irrisórias. É o tempo das altas naves góticas, do Pórtico Real de Chartres e das fachadas de Reims e de Amiens, dos vitrais da Sainte-Chepelle e dos afrescos de Giotto. É o tempo em que se erguem, paralelamente aos edifícios de pedra e como eles desafiando os séculos, essas catedrais de sabedoria que são a mística de São Bernardo e a de São Boaventura, a Suma Teológica de São Tomás, as canções de gesta, a obra profética de Roger Bacon e a de Dante. É o tempo ainda em que nascem instituições, tanto religiosas como civis, que servirão de base às gerações futuras, como o Conclave dos cardeais, o Direito Canônico e as diversas formas de governo. Insigne fecundidade. Somente os séculos de Péricles, de Augusto e de Luís XIV podem rivalizar em poder criativo com este período de tempo que vai de Luís VII da França à morte do seu bisneto São Luís, da eleição de Inocêncio II à de São Celestino.
É claro que semelhante fecundidade pressupõe uma enorme riqueza de talentos. A Europa dá-nos a impressão de ter possuído nesta época, em todos os âmbitos, personalidades de primeira ordem, com uma abundância que não voltaria a encontrar depois. A lista é infindável. São os santos, cujo valor de exemplo e de irradiação se mostram admiráveis: São Bernardo, São Norberto, São Francisco de Assis, São Domingos, que podemos citar entre centenas. São os expoentes do pensamento: Santo Anselmo, São Boaventura, São Tomás de Aquino, e Abelardo, e Duns Escoto, e Bacon, e Dante… São os artistas geniais, os inventores de técnicas e os criadores de formas, mestres e artistas cujos nomes estamos longe de conhecer em muitos casos. São homens de Estado, eminentes pela sua sabedoria, como Filipe Augusto ou São Luís, ou pela profundidade da sua visão política, como grande Frederico Barba-Roxa e o inquietante Frederico II. São os chefes guerreiros à testa de tropas imensas, desde Guilherme o Bastardo, que conquistou a Inglaterra, e os seus primos, que instalaram no sul da Itália a dominação normanda, até os grandes cruzados, um Godofredo de Bulhões e um Balduíno, ou aqueles que, com o Cid Campeador, travaram na Espanha batalhas semelhantes. Não faltam representantes das mais altas categorias, os que fazem progredir a humanidade: escritores, escultores, músicos, sábios, juristas. E qualquer outra categoria que citemos possuirá, entre 1050 e 1350, nomes que a posteridade há de respeitar. E no cimo destas nobres coortes, vemos os papas, muitos dos quais foram personalidades excepcionais, quer se trate de um Gregório VII ou de um Inocêncio III.
Os empreendimentos, os conflitos e até os dramas em que estes homens se envolveram trazem também sinal da grandeza. Há períodos da história em que os acontecimentos têm qualquer coisa de mesquinho: os tempos merovíngios, por exemplo, ou os do desmembramento do Império de Carlos Magno. Durante os três séculos da Baixa Idade Média, porém, tudo transcorre de outro modo: a Cruzada é uma empresa grandiosa, mas também o é a invasão mongol, apesar da sua crueldade e violência, ou a própria entrada em cena dos almorávidas na Espanha. E mesmo nas desastrosas lutas entre o papado e as potências terrenas, subsiste uma intensidade dramática que atinge a dimensão de um confronto decisivo entre duas concepções do mundo.
Mas esta época dá a impressão de ordem e equilíbrio tanto como de vitalidade e de frondoso desabrochar. As instituições políticas e sociais, bem como o sistema econômico, surgem como entes concretos e reais, proporcionados à estatura do homem. Não se observa neles essa tendência para o desmedido e para a abstração desumana que caracteriza o mundo moderno. Toda essa época assemelha-se à sua mais bela criação – a Catedral -, cuja infinita complexidade e cujos múltiplos aspectos testemunham um caudal inesgotável, mas que obedece a uma evidente ordem preestabelecida, graças à qual o conjunto ganha o seu sentido e cada detalhe o seu alcance.
Muitos filósofos da história, de Oswald Spengler a Toynbee, pensam que as sociedades humanas, à semelhança dos seres individuais, obedecem a uma lei cíclica e irreversível que as faz percorrer estágios bastante parecidos aos da infância, juventude, maturidade e velhice do ser fisiológico. Se tais comparações são válidas, é indubitável que, ao longo destes três séculos, a humanidade cristã do Ocidente conheceu a primavera da vida, a juventude, com tudo o que esta traz consigo de vigor criativo, de violência generosa e por vezes inútil, de combatividade, de fé e de grandeza.
Fonte: A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Daniel-Rops, Ed. Quadrante, 1993, pág. 9-13.