Muitas formas, bem diversas, de ceticismo e de pessimismo, se encontram registradas na história do pensamento humano, desde os sofistas e os pirrônicos antigos até os modernos agnósticos, desde Çakya-Muni até Schopenhauer. Foi posta em dúvida a possibilidade do conhecimento objetivo. Com Heráclito talvez, e com Hegel, contestou-se mesmo o valor do princípio fundamental de todo pensamento, sem o qual êste se nega a si mesmo: o princípio de não-contradição. A vida foi declarada radicalmente má e preferido o nada ao ser. A história dos sistemas filosóficos oferece-nos tôdas as espécies de expressões – ao menos verbais – da dúvida e da recusa. Entretanto ter qualquer escola do passado jamais proclamado a absurdidade do ser tão explícita e tão abruptamente como nossos existencialistas ateus?
“No existencialista não cristão, a contingência da existência não mais toma o caráter de mistério provocante e sim de irracionabilidade pura e de brutal absurdidade. O homem é um fato nu, cego. Está ali, dêsse modo, sem razão. É isto que Heidegger e Sartre chamarão sua “factividade”. Cada um de nós por seu turno, se encontra ali (Befindlichkeit), ali, agora, porque aqui mais aqui, não se sabe, é idiota. Quando desperta para a consciência e para a vida, está já ali, não o pediu. É como se se o lançasse ali – quem? ninguém; para quê? para nada. Tal é o sentimento de uma situação originária, sentimento supremo para lá do qual nada existe. Acordo em plena viagem numa história de louco… O desvio é absoluto e sem esperança. Êste sentimento é de tal modo ofuscante que Sartre o traduz por uma nuance nova, cuja incidência ontológica é capital: o ente é por demais (de trop). Sua estupidez injustificável estorva como a asneira… Estou como atirado e abandonado por êste nada sem olhar e sem resposta num ponto perdido do universo… Cada segundo renova êste abandono entregando-me indefeso ao mundo estranho: introduz até em mim a estraneidade que me envolve e que me priva inclusive desta cálida intimidade comigo mesmo em que o desespêro encontraria uma promessa familiar” (E. Mounier, Introduction aux existencialismes, ed. Denoel, Paris, 1947, p. 35-36).
Êstes temas do ser que “é uma demasia (de trop) para a eternidade” do homem, “paixão inútil”, do nada, do absurdo, da estraneidade, etc., inspiram tôda uma literatura contemporânea, as obras dum J. P. Sartre, dum Camus e duma Simone De Beauvoir… O século XX, que viu o ateísmo chegar à consagração oficial de doutrina do Estado, viu-o também, no plano intelectual, chegar à inevitável conclusão lógica: tudo é absurdo.
Mas, será que se trata efetivamente duma “conclusão intelectual”?
Trata-se, é certíssimo, de uma atitude literária. Trata-se também – ao menos em certa medida – duma moda. Mas se queremos nos colocar do ponto de vista estritamente filosófico, é de todo impossível considerar êste “absurdismo” como uma conclusão intelectual. Isto por motivo bastante evidente: uma conclusão intelectual deve poder ser pensada. Ora, o absurdismo é – por definição – impensável… O absurdismo consiste em negar o pensamento, em sustentar que o ser é radicalmente incoerente.
Sustentar conscientemente uma proposição absurda, ou afirmar – o que dá no mesmo – a verdade objetiva do absurdo, é contradizer-se a si mesmo, é pôr uma afirmativa e declarar, ao mesmo tempo, que ela é destituída de fundamento: jôgo realmente impossível, que ninguém pretende realizar nas matemáticas, por exemplo, em que a precisão desnudada da expressão não permite artifício algum na linguagem. O que não é possível em matemática é verbalmente possível em filosofia, porque, dada a densidade e a riqueza do objeto desta, ela não pode exprimir-se de maneira tão rigorosamente adequada como aquela. Explica-se assim o dito de Cícero, que não há tolice que não tenha sido afirmada por algum filósofo.
Frei Leão José Moreau, O.P.,
“Ateísmo e Absurdismo”,
in “A ORDEM”, Vol. LIII, FEV/1955