“Comecei a achar o ateísmo aborrecido”

Várias pessoas já leram (e escreveram sobre) a interessantíssima entrevista que o Pondé concedeu recentemente à VEJA. Eu também quero dar os meus dois tostões sobre o assunto. Desnecessário dizer que vale a leitura na íntegra.

É bem verdade que – como disse o frei Rojão – “[u]m filósofo que conclui a existência de Deus é realmente um filósofo, não estes garotinhos mimados de classe média que leram Dawkins, que nem é cientista, nem filósofo”; e, nos tempos de indigência intelectual nos quais vivemos, isto é digno de ser mencionado e celebrado. Ainda mais quando o filósofo em questão – o Luiz Felipe Pondé – não é um cardeal católico, nem um piedoso padre católico, nem um renomado teólogo católico. Não é nem sequer um católico. Que, aliás – para horror dos livres-pensadores modernos -, foi ateu por muito tempo, até começar “a achar o ateísmo aborrecido”.

“Aborrecido”! É talvez dos mais elegantes adjetivos que eu vi serem usados recentemente para se referir – com propriedade – ao ateísmo. A miséria intelectual auto-elevada – ridicularmente – ao patamar de única posição socialmente aceitável, provocando os maçantes jantares aos quais o Pondé se refere com tanto bom humor. Como se fossem uma decrépita cerimônia ritual onde os velhos fiéis de uma religião sem fé bajulam-se mutuamente, em um mecanismo de auto-afirmação que é a antítese perfeita dos cultos religiosos onde os fiéis confortam-se uns aos outros. Nem mesmo nisso eles são originais. O diabo só faz mesmo tocar cover das canções do Céu.

E o ateísmo é aborrecido, porque auto-limitado. Porque pobre, raso, estéril. Incapaz de satisfazer aos anseios humanos mais profundos – insistindo em ficar às margens e negar a existência do oceano que se descortina diante dele. Um bufão que se julga rei, emitindo ordens disparatadas em sua estultície e rasgando as vestes, espantado, ao perceber serem bem poucos os que o levam minimamente a sério para além das mesas dos “jantares inteligentes”.

Os dois chifres do Diabo

Devido ao emprego de um humor por vezes grosseiro demais, não posso recomendar sem restrições o (não obstante, genial) blog do Frei Clemente Rojão. Mas este post sobre o padre à moda antiga merece ser lido e divulgado. Descontem as grosserias. Em particular, o seguinte trecho foi muito bem dito:

O Diabo tem dois chifres. Com um chifre, ele ataca a Igreja pelas novidades. Com o outro, ele ataca pelas velharias. Satã não tem preferência, desde que te atire no inferno… Para uns, ele deseja a desobediência pela novidade. Para outros, ele deseja a desobediência pela resistência às ordens de mudança.

E as alfinetadas, ao longo de todo o texto, são muito boas. O bom frei se refere a “quem se acha no direito de declarar estado de necessidade por conta própria”, ao “[p]aradoxo supremo da obediência, tão obedientes que desobedecem”, à “desobediência luciferina [que] renega a bela teologia que trazem nos lábios”.

Lembro-me de ter escrito, há algum tempo, algo sobre a desobediência de Lúcifer aqui. E, o que eu disse então, repito-o tranqüilamente agora:

O pecado de Satanás, seguido por Adão e Eva, apresenta-se sob muitas formas nos nossos dias. “Obediência co-responsável” é desculpa furada de quem não quer obedecer; condenar a “obediência cega” é a semente do orgulho começando a desabrochar. Sempre é possível inventar exemplos e mais exemplos de situações hipotéticas nas quais o homem estaria realmente dispensado da obediência e ainda nas quais obedecer cegamente seria um pecado; mas quando esta hipótese é aplicada amiúde em situações concretas que não guardam com os exemplos aventados senão uma vaga e forçada semelhança, então nós temos um sério problema: nós temos a repetição do non serviam primordial sob uma nova roupagem. Afinal, aquele que é capaz de “se transfigura[r] em anjo de luz” (IICor 11, 14) também é capaz de dar ao seu brado rebelde uma aparência de virtude.

E é muito fácil perceber que não há sombra de legalismo nisso – ao contrário, rejeitar a rebeldia dos que se arvoram “mais católicos do que o Papa” é uma mera questão de bom senso. Vejamos: todos concordam que a obediência é uma virtude e, para ser quebrada, é necessário haver graves motivos. Ora, para justificar uma desobediência pública, explícita e reiterada à Suprema Autoridade de Governo da Igreja, para que haja a supressão do munus regendi eclesiástico, para que seja lícito recusar-se à jurisdição da Igreja, o único motivo grave a este ponto seria algum “estado de necessidade” em que a salvação da própria alma estivesse em risco. Por menos do que isso, não há justificativa para se desobedecer. Até aqui, imagino que também todos concordem.

Mas, ora, se a desobediência fosse a única solução (afinal, para ela ser lícita, ter-se-iam que haver esgotados os outros meios…) para salvar a própria alma, seguir-se-ia necessariamente daí que, quem obedecesse à Igreja, estaria a caminho do Inferno. Ou seja, a Igreja visível de Nosso Senhor, a Cidade situada sobre o monte, o Farol que ilumina os homens e lhes ensina o caminho da Salvação, ter-se-ia convertido em seu perfeito contrário: em um vórtex negro que atrai as almas para o Inferno e do qual precisa fugir quem desejar ser salvo. Não creio ser preciso demonstrar que esta posição é blasfema. Portanto, não há justificativa para a desobediência.

Em suma: a desobediência à Igreja só se justificaria se ela – a desobediência – fosse necessária à salvação. Mas aqui chegamos a uma situação irredutível: porque afirmar que tal obediência é necessária é transformar a Igreja na Sinagoga de Satanás (onde se condenam todos os que A seguem), e negar a necessidade dessa obediência é reconhecer que não é lícito desobedecer. Et tertium non datur.

É difícil obedecer. Às vezes, é particularmente doloroso. É extremamente tentador fazer as coisas por conta própria, “do nosso jeito” – isto é tão tentador que derrubou até mesmo Lúcifer do alto dos Céus, quando o pecado nem havia entrado no mundo ainda e não havia ninguém rondando por aí “para perder as almas”! Acaso a tentação que fez cair Lúcifer não poderá também derrubar a mim?

Afastemo-nos com vigor de tão diabólica tentação. Que a Virgem Santíssima seja em nosso favor, e nos ajude, e não nos deixe jamais entregues a nós mesmos – pois, por nós mesmos, fatalmente iremos cair miseravelmente. Que o factus oboediens de Nosso Senhor possa ser sempre imitado por nós. E que São Miguel Arcanjo nos defenda do combate, precipitando no Inferno a Satanás e aos outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

http://freirojao.blogspot.com/2010/05/um-padre-moda-antiga-obediencia-e-muito.html