Quinta-Feira Santa

Já começa a Páscoa do Senhor, e nós não conseguimos vigiar com Ele um pouco sequer. Já é a hora das Trevas, e ela nos pega dormindo.

Dormiriam porventura São Pedro e os demais Apóstolos se sequer desconfiassem que aquela seria a última noite em que estariam com Cristo? A última vez em que Ele os chamaria para rezar? A derradeira ida ao Horto das Oliveiras? Decerto que não. Mas as hostes do Inferno avançam nas sombras, quando não são esperadas. O fim chega “como um ladrão”, para usar uma metáfora cara ao próprio Cristo que, não obstante, os Seus discípulos mais próximos não souberam aproveitar.

É noite, e a Lua Cheia já vai alta no Céu. A Madrugada já avança e, na verdade, já é Sexta-Feira, aquela terrível Sexta-Feira da Paixão. Os acontecimentos não param; seguem em frente, ao contrário, desenrolando-se em ritmo vertiginoso. Não nos esperam dormir, não nos deixam descansar. O Mal não descansa. E cada minuto perdido é um instante que não tem volta: eis a agonia de Nosso Senhor no Getsêmani a nos servir de doloroso exemplo dessa verdade! Cristo chamou os Seus, mas eles também O abandonaram, e um anjo teve que descer dos Céus para consolar o Divino Mestre porque os Apóstolos d’Ele dormiam.

E, como eles, nós.

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“Por que é diferente esta noite?” – Quinta-Feira Santa

Por que esta noite é diferente das outras noites? A pergunta foi imortalizada na película do Mel Gibson que nós costumamos assistir nestes dias do ano. Para além de qualquer interesse histórico que a questão possa despertar, penso que sua maior utilidade no dia de hoje é provocar-nos uma reflexão e uma resposta. Estes dias santos exigem que nós tomemos parte nos acontecimentos neles celebrados, como disse certa vez o pregador da Casa Pontifícia.

Por que é diferente esta noite? Qualquer resposta que se pretenda frutuosa precisa incluir em si o fato de que foi nesta noite – a Noite da Quinta-Feira Santa – que teve início a nossa Redenção. Aliás, isto é uma das primeiras coisas que é preciso ter em mente para viver com fruto estes dias: esta noite que estamos vivendo hoje é Aquela Noite Terrível na qual o Salvador foi traído por Judas. Embora não haja rigorosamente representatio da Semana Santa no mesmo sentido em que a Eucaristia contém a Paixão do Senhor (cf. Ecclesia de Eucharistia 11), estes dias devem sim ser vividos “à maneira de um mistério”, como disse o Cantalamessa. Devem ser vividos de um modo místico e, misticamente, esta é a noite na qual o Senhor foi traído. A Noite da Última Ceia. A Noite do Getsêmani. A noite do beijo de Judas.

São estes os eventos onde devemos estar hoje – afinal, são eventos ocorridos por causa de nós. Dizer que Deus faria tudo o que fez para resgatar uma só alma é uma bonita sentença teológica; mas a consciência de que esta única alma poderia ser precisamente a minha é um poderoso elemento de conversão. É somente quando nós aplicamos as verdades de Fé à nossa vida concreta que elas nos são úteis. Em um certo sentido, nós podemos perfeitamente dizer que os eventos dramáticos deste Tríduo Santo gravitam ao redor de nossa existência concreta, da nossa vida particular. Deus é Amor, e a manifestação mais eloqüente desta consoladora verdade é precisamente esta em cujo meio nos encontramos agora.

Quinta-Feira

Chove. Preparamo-nos para a celebração da Ceia do Senhor, logo mais à noite. Não sei se chovia naquela Quinta-Feira de quase 2000 anos atrás; acho até que não. Mas chuva combina com Quinta-Feira Santa, com Cenáculo e Ceia, com Getsêmani e Traição.

Foi uma noite como esta, de quinta-feira e de lua cheia.. Nosso Senhor desejou ardentemente celebrar a Páscoa com os Seus discípulos. E anunciou que um entre eles O iria trair. Como é possível, Senhor, que alguém possua tanta malícia a ponto de Te entregar nas mãos dos Teus inimigos? Como é possível, Senhor, que um dos Teus amigos seja capaz de vender-Te por tão pouco…?

E é olhando pra mim que eu percebo, envergonhado, como tal é possível. Mais que possível: é real. É na minha própria carne que eu percebo este Mysterium Iniquitatis, esta vergonha enorme, esta malícia descomunal! Como Judas, eu também traio a Nosso Senhor.

Que digo…? Mais que Judas! A traição do apóstolo foi uma única vez; quanto a mim, são incontáveis as vezes que decepcionei a Cristo. O preço de Judas foi trinta moedas: quantas vezes não traí a Nosso Senhor por muito menos. Quantas vezes não O traí por puro prazer…! Infeliz de mim. O Getsêmani é aqui. Aqui, Nosso Senhor sofre, por meus pecados; aqui, eu O traio de novo e de novo.

* * *

Termina a celebração, o Sacrário está vazio, o altar está desnudo. Nosso Senhor foi-nos tirado; está preso, e é por culpa nossa. Sofre, e somos nós que O fazemos sofrer.

E impressiona e espanta o tipo de pessoas pelas quais Nosso Senhor quis sofrer e morrer. Pessoas más, mesquinhas, egoístas; pessoas covardes, amargas, rancorosas. Pecadores, como eu. Como pode um Deus sofrer e morrer por alguém como eu? Eu, que O ofendo tanto e tanto…! Eu quem, por vergonhoso que seja confessar, parece que cada Quaresma encontra igual ou pior.

É por mim que sofre o Filho de Deus nesta noite terrível. É por amor a mim – apesar dos meus muitos pecados – que Ele Se deixa prender e maltratar. É por mim que Ele sofre e morre; e eu não posso fazer nada para Lhe retribuir? E eu não posso nem mesmo parar de ofendê-Lo…?

Nosso Senhor foi-nos tirado! É por nossa culpa, por nossos pecados, por nossas faltas, por nossa malícia, por nossa maldade. Por nós Ele foi entregue. Por nós, Ele está preso. Por nós, Ele está prestes a sofrer e morrer.

Cenáculo, Getsêmani, Horto das Oliveiras

Última Ceia. Getsêmani. Traição de Judas. São muitos os acontecimentos que meditamos nesta Quinta-Feira Santa. São todos antecipações da Sexta-Feira Santa, do Calvário: no Cenáculo, antecipação sacramental; no Getsêmani, uma antecipação “volitiva”; e, no beijo de Judas, uma antecipação “simbólica”.

Na Última Ceia, Jesus reúne os Doze Apóstolos – inclusive aquele que O vai trair poucas horas depois – para instituir a Eucaristia, instituir a Santa Missa, antecipar, de modo Sacramental, o Sacrifício do Calvário que seria consumado no dia seguinte. A Ceia não é – como nos é representada muitas vezes – uma festa entre amigos. É um ritual religioso. É um banquete sacrifical. Nosso Senhor sabe-o muito bem. É nesta ocasião que Ele profere as palavras que irão atravessar os séculos e nutrir os filhos da Igreja ao longo de toda a Sua história: ISTO É O MEU CORPO. ESTE É O CÁLICE DO MEU SANGUE.

Corpo e Sangue separados: Nosso Senhor em “estado de vítima”. A separação do Corpo e do Sangue da Vítima imolada, que ocorrerá no dia seguinte quando o Santíssimo Sangue do Salvador escorrer do Santíssimo Corpo pendente do Madeiro da Cruz, já se faz presente na Última Ceia. Nosso Senhor o sabe. Sabe que os Apóstolos – e, depois deles, os cristãos de todos os tempos – precisarão participar do Sacrifício Redentor, do Calvário: pois nem mesmo os Apóstolos estarão lá amanhã, junto à Cruz… Nosso Senhor os ensina como agir. E, após deixar as instruções que serão repetidas pelos séculos e milênios vindouros, retira-se ao Horto das Oliveiras.

Vai sozinho: “Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar” (Mt 26, 36). Como sozinho haveria de subir o Calvário no dia seguinte. Vai rezar. Entristece-se, angustia-se: a natureza humana, vergada sob o peso dos pecados do mundo inteiro, chega quase a vacilar: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (v. 39)! Mas a férrea vontade divina é mais forte do que a fraqueza humana: “Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (id. ibid.). O “sim” dado a Deus por Nosso Senhor supera o “não” primitivo dos nossos primeiros pais: em Jesus, a natureza humana, finalmente, dá a Deus a obediência que Lhe convém.

“Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (v. 42)! E Jesus já começa a saborear o amargo cálice da nossa Redenção, a partir do momento em que o aceita. Diz ao Pai: faça-se a tua vontade. Dobra, portanto, a vontade humana, submete-a à divina. Aceita o Calvário, e já o antecipa neste querer: o solo do Getsêmani – antes mesmo do Gólgota – foi o primeiro a receber o Divino Sangue do Salvador.

“Aquele que me trai está perto daqui” (v. 46). Já se aproxima o Traidor; perto estava Judas porque estava nos arredores do Horto, mas também não estaria ele “perto” por ser um dos Doze? Por ser um Apóstolo, do restrito grupo de confiança de Nosso Senhor? Judas estava perto e, com um beijo, entregou a Deus “nas mãos dos pecadores”.

Um Apóstolo traindo a Nosso Senhor! Devemos nos escandalizar, portanto, se, hoje, Judas tem sucessores? Devemos porventura nos escandalizar ao vermos bispos traindo a Esposa de Cristo? Na Quinta-Feira Santa, sob a luz da lua cheia, Jesus foi traído por um beijo. E este gesto de carinho que, para Ele, era sentença de condenação, vindo de alguém que, com Ele, havia ceado pouco tempo antes e, no entanto, agora fazia o papel do carrasco… não terá sido um sofrimento inimaginável? Jesus é preso. A Traição é já o início do Calvário; ela O antecipa neste beijo que é sentença de morte proferida por alguém que Nosso Senhor veio para salvar – como, amanhã, Jesus vai morrer pelas mãos dos pecadores, em favor destes mesmos pecadores.

No Cenáculo, portanto, e no Getsêmani, e no Horto onde Jesus foi preso, tudo nesta quinta-feira aponta para a Sexta da Paixão. Tudo nela rescinde a morte: propter peccata nostra. Acompanhemos Nosso Senhor na Sua paixão, hoje três vezes antecipada. Unamo-nos a Ele. Que Ele tenha de nós misericórdia.