A bebida, o cigarro, as guloseimas infantis

Gostei às avessas da coluna do Gilberto Dimenstein de hoje. Não que eu a tenha detestado; apenas senti um alívio reconfortante ao ver o colunista esbravejar contra o “Lei Seca” que dá nome à nossa legislação que proíbe o álcool no volante. Praticamente todas as sandices que ele diz podem facilmente se transformar em verdades até bem óbvias, bastando que a gente retire algumas negativas. Veja-se: é verdade que a Lei Seca brasileira é «moralista, repressora e ineficiente», que com ela «o poder público está reprimindo um direito individual» e que, portanto, é um dever cívico dizermos em alto e bom som «que [est]a lei é repressora e cretina como a Lei Seca [americana]». Por mais que protestem os colunistas da Folha, parece-me que (graças a Deus) não conseguirão silenciar estes juízos de valor que brotam do bom senso da população brasileira.

Podem usar o apelo emocional que quiserem para justificar o absurdo: nada vai convencer uma pessoa mentalmente sã de que é razoável aplicar uma multa de 2000 reais, prender por (no mínimo) seis meses e proibir de dirigir por um ano um fulano que esteja tranqüilamente voltando pra casa após tomar uma cerveja no almoço. Reduzamos a pó os sofismas midiáticos: não é verdade que “a lei está salvando vidas”, pois as pessoas que põem a vida de terceiros em risco não são as que tomaram um copo de cerveja, e sim as que não têm condições de voltar pra casa sozinhas nem a pé – e para retirar estas da rua não era necessário impedir aquelas de dirigirem. Tampouco é relevante o fato de que “não é a mesma coisa” dirigir mesmo após um gole de bebida que seja, porque existem inumeráveis e inevitáveis outros fatores que afetam o abstrato “pleno gozo das capacidades mentais e físicas” dos quais, idealmente, o motorista deveria dispôr ao sentar-se ao volante: coisas como sono, anti-alérgicos ou preocupações com o trabalho ou a família potencialmente afetam-no muito mais do que uma taça de vinho no jantar, donde se vê que a discussão não deve ser sobre se algo influencia ou deixa de influenciar a capacidade de fulano dirigir e sim a partir de quando esta capacidade está comprometida a ponto de colocar em risco a vida de outros.

Mesmo os que concordam com a lei são praticamente unânimes em dizer que as pessoas normais estão pagando pelas que exageram, o pai de família responsável que tomou uma taça de vinho com a esposa no jantar pelo bêbado que passou a noite enchendo a cara na balada e agora mal consegue ficar em pé. Há, portanto, inocentes pagando por culpados. Isto significa (por mais que o Dimenstein não goste de dizer as coisas às claras) que o Poder Público está sim reprimindo – injustamente! – direitos individuais, está dizendo como as pessoas devem agir ou evitar agir em assuntos que não dizem respeito ao bem público. Algumas pessoas não se importam com isso; eu acho que deveríamos nos importar.

A Lei Seca aqui citada é somente um exemplo de algo muito mais genérico: a noção de que o Estado possa (ou até deva) regular as minúcias da vida individual, dizendo o que as pessoas podem ou não podem fazer em assuntos totalmente alheios (por vezes, até contrários!) à ordem da vida em sociedade que o Estado deveria tutelar. Em uma coisa o Dimenstein está completamente certo: a Lei Seca é «algo do tipo como não fumar em locais fechados». Sim, verdade: é pelo menos tão absurdo quanto, provavelmente até mais grave, mas da mesma espécie depravada de idéia que só pode sair da cabeça de mini-ditadores ávidos por controlar a vida alheia em aspectos que cada vez menos lhes dizem respeito.

É dever do Estado punir os crimes, mas não a mera possibilidade de cometê-los, senão caímos em Minority Report. É justo e razoável que o Estado puna quem cometeu um acidente de trânsito, mas é absurdo autorizá-Lo a punir o (alegado e questionável) risco de provocar um acidente. Nem Deus pune os homens desse jeito! E os burocratas que se deixam inebriar por essa onipotência legislativa não conhecem limites. As ordens tendem a ficar cada vez mais estapafúrdias. Já existe um projeto de lei – aprovado pela Câmara dos Deputados! – que proíbe o motorista de andar com bebidas alcóolicas em qualquer outro lugar do carro que não o porta-malas, ainda que ele próprio não esteja bebendo. O carona tampouco pode beber. O que é isso agora? Certamente o projeto deve estar recheado de floreios retóricos provando por “a + b” a má influência que a cerveja nas mãos do passageiro pode exercer sobre o motorista forçosamente abstêmio; mas punir esta caricatura de ocasiões de pecado evidentemente não é papel dos Poderes Públicos. Como foi possível que nós tenhamos chegado aqui?

Este texto sobre um outro aspecto da mesmíssima doença – agora voltada para a propaganda infantil – dá-nos uma preciosa dica. Vale a leitura na íntegra, mas destaco estes dois parágrafos que são bem representativos do que estamos querendo dizer:

Lembrar aos pais que a responsabilidade sobre a obesidade de seu filho pertence a eles mesmos, que aos pais cabe a decisão de ter ou não ter uma TV em casa, de que o controle do dinheiro da família não é da criança, e que, portanto, não há possibilidade de um filho se encher de gordura sem que o pai não tenha de alguma forma permitido tal lambança, pelo fornecimento de capital e pela falta de autoridade, seria inconveniente e impopular. Seria sincero demais.

[…]

Não, não se trata da defesa dos direitos da criança. Trata-se, mais uma vez, da diminuição da liberdade do cidadão, do enfraquecimento da autoridade dos pais, da ingerência estatal no livre mercado e na mídia, da pulverização das responsabilidades individuais, do fortalecimento e da expansão do aparato estatal sobre as consciências e sobre toda a sociedade.

Trata-se, em suma, da dissolução das responsabilidades individuais por meio da transferência de tudo para o coletivismo – para o Estado. E um povo sem responsabilidades individuais é um povo fraco e medíocre, presa fácil para toda sorte de tiranias que soem medrar em ambientes assim. O cigarro, a bebida, as guloseimas infantis! Para fins de compreendermos a seriedade destas questões, talvez fosse importante perguntarmos onde eles irão parar. Mas, para que saiamos da letargia que retroalimenta esse ridículo “pode-não-pode” estatal, talvez a pergunta mais adequada a se fazer aqui seja até onde nós os deixaremos ir.

Alvíssaras! Agora o Governo não vai precisar gastar com as crianças que não virão!

O Brasil é um país gravemente doente: este é o resultado que salta aos olhos quando se lê a apresentação dos resultados preliminares do Censo 2010 do IBGE. E a prova cabal desta doença está exposta no próprio texto, em letras capitais sem que contudo se dê maior atenção ao fato: «Taxa de fecundidade chega a 1,86 filho por mulher; em 2000 era de 2,38 filhos». Abaixo, a tabela:

A média nacional está abaixo da taxa de reposição populacional (de 2,1 filhos por mulher), assim como quase todas as médias regionais (à única exceção da região Norte – que é a mais alta – com 2,42). A região Sudeste chega a incríveis 1,66 filhos por mulher, colocando-se assim bem próxima às taxas mais críticas dos mais problemáticos países europeus (problema, aliás, que é reconhecido até mesmo pelos ateus, embora estes não dêem o braço a torcer quanto às suas causas).

Mas o mais incrível de tudo foi ouvir hoje na CBN o Gilberto Dimenstein falando que isto é uma coisa muito boa, muito legal e muito importante porque… agora  “fica mais fácil” pro Governo, que “não precisa construir tanta creche, não precisa construir tanta escola”! Sim, senhoras e senhores, as aspas são literais, e o comentarista da CBN saúda o suicídio demográfico do Brasil porque agora o Governo não vai precisar gastar tanto com as crianças que não virão!

Com relação aos graves problemas que vêm com as pirâmides etárias invertidas, o Dimenstein é perfeitamente lacônico: lá pelos 1m50s, ele fala que “ainda num vamo pegar o rolo de ter muita população na chamada terceira idade” (!). E pronto. Resta explicar por qual miraculoso motivo nós não iríamos pegar este “rolo”, se estamos caminhando cada vez mais rápido para ele (afinal, a variação da taxa de natalidade na última década foi de mais de 20% para baixo) e isto sim é matemática básica. Ora, ter uma taxa de natalidade inferior à de reposição (que é o caso do Brasil) significa exatamente que mais pessoas morrem do que nascem, que mais pessoas saem do mercado de trabalho do que nele entram, que cada vez mais pessoas precisam ser sustentadas por cada vez menos pessoas: e este é exatamente o “rolo” que o Dimenstein (contra toda a lógica mais elementar) diz que nós “num vamo pegar” – com a mesma simploriedade com a qual um cego caminhando em direção a um precipício dá graças a Deus porque “ainda” não vai cair nele.

Eu não sei se isto é uma crença irracional no progresso (por achar que, no futuro, estes problemas vão simplesmente “se resolver” sozinhos), se é um otimismo completamente irreal (como se, depois, fosse só dizer às pessoas “tenham filhos!” para que as taxas de natalidade se equilibrem automaticamente) ou se é, simplesmente, uma irresponsabilidade para com o futuro. Sei que é sintomático que a imprensa formadora de opinião deste país saúde com alvíssaras as notícias que prenunciam o declínio da civilização, o inverno demográfico, a crise à mostra adiante em direção à qual se caminha a passos largos e sorridentes. É sintomático e é deprimente.