A Universidade Federal de Pernambuco acaba de entrar em greve. Sem entrar no mérito desta decisão específica, gostaria de aproveitar o ensejo para falar sobre a “greve” no seu sentido mais amplo, uma vez que o exemplo é amiúde evocado como uma “prova” de que a Igreja “mudou” o Seu ensinamento a este respeito.
Sobre as greves diz Leão XIII na Rerum Novarum:
22. O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. E preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão–de nascer os conflitos entre os operários e os patrões.
A leitura superficial pode se revelar enganosa e, a um leitor menos atento, pode parecer que a Igreja é “contrária às greves” assim, sem mais ressalvas. Ou ainda, caso as pessoas tenham o cuidado de abrir o Catecismo da Igreja Católica, podem se deparar com a seguinte passagem e julgar que, afinal, a Igreja dizia ontem uma coisa e hoje diz o contrário:
§2435 A greve é moralmente legítima quando se apresenta como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado. Torna-se moralmente inaceitável quando é acompanhada de violências ou ainda quando se lhe atribuem objetivos não diretamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum.
E então? A greve é “moralmente legítima” ou é uma “desordem grave”? Vale o que foi dito no século XIX ou vale o que é dito hoje? Na verdade (e aliás como sempre), valem as duas coisas. De que maneira? Muito simples: mudou-se o que se entende por “greve”.
A Igreja sob Leão XIII nunca condenou a greve entendida como o direito de se recusar a trabalhar em condições degradantes. O que a Igreja condenou foi o evento sociológico “greve” da época, que tinha pouco ou nada a ver com as greves atuais: naquela época, era “greve” quando os trabalhadores ocupavam as fábricas, quebravam as máquinas e, se calhasse, matavam o patrão ou os que lhe eram próximos. A greve era um atentado concreto (pelo menos) ao direito à propriedade e (não raro) ao direito à vida. Óbvio, portanto, que tal coisa fosse condenada. Aliás ainda o é.
Igualmente, hoje não é “qualquer greve” que é legítima: ao contrário, são legítimas as greves que «se apresenta[m] como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado», como está no Catecismo. E só é legítima a greve que (ao contrário daquelas historicamente condenadas pela Igreja) não seja “acompanhada de violências”. Mudaram, portanto, as contingências históricas: permanece imutável o ensino moral da Igreja, que (por definição) não se pode mudar.
Confundir realidades distintas por conta do emprego comum de um mesmo termo para designar ambas é sempre um risco. Mas outro risco é o de achar que, com a mudança das realidades contingentes, mudam-se (ou abrandam-se) as condenações da Igreja. Julgar desta maneira é não entender o que aconteceu neste caso da greve (e em outros casos análogos, como o dos juros): as condenações da Igreja não “se abrandaram”, elas permanecem integralmente válidas. O que deixou de existir foi o objeto da condenação: antes havia uma coisa caracterizada por proletários destruindo fábricas e, hoje, existe uma outra coisa que se caracteriza por empregados se recusando a trabalhar. Ambas foram contingentemente chamadas de “greve”, mas é bastante evidente que se tratam de realidades bem distintas. Se alguém resolver quebrar máquinas hoje como se fazia no século XIX, não pode aduzir em sua defesa um alegado “direito de greve” reconhecido tanto pela Igreja quanto pelo direito brasileiro. Igualmente, se algum proletário da época da Revolução Industrial resolvesse então dizer que não ia mais trabalhar enquanto não fosse melhor remunerado, tal situação não seria de modo algum condenável pelas autoridades eclesiásticas da época.
É desse modo, portanto, que deve ser entendida a autoridade moral da Igreja Católica: separando-se as questões de princípio das questões de fato, recaindo a infalibilidade magisterial (e a sua conseqüente irreformabilidade, etc.) sobre as primeiras. Quanto às questões de fato, é preciso ter em mente que as contingências históricas podem mudar e, portanto, pode ser que as condenações de outrora deixem de valer por mera vacuidade contingente do objeto condenável (sem que contudo o objeto deixe de ser condenável). Mas mesmo quanto às questões de fato compete às autoridades da Igreja dar a orientação definitiva. Ninguém pode levianamente afirmar que certas condenações do passado não são mais válidas: na verdade, as condenações do passado são sempre e para sempre válidas. O que pode acontecer, repita-se, é que não exista mais o objeto anteriormente condenado; mas até para a emissão desse juízo de fato é mister estar em delicada consonância com o Magistério da Igreja.