Nem me lembro de quando começou a chover no Rio de Janeiro; o que eu lembro é que na terça-feira, na Missa de abertura, já estava chovendo um bocado. Eu já estava gripado, e neste dia quase morro: enrolado numa bandeira do Brasil (ou de Pernambuco?) na areia da praia, sentado, com um guarda-chuva, enquanto a chuva fina fustigava e o vento da beira-mar cortava. Eu estava doente e, portanto, não posso avaliar com certeza, mas acho que este foi o dia da sensação térmica mais baixa. Depois da Missa, a sopa quente de abóbora com não-sei-mais-o-quê revigorou-me. Santa sopa! No mesmo dia eu já era um homem novo: tanto que os meus amigos, brincando, disseram-me estar já preparados para a minha missa de corpo presente no dia seguinte, se o jantar não tivesse feito tão portentoso milagre. Voltei bem melhor para casa – ou pro alojamento que nos acostumamos, naqueles dias, a chamar de “casa”.
No dia seguinte continuou chovendo – tanto que a nossa exposição, montada em tendas no Largo da Carioca, teve que ser suspensa. Na quinta-feira estava chovendo ainda. Não era nenhuma tempestade tropical: era uma chuva fina e insistente, um céu permanentemente nublado, um derramar constante de água. Na própria quinta-feira nos vem a notícia: a vigília e a Missa de encerramento poderiam ser transferidas, por conta da chuva, de Guaratiba para Copacabana.
Uma amiga revela a sua preocupação com o fato do metrô não ter vendido bilhetes para este dia. Eu prontamente respondo que a venda de bilhetes por horário só atrapalhara: aquela multidão se auto-organizava. Eu já o vira antes. Em Madrid, voltando de Cuatro Vientos, vi dois milhões de jovens entrarem em uma única estação de metrô após uma Missa celebrada no extenuante verão europeu, organizados por um único “guardinha” que, postado à entrada da estação, gritava “stop!” quando lhe parecia que a plataforma já estava suficientemente cheia. E funcionou. Não via razão para que o prodígio não se repetisse do lado de baixo do Equador; como em muito do que ocorreu no Rio de Janeiro, o excesso de preocupação com o controle detalhado das multidões atrapalhava a Jornada, e melhor fariam os organizadores se se preocupassem com o que estava a seu alcance fazer.
Eu tinha certeza de que as pessoas conseguiriam chegar a Copacabana. A minha preocupação era outra: ora, a peregrinação para o local da Vigília é parte constituinte da JMJ. Colocando os dois últimos atos centrais dentro da cidade, o ineditismo da decisão acabava por sepultar um aspecto (a meu ver muito importante) da Jornada: a peregrinação propriamente dita. Graças a Deus, os organizadores do evento tiveram esta mesma preocupação. E decretaram: a peregrinação (de 10 km) não deixará de existir, mas será dentro da cidade, da estação Central à Praia de Copacabana, via aterro do Flamengo e Botafogo.
E eu gostei sobremaneira daquela peregrinação dentro da cidade do Rio de Janeiro. Ora, embora fosse um sábado, muitas das coisas da cidade estavam abertas: passamos por estabelecimentos comerciais, pelos pontos de ônibus, pelas vias repletas de carros, pelos viadutos cheios de pedestres. Em todos os lugares éramos recebidos com um sorriso no rosto; muitas pessoas – que não estavam na peregrinação, habitantes normais da cidade que estavam somente passando – acenavam e cantavam conosco, tiravam fotos e filmavam, e depois seguiam o seu caminho. Nós íamos felizes, enfrentando cada quilômetro com a tranqüilidade de quem está anunciando a Deus da maneira mais fácil possível: com o simples fato de estarmos lá, engrossando aquela multidão. Nem mesmo as (já relatadas) dificuldades com o recebimento do kit-vigília ou a escassez de sanitários no caminho arrefecia o nosso ânimo. Íamos andando e cantando, e era emocionante ver como aqueles túneis reverberavam ao som de “eu / sou brasileiro / com muito orgulho / com muito amor” ou “esta es / la juventud del Papa” quando por dentro deles passávamos.
Estimo que mais de um milhão de pessoas tenha passado por aquele caminho (reservado para nós) entre a Central do Brasil e a Praia de Copacabana. Não houve um único instante ao longo de todo o dia em que ele estivesse vazio: ao contrário, estava sempre repleto de grupos e mais grupos de peregrinos, caminhando animados em direção ao local da Vigília com o Santo Padre. Uma multidão contínua, espalhando-se ao longo de 10 km, das primeiras horas da manhã até depois de cair à noite: eis o que éramos na Cidade Maravilhosa! De longe, a maior manifestação pública que aquela cidade já recebeu. De longe, a maior passeata da qual o Rio de Janeiro já foi palco. E nós, católicos de todos os cantos do mundo, testemunhávamos a vitalidade da nossa Fé pelo simples fato de seguirmos aquele caminho, com as nossas orações e cânticos alegres, com as nossas bandeiras e camisas e mochilas da Jornada. Nunca era tão fácil ser publicamente católico, e nunca um testemunho público era tão eloqüente como naquele sábado.
Num sábado, aliás, em que já não chovia! Já estiara desde a véspera. A chuva durou só o suficiente para que a organização do evento transferisse os atos centrais de Guaratiba para Copacabana: depois disso, dir-se-ia que Aquele que «faz chover sobre os justos e sobre os injustos» (Mt V, 45) já Se dera por satisfeito, já atingira o Seu intento. E que intento sagrado era esse?
Tenho a íntima convicção de que era vontade positiva do Deus Altíssimo que a Vigília e a Missa de Encerramento da JMJ acontecessem em Copacabana. Ora, todos os cariocas com os quais eu conversei foram unânimes em dizer que aquela chuva era completamente atípica para aquela época do ano. E ela só durou o suficiente para que o local dos últimos eventos fosse alterado: a mesma chuva que forçou uma mudança de planos de última hora e que inviabilizou um lugar que estava sendo preparado há meses para receber a Vigília e a Missa da JMJ deu delicada licença para que estes atos acontecessem tranqüilamente em Copacabana, sem a menor contrariedade provocada por eventuais intempéries da Natureza. Somando-se a isso o extraordinário público em Copacabana e o belo testemunho dado por aqueles milhões de peregrinos atravessando o Rio de Janeiro, o que se pode dizer senão que Deus, dos insondáveis arcanos da Sua Providência, dispôs positiva e harmoniosamente as coisas para que elas acontecessem exatamente desta maneira?
Esta foi a Jornada que Deus quis, contra o que desejavam os seus organizadores. Após a JMJ, conversando no metrô com uma carioca, ela me disse que achava um absurdo que tivessem planejado “esconder Deus lá em Guaratiba”: a vitrine do Rio de Janeiro era o centro e a Zona Sul e, portanto, para o evento ser mostrado para o mundo inteiro, era lá que ele precisava ocorrer. Concordo com a análise dela: os últimos eventos da Jornada não teriam um público tão grande e nem seriam tão visíveis se não tivessem acontecido no coração da Cidade Maravilhosa. E eu tenho ainda uma outra hipótese para a teoria: Deus Se ofendeu com o par de chifres em cujo meio os organizadores da JMJ queriam que o Papa celebrasse a Santa Missa, e humilhou os que queriam zombar d’Ele fazendo com que uma chuva fina, quase uma garoa, levasse todos os seus planos por água abaixo. Que a lição tenha servido aos ímpios: que eles tenham aprendido que de Deus não se zomba. E todos nós, que participamos da Jornada ou a acompanhamos, tenhamos a certeza de ter presenciado, no Rio de Janeiro, a ação poderosa do Onipotente. O brado de «queremos Deus!» no meio de um mundo secularizado foi proferido com estrondo: que o ouçam. Que a semente lançada germine. Que o espetáculo daqueles dias desperte-nos do estado letárgico em que estivemos até agora. Esta é a Terra de Santa Cruz! Que não nos esqueçamos disso. Que a força da Igreja reunida aos milhões em torno do Vigário de Cristo nas areias de Copacabana nos lembre dessa importante verdade.