Saiu no Le Monde (disponível para compra) e saiu uma tradução na mídia brasileira (só para assinantes), que eu recebi por email e reproduzo abaixo. A matéria é da autoria de Henri Tincq, que é um jornalista francês especialista em religião. Não o conhecia.
O google me mostrou outras coisas dele:
– Henri Tincq’s Portrait of Josef Ratzinger (part I e part II), de 2005, em inglês.
– Qui est Josef Ratzinger?, no Le Monde de abril de 2005, em francês.
Na minha opinião, o texto abaixo tem o seu valor principalmente pela – digamos – “consideração não-religiosa” da importância do papado de Bento XVI, bem como pela sóbria biografia do Santo Padre. E – eu não poderia deixar de salientar – pela citação a respeito da Liturgia, que é preciosa (grifos meus):
A liturgia não foi reformada, diz ele [o então padre Ratzinger], “para aumentar o número de pessoas que vão à missa”, mas sim para colocá-las “diante do gládio cortante da Palavra de Deus”. Ou seja, em outras palavras, a convicção teológica passa antes da conveniência pastoral. Mesmo que correndo riscos de passar por um nostálgico da antiga liturgia e por um aliado dos tradicionalistas, o papa jamais renegará este dogma.
A Igreja tem muito o que ensinar a todos os homens. Bom seria se o Papa fosse considerado (ao menos!) como um professor por aqueles que não professam a Fé Católica e Apostólica. Eis o sadio “diálogo com o mundo” que seria tão salutar!
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Quando chamam o papa de “Herr Professor”
Henri Tincq
Este homem de 81 anos escreveu muitos livros, inclusive a respeito dele mesmo, e com pudor. Contudo, este autor prolífico, este universitário que dedicou cerca da metade da sua vida à sua função de docente antes de passar a ocupar os mais expostos entre os cargos da Igreja, permanece um enigma. Não se pode compreender sua visão trágica da história, seu combate contra o “relativismo” moral, sua fidelidade para com a antiga liturgia, sem antes reexaminar de perto o itinerário deste intelectual que revela ser muito mais atormentado do que sugerem as caricaturas que fazem dele.
Enquanto João Paulo 2º tinha a Polônia, Bento 16 tem a Bavária. Ou seja, dois pólos situados nessa Mitteleuropa – a “Europa do Meio”, cujas capitais são Cracóvia e Munique – onde os campanários dotados de um bulbo e a arte barroca esculpiram um catolicismo da Contra-Reforma; onde a liturgia, os ornamentos e os cânticos se fundem na paisagem rural, na vida familiar, nas festas, na cultura, no movimento das idéias e na música. Para Joseph Ratzinger, a Bavária não representa apenas um berço, como é também um santuário onde ele se alimenta da sua combinação de suavidade com perseverança. De um catolicismo bávaro encantado, ele herdou um gosto imoderado pela tradição, pela solenidade litúrgica, uma veneração pela música de Bach e de Mozart, além de um respeito repleto de melindres pelos ritos e os ofícios.
Da mesma forma que Karol Wojtyla, ele sofreu o ascendente de um pai militar que, ao sabor das transferências, deslocou sua família para cima e para baixo, entre o Inn e a Salzach – Joseph Ratzinger nasceu em 17 de abril de 1927 em Marktl-am-Inn -, nessa Baixa Bavária mais próxima da Áustria católica do que da Prússia protestante. Dentre os dois patriotismos bávaros do século 19 – o primeiro voltado para o Reich alemão, e o segundo, para o império austríaco, católico e grande admirador da França -, é neste último que se inscrevem os seus genes familiares. Contudo, o patriotismo da família Ratzinger é intenso, porém nem um pouco exaltado. Ao lado da sua irmã Maria e do seu irmão Georg, o futuro papa, que já se mostra tímido, solitário, introvertido, cresce em meio a um ambiente estudioso, pio, tranqüilo.
Esse mundo acaba desmoronando com a guerra. Tanto o alemão Ratzinger quanto o polonês Wojtyla passam a serem tragados muito cedo por dramas que iriam alimentar, neles, uma visão trágica da história, na qual estão vinculados a insensatez, a morte de Deus e o aniquilamento do homem. Na época, Joseph Ratzinger ainda é novo demais para assistir ao crescimento do nazismo, que ele descobre apenas através das explicações oferecidas pelo seu pai. “O 3º Reich o repugnava terrivelmente”, confessaria o futuro papa em sua autobiografia. Assim como todos os adolescentes, ele é alistado por meio da força para servir na Hitlerjugend (as Juventudes hitlerianas). Quando já era seminarista, ele foi mobilizado em Munique para participar da defesa antiaérea. Após ser internado num campo americano, ele foi libertado em junho de 1945.
Ratzinger nunca se mostrará muito loquaz em relação a este período. Em Auschwitz, em maio de 2006, Bento 16 chegará até mesmo a chocar a platéia no discurso em que ele apresenta sua análise a respeito do nazismo, o qual ele reduziu a um crime perpetrado “por um bando de criminosos”. Na opinião de Claude Dagens, um bispo e acadêmico, ele pertence “àquela geração de alemães que carregou nas costas todo o peso da culpabilidade”. Por serem raras, as suas declarações a respeito dessa questão são tanto mais valiosas. Em 2001, durante uma conferência na igreja Notre-Dame de Paris; e depois, em 6 de junho de 2004 em Caen (na Normandia), por ocasião do 60º aniversário do Desembarque dos Aliados, aquele que ainda não se tornou o cardeal Ratzinger identifica todas as barbáries – Auschwitz; o gulag; os genocídios no Camboja e em Ruanda – com ideologias fundamentadas na ruptura com Deus (“O inferno é viver na ausência de Deus”) e com a Razão, que se tornou cínica e enlouqueceu.
No seminário de Freysing, na Bavária, o jovem Ratzinger devora todos os livros, sejam eles de autoria de escritores contemporâneos alemães (Gertrud von Le Fort, Ernst Wiechert), ou estrangeiros (Dostoievski, Péguy, Claudel, Bernanos, Mounier, Mauriac). Ele descobre as idéias dos filósofos Heidegger e Jaspers, além de “testemunhas eminentes” como Thomas More, o cardeal Newman e Dietrich Bonhoeffer, que “fizeram prevalecer sua consciência acima do consenso geral”. Em teologia, ele lê Romano Guardini, Henri de Lubac e os mestres alemães: Luther (Martin Luther, 1483-1546, o pai do protestantismo), de quem ele conhece as idéias de cor e salteado e de quem ele admira o gênio espiritual, mais do que as realizações da Reforma; Rudolf Bultmann, o exegeta modernista, ou Karl Barth, o protestante que prega a primazia absoluta da palavra de Deus.
Contudo, nenhum destes, em sua opinião, é superior a Santo Agostinho (354-430). Uma alma atormentada, Agostinho carrega o peso do Mal e do pecado, os quais, segundo ele, são redimidos pela “graça”. Na qualidade de bispo, ele é uma testemunha da esperança cristã, num Império romano que está desmoronando. Ele encarnará a culpabilidade ocidental, até o advento de Luther e do jansenismo (nos séculos 17 e 18). Ou seja, uma visão do mundo insuperável no entender do jovem Ratzinger que, além da experiência da guerra, também preza em Agostinho a sua visão de um mundo “niilista”. Portanto, é a este Pai da Igreja que ele dedica a sua tese de doutorando em teologia (1953). Além disso, será por ocasião de um congresso “agostiniano” que ele virá pela primeira vez a Paris, em 1954.
Ratzinger não é um filósofo nem um moralista, diferentemente de João Paulo 2º, cujos estudos haviam sido impregnados pela fenomenologia (Max Scheler, Husserl), e que freqüentava os filósofos franceses Ricoeur e Levinas. Ratzinger é em primeiro lugar um teólogo, convencido de que a sua disciplina está acima da filosofia. As suas categorias se alimentam das obras dos Pais da Igreja (Agostinho, Gregório o Grande, Santo Máximo o Confessor), os quais ele costuma citar até hoje em abundância, e principalmente desde que se tornou papa, em seus escritos. A sua teologia ambiciona ser uma meditação, a partir das santas Escrituras, a respeito da história humana. Este posicionamento comportava certos riscos para a sua carreira universitária, diante dos seus “mestres” alemães ainda marcados pelas categorias petrificadas do néo-tomismo (movimento iniciado no final do século19, baseado numa revisão das idéias de São Tomás de Aquino -1225-1274) e da escolástica. Num primeiro momento, a sua tese sobre a teologia da história na obra de São Boaventura (1221-1274) não obtém uma nota suficiente.
Mas ele poderá saborear sua revanche durante o concílio Vaticano II (1962-1965) durante o qual, aos 35 anos, quando ainda era um jovem universitário em Bonn, ele atuaria como especialista a serviço do cardeal Joseph Frings, uma proeminente figura reformadora do concílio. “Ratzinger vivenciou este evento sem euforia”, comenta Claude Dagens. “Ele é antes um intelectual que não se deixar envolver pela exaltação do momento”. Na presença de sumidades tais como Karl Rahner, Hans Küng, Yves Congar ou Henri de Lubac, ele enxerga no concílio uma chance para o renascimento do pensamento teológico, por meio da reavaliação das santas Escrituras, dos escritos dos Pais da Igreja e de um diálogo com a cultura contemporânea. Em sua opinião, o ponto fundamental é a Revelação de Deus atualizada na história dos homens. Conforme ele havia desejado, o concílio aprova por meio de uma votação um documento de grande importância, a respeito das “duas fontes” da Revelação, as Escrituras compensando o peso da tradição.
Ratzinger chegou ao concílio como um inovador. Mas, dele saiu com a imagem de um conservador. Há mais de quarenta anos que corre esta lenda. O mal-entendido provém da reforma da liturgia, que foi implementada de uma maneira que ele considerava excessivamente radical. Logo, no discurso que ele pronuncia no Katholikentag de Bamberg, em 1966, o professor Ratzinger condena o arcaísmo litúrgico e a modernização desmedida. A liturgia não foi reformada, diz ele, “para aumentar o número de pessoas que vão à missa”, mas sim para colocá-las “diante do gládio cortante da Palavra de Deus”. Ou seja, em outras palavras, a convicção teológica passa antes da conveniência pastoral. Mesmo que correndo riscos de passar por um nostálgico da antiga liturgia e por um aliado dos tradicionalistas, o papa jamais renegará este dogma.
O mal-entendido agrava-se com a revolta estudantil. No final da década, Ratzinger passa a ensinar na universidade de Tübingen. Em 1969, ele enfrenta anfiteatros agitados. Na França, muitos são aqueles que não conseguem compreender – num país onde ela não é ensinada na universidade pública – que a teologia possa se transformar num campo de batalha. Em Tübingen, ela torna-se uma “ideologia revolucionária” no quadro da qual a referência ao Cristo se torna secundária, analisa Ratzinger, ferido por esta “traição”, e que prefere então voltar a ensinar na Bavária (em Ratisbon), rompendo também com a revista progressista “Concilium” para fundar uma outra publicação, a “Communio”, em parceria com Hans Urs von Balthazar. No decorrer dos desentendimentos que o cardeal vivenciará mais tarde, em Roma, com Hans Küng, o seu antigo colega em Tübingen, ou ainda com os teólogos da libertação, esta experiência terá uma influência decisiva.
Este alemão é acima de tudo um filho da Aufklärung, uma corrente de pensamento identificada com as Luzes, da qual ele não é tão radicalmente crítico quanto dizem. Enquanto, para ele, a Fé, sem a Razão, está ameaçada pelo “iluminismo”, a Razão, sem a Fé, está ameaçada pelo “positivismo”, que não atribui à ciência outra lei senão aquela do seu próprio desenvolvimento, sem qualquer preocupação com a ética. Mas, no entender de Ratzinger, as Luzes também criaram as condições políticas necessárias para a liberdade dos crentes. No diálogo que ele manteve, em janeiro de 2004, na Academia da Bavária, com o filósofo agnóstico Jürgen Habermas, o cardeal Ratzinger sublinhou a legitimidade da razão secular, quando o seu interlocutor admitiu que a razão moderna não pode prescindir do “potencial de sentido” da religião, sobre o qual está fundamentada a substância ética dos Estados de direito e das sociedades democráticas.
A grande obsessão do professor Ratzinger é mesmo aquela da “crise da Verdade”. Na Sorbonne, em 1999, ele declarou: “A Verdade, que era uma promessa confiável, atualmente não passa de uma expressão cultural da sensibilidade religiosa geral”. Será o caso de fazer deste papa o artesão de uma reafirmação identitária do catolicismo? A articulação entre a Revelação bíblica e a Razão grega é determinante em todos os seus ensinamentos. É nela que se inspira a encíclica “Fides et Ratio”, de João Paulo 2º (1998), e ainda o famoso discurso de Bento 16 em Ratisbon (2006), que será relembrado apenas por conta da citação histórica que inclui uma crítica contundente do Islã. Este papa emite um alerta ao homem contra toda subserviência da fé à razão de Estado, e contra toda subserviência da razão de Estado a uma fé. Neste sentido, ele está decidido a premunir o mundo contra toda forma de extremismo.
Tradução: Jean-Yves de Neufville