Eu gosto do som das matracas. Lá na paróquia, elas ainda são utilizadas: daqui até o Sábado de Aleluia, mas especialmente hoje, Quinta-Feira Santa. É quando as ouvimos pela primeira vez, em substituição aos sinos [aliás, recomendo – de novo – a leitura deste texto sobre a “morte” da Liturgia]. O som seco, de madeira, em forte contraste com o badalar musical dos sinos que estamos acostumados a ouvir. Há alguma coisa de diferente. O clima é mais grave: Nosso Senhor está prestes a ser traído.
As matracas acompanham a pequena procissão do Santíssimo, enquanto Ele é transladado para o altar da reposição e o altar principal da Igreja é desnudado. O canto dos fiéis acompanha Nosso Senhor em direção ao Horto das Oliveiras, mas o órgão não acompanha o canto: aquele cessou desde o Gloria in Excelsis de hoje, e só voltará a ser tocado no Sábado de Aleluia – lá na paróquia, os instrumentos musicais ainda emudecem duranto o Tríduo Pascal. E o canto dos fiéis “seco”, sem acompanhamento, também revela que existe, hoje, alguma coisa de diferente. Esta noite não é como as outras noites.
Canta-se uma tradicional versão em português do Pange Lingua. “Canta a Igreja o Rei do Mundo / que Se esconde sob os véus; / canta o Sangue tão fecundo / derramado pelos Seus. / E o Mistério tão profundo / de uma Virgem Mãe de Deus”. Omite-se (culpa d’O Domingo que, infelizmente, ainda é usado) uma parte da canção da qual gosto bastante, e eu lamento. Canto-a baixinho, sozinho: “Cristo o Verbo Onipotente / deu-nos nova refeição: / faz-se Carne realmente / o que deixa de ser pão. / Eis que o vinho é Sangue ardente, / vence a fé o gosto e a visão”.
Nosso Senhor acabara de lavar os pés dos discípulos. O sacerdote, hoje, repetira o bimilenar gesto, logo após a homilia. Pode parecer estranho que a Igreja escolha exatamente o dia do lava-pés para celebrar a instituição do Sacerdócio e da Eucaristia, mas a discrepância é somente aparente. Afinal de contas, foi Nosso Senhor que, na Última Ceia, instituiu a Eucaristia e o Sacerdócio – na mesma Última Ceia onde lavou os pés dos discípulos. João Paulo II disse, certa vez, que o Lava-Pés e a Eucaristia eram “duas manifestações de um só mistério de amor confiado aos discípulos”. É um gesto de amor, deste infinito Amor de Deus que se desenha já no primeiro versículo do Evangelho hoje lido: “tendo amado os Seus que estavam no mundo, [Jesus] amou-os até o fim”. Deus ama os homens ao ponto de entregar-Se na Eucaristia por eles. Gosto de imaginar o Lava-Pés como uma espécie de preparação para esta realidade sobrenatural: se os Apóstolos escandalizam-se quando o Mestre lava-lhes os pés, o que não dirão quando Ele lavar-lhes a alma, e não mais com simples água derramada em uma bacia, mas com Seu próprio Sangue derramado na Cruz do Calvário? É preciso, a cada um, quebrar o próprio orgulho, abrir-se à iniciativa salvífica de Deus, aceitar que precisa de ajuda e permitir que Deus venha em seu socorro. Foi preciso aos Apóstolos, é preciso a cada um de nós. Reduzir a cerimônia do Lava-Pés à sua dimensão meramente materialista é não entender nada da riqueza do dia de hoje.
Mas Nosso Senhor agora está no Horto das Oliveiras, e sofre – e nós, à semelhança dos discípulos, não somos capazes de vigiar com Ele uma hora sequer. O drama do Deus que ama “até o fim” a humanidade ainda não está consumado. Acompanhemos Nosso Senhor nesta noite, preparando-nos para o dia de amanhã. Esta noite não é igual às outras. Inicia-se o Tríduo Pascal (aliás, a missa In Coena Domini “termina” sem bênção final). Fiquemos com Nosso Senhor, daqui até o Sábado de Aleluia. Porque, para podermos cantar o Exsultet do Sábado Santo, começamos na Última Ceia, e precisamos passar pelo Horto. E, amanhã, pelo Calvário.
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Ler também: Homilia do Papa Bento XVI na missa in Coena Domini, 01 de abril de 2010.