As imagens religiosas e a intolerância na Facvldade de Direito do Recife

No século XIX, a Facvldade de Direito do Recife foi solenemente consagrada a Nossa Senhora do Bom Conselho, dora em diante tornada a padroeira dos estudantes de direito da referida instituição. A imagem que provavelmente foi legada à Casa na ocasião encontra-se atualmente (e confesso não saber ao certo a partir de quando) como parte do acervo do Museu Franciscano de Arte Sacra.

Em 2007, na comemoração dos 150 anos da supracitada consagração, um grupo de estudantes ofereceu-se para intermediar a doação de uma imagem da Mater Boni Consilii à Casa, a fim de marcar o sesquicentenário. A matéria foi apreciada pelo Conselho Departamental – órgão deliberativo máximo da FDR – que, em sessão realizada aos 04 de dezembro de 2007, aprovou a doação, tomando diversas diligências para a oficialização do gesto.

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Foi designado um professor para supervisionar o processo, pouco tempo depois culminado com a solenidade de doação da imagem, que foi conduzida pelo Cerimonial da Universidade e acompanhada por diversos representantes do corpo docente e discente, pela pró-reitora da UFPE e pelo presidente do Diretório Acadêmico. Passava, desde então, a integrar o patrimônio público da Universidade Federal de Pernambuco.

Cerimônia de entronização da imagem de N. S. do Bom Conselho

A imagem, até a semana passada, ocupava – já há anos – um lugar discreto no hall lateral do edifício, sobre uma mesa, com uma pequena placa indicando as circunstâncias da doação. Não é o lugar que aparece nas fotos acima, mas um bastante similar, do lado oposto.

No último dia 17 de novembro, contudo, segunda feira próxima passada, determinado movimento estudantil atuante na FDR – o Movimento Zoada – adquiriu uma imagem de Iansã (uma divindade afro) e, sem obedecer a nenhuma formalidade administrativa, numa pantomima grotesca da cerimônia acima referida, afastou a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho da mesa onde ela se encontrava para a aposição, ao lado dela, da do orixá. O ato, apresentado como parte da I Semana da Consciência Negra da Faculdade de Direito do Recife, foi interpretado por alguns católicos como provocativo e suscitou vivo debate entre os estudantes.

No dia 20 de novembro, pela manhã, descobriu-se que a imagem de Iansã fora danificada, tendo a sua cabeça quebrada e separada do corpo. O vandalismo provocou viva indignação de toda a comunidade acadêmica e levou a direção a remover todas as imagens do local, até deliberação do próximo Conselho Departamental que está marcado para esta semana.

Os meios de comunicação fizeram verdadeira e macabra festa em torno do cadáver, apresentando o ato como uma vergonhosa manifestação de racismo e intolerância religiosa, com grave prejuízo para a imagem da instituição perante a opinião pública. Para quem vê de fora, fica parecendo que algum membro da Casa, em atitude racista ou de intolerância religiosa, destruiu um símbolo da cultura afro que estava civilizadamente exposto no prédio onde funciona a Facvldade de Direito do Recife.

Eu, na qualidade de discente da Casa e, portanto, de observador interno de toda essa patacoada, sinto-me em condições de apresentar algumas informações a respeito do ocorrido:

1. Para a maior parte das pessoas, católicas ou não católicas, a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho nunca provocou maiores incômodos, sendo interpretada como um objeto decorativo que contava uma parte da história da Facvldade e sobre a qual, portanto, nunca houve necessidade de se suscitar grande polêmica.

2. Também sempre houve, quer no corpo discente, quer no docente, algumas pessoas profundamente incomodadas com a presença da padroeira dos estudantes de Direito do Recife no interior do prédio da Facvldade. Reclamavam contra essa flagrante violação da laicidade constitucional. Ao que consta, já chegaram inclusive a ser enviados requerimentos administrativos pedindo a retirada da imagem, sob este argumento, tendo todos eles sido indeferidos.

3. A razão pela qual a pretensão de remover a imagem da Virgem do Bom Conselho sempre fracassou é bastante óbvia: os que a levantavam eram apenas minoritários descontentes inflamando uma polêmica já pacificada e buscando ressuscitar uma questão já anteriormente decidida. Os símbolos religiosos nos prédios públicos não ferem a laicidade do Estado quando se trata de elementos histórico-culturais: a imagem específica da Virgem do Bom Conselho (e não outra imagem) estava no hall lateral do Palácio não para fazer proselitismo religioso, mas para contar um pedaço da história da Casa.

4. (É esta a razão, inclusive, pela qual não procede, em absoluto, o argumento nonsense de que “se coloca um, então tem que colocar tudo”: há casos em que a função do símbolo religioso em público não é a de representar a religião do povo, e sim a de prestar um tributo à história do país. É por conta de determinadas contingências históricas que os nossos quartéis, por exemplo, guardam ainda imagens da Conceição dos Militares, ou as nossas cédulas de Real ostentam a Marianne revolucionária, ou a cidade de Salvador tem enormes orixás dançando despreocupadamente em público no Dique do Tororó. Tais símbolos, embora conservem o seu caráter religioso, não desempenham função específica de culto, razão pela qual não incorrem na norma constitucional que proíbe ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança” (Art. 19, I, CF). Não tem lógica, portanto, exigir representação isonômica, nos prédios públicos, das religiões do povo brasileiro: prédio público não é lugar para “representar” religião alguma, e os símbolos religiosos lá presentes não estão desempenhando este papel.)

5. É este entendimento o que prevalece na sociedade atual, quando a maior parte das pessoas não se mostra particularmente ofendida em suas crenças íntimas diante de um Crucifixo num tribunal ou de Thêmis na frente do STF. É este o entendimento que prevaleceu no CNJ, quando do julgamento que indeferiu os pedidos para a remoção de crucifixos das dependências do Judiciário. É este o entendimento, por fim, que prevaleceu no Conselho Departamental de 2007 acima referido, que decidiu que a presença de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho no prédio da Facvldade de Direito do Recife não violava a laicidade do Estado.

6. É impossível não enxergar relação entre o incômodo que a imagem da santa católica provocava em alguns e o estardalhaço feito recentemente com a doação da imagem de Iansã: primeiro porque as mesmas pessoas que sempre defenderam a retirada da imagem católica foram as mais ardentes defensoras da permanência da da divindade africana; depois porque tudo foi conduzido de forma a acirrar os ânimos religiosos o mais possível; terceiro porque não faltaram membros do corpo discente e docente a falar, em público, coisas como “que a polêmica gerada pode dar frutos positivos e visibilidade à necessidade de se combater os discursos do ódio e da intolerância” – no caso, o discurso católico de que era ofensiva e desrespeitosa a colocação e a permanência da imagem de Iansã ao lado da de Nossa Senhora; por fim, porque agora as duas imagens foram retiradas e a relativa tranquilidade em que se encontra a Casa parece dar indícios de que o verdadeiro objetivo foi atingido: conseguiu-se um fato novo para levar ao Conselho a fim de anular a decisão pelo órgão tomada em 2007 e, no final das contas, alcançar o direito mesquinho de ostentar a intolerante Mesa Vazia no lugar onde os últimos anos viram repousar a serena imagem da Virgem do Bom Conselho.

7. Em declaração à mídia local, uma militante do acima referido Movimento Zoada – responsável pela “doação” à brasileira da imagem de Iansã – afirmou quanto segue:

Ainda em entrevista ao LeiaJá, a integrante do Zoada, Brisa Lira, afirmou que boa parte dos participantes não são adeptos ao candomblé. A própria estudante se diz ateia e garantiu que colocar a Iansã na Faculdade foi “apenas um ato político”. “Meu sentimento em relação ao acontecido é de total intolerância política”, completou Brisa.

8. Ou seja, a colocação da imagem de Iansã, além de não seguir as exigências legais a que se submeteram os estudantes que, em 2007, doaram a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, ainda foi feita sem nenhuma motivação religiosa sincera: tratou-se tão somente da utilização política de um símbolo sagrado – de uma religião da qual os responsáveis pelo ato não são adeptos – para atacar uma situação que eles, contrariamente ao brasileiro médio, ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Deliberativo do CCJ/UFPE, consideravam injusta. É um escândalo que essa artimanha incivilizada prevaleça e, por conta dela, os derrotados em todas as esferas legais consigam reverter, ad baculum, uma decisão administrativa já há anos definitiva!

9. Last but not least, cabe perguntar quem foi que quebrou a imagem da Iansã. Como nenhuma investigação sobre o assunto foi concluída, a autoria do ato de vandalismo é, até o presente momento, desconhecida. Sendo desconhecido o autor, com ainda mais razão são desconhecidas as intenções que o motivaram a fazer o que fez. Não é possível, portanto, falar que a decapitação da imagem africana tenha sido um ato de intolerância! Com os elementos dos quais dispomos atualmente, pode ter sido qualquer coisa: tanto pode ter sido um acidente quanto uma manifestação preternatural de um Xangô furioso com a utilização desrespeitosa da imagem de sua esposa, tanto pode ter sido um cristão revoltado com a profanação da imagem da Virgem do Bom Conselho quanto um membro de algum movimento estudantil de esquerda que vislumbrou na polêmica uma oportunidade de ouro para conseguir enfim retirar da FDR a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho – e de quebra ainda culpando os católicos.

É esta a triste situação atual: um mal-estar generalizado, um profundo desrespeito à religião católica e ao Candomblé, uma sórdida capitalização político-ideológica de um ato de vandalismo cujas reais motivações ninguém sabe, e um anteparo vazio no hall da FDR. Esperemos o desenrolar dos próximos acontecimentos. Veremos se o Conselho vai respeitar a decisão tomada em 2007 ou vai abaixar a cabeça subserviente diante da truculência dos iconoclastas. Vejamos se ele vai se impôr contra essa terrível falta de caráter na última semana realizada… ou se vai se deixar ser zoado.

Sobre o assunto, ler também (no Facebook):

Vou tentar explicar que da melhor forma que consigo

Vamos falar de igualdade de tratamento?

Já que fui citado…

Em defesa de Iansã.

Na Bahia, “ao mesmo tempo hóstia e acarajé”?!

Hoje pela manhã eu lia, estarrecido, as histórias de que o Arcebispo Primaz do Brasil celebrara ontem (04/12) uma Missa em Salvador onde eram distribuídos, lado-a-lado, acarajés sacrificados a ídolos e o Santíssimo Corpo de Deus sacrificado à Trindade Santa. Mostraram-me o escândalo em pelo menos três lugares distintos: Terra, Bahia em Pauta e A Tarde Online.

Notei que estes textos pareciam ser todos copiados uns dos outros. Embora houvesse uma ou outra diferença, a parte realmente escandalosa era rigorosamente igual em todos os três:

Pela primeira vez, em 30 anos, um arcebispo-primaz do Brasil celebra a missa campal em homenagem a Santa Bárbara. Dom Murilo Krieger presidiu a solenidade no Largo do Pelourinho, onde foi distribuída ao mesmo tempo hóstia e acarajé, que no candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Yansã. Ato que emocionou até os que não têm fé.

Não sei a fonte principal. A notícia em “Terra” cita a sra. Maria Olívia Soares do “Bahia em Pauta”; a reportagem do “A Tarde Online” não cita ninguém, e mostra o texto inteiro como se fosse da sra. Maíra Azevedo. Não conheço nenhuma das duas. Em todo caso, parece-me absurdamente improvável que duas fontes independentes tenham conseguido escrever o mesmíssimo período [qual seja, «onde foi distribuída ao mesmo tempo hostia e acarajé, que no Candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Iansã»] referindo-se a um fato inusitado destes.

Como assim, um arcebispo – e o primaz da Terra de Santa Cruz! – distribuindo comidas ofertadas a demônios junto com a Santíssima Eucaristia em uma Missa solene?! A história não tem verossimilhança; se verdade fosse, seria o caso (como apontou um amigo) de transferir Sua Excelência para a diocese de Pasárgada com a máxima urgência. Não era possível que isto tivesse acontecido desta maneira. Alguma coisa estava errada.

Um outro amigo de Salvador disse que esta missa [de Santa Bárbara] ocorre publicamente no centro histórico de Salvador há muito tempo, a despeito do Cardeal Majella não a celebrar. Sobre os acarajés distribuídos junto com a comunhão, ele afirmou desconhecer o fato; disse que o que acontecia era que, no Ofertório, entravam em procissão algumas coisas, entre as quais o acarajé. É estranho entrar com comida durante a Santa Missa, mas em princípio não é ilegal; a Instrução Geral do Missal Romano, no seu número 73., determina que, na procissão do Ofertório,

[a]lém do pão e do vinho, são permitidas ofertas em dinheiro e outros dons, destinados aos pobres ou à Igreja, e tanto podem ser trazidos pelos fiéis como recolhidos dentro da Igreja. Estes dons serão dispostos em lugar conveniente, fora da mesa eucarística (IGMR 73).

Em princípio, portanto, a comida ofertada aos pobres pode ser solenemente introduzida na Liturgia e, conquanto não seja colocada sobre o altar, não há desobediência às rubricas aqui. Cabe talvez questionar a possibilidade de confundir o povo com esta prática, ou ainda a conveniência de serem tocadas músicas africanas no Santo Sacrifício da Missa (o que aliás é outra coisa), mas não cabe, a partir disso, falar que Dom Murilo Krieger estava distribuindo promiscuamente a Sagrada Eucaristia junto com o Acará de Iansã. Seria, repito, por demais inacreditável.

Ao encontro desta minha incredulidade veio esta nota da Arquidiocese de São Salvador da Bahia sobre o assunto, dizendo com todas as letras que semelhantes afirmações eram inverídicas:

Expressões como “Dom Murilo Krieger presidiu a solenidade no Largo do Pelourinho, onde foi distribuída ao mesmo tempo hóstia e acarajé, que no Candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Iansã” (A Tarde on line e Terra Magazine) não favorecem a grandeza do momento por um simples motivo: faltam com a verdade.

Com o desmentido oficial da Mitra de Salvador, portanto, cabe ao(s) autor(es) da malfadada afirmação sobre a suposta distribuição concomitante da Eucaristia e do Acará apresentarem provas de suas assertivas. Senão, estaremos diante daquilo de que fala a nota: de «falta de conhecimento ou má fé de alguns veículos de comunicação presentes na cobertura da Missa de Santa Bárbara» – coisa que seria profundamente de se lamentar mas que, infelizmente, em se tratando da mídia secular, não seria nada de se duvidar.