Somente Uma pode reinar

Já vi algumas pessoas me perguntarem acerca da relevância social da Igreja Católica no Brasil de hoje. Explicando melhor: pessoas que, vendo o Protestantismo ocupar espaços públicos até ontem reservados ao Catolicismo Romano, querem saber de mim, como católico, se a Igreja não está preocupado com isso, se Ela não pretende fazer nada para reverter essa situação.

Ora, não há nada que a Igreja possa fazer a não ser aquilo que é a sua missão atávica: anunciar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua pureza e em sua integridade, sem lhe adicionar ou suprimir absolutamente nada. Não penso, de nenhuma maneira, que os representantes da Igreja (e aqui eu me refiro principalmente aos clérigos, mas o mesmo se aplica, mutatis mutandis, aos leigos) devam se preocupar em responder aos anseios do mundo moderno. Penso, aliás, que é exatamente o contrário, e que é justamente quando a Igreja se deixa pautar pelas reivindicações do saeculum que a sociedade deixa de Lhe dar valor.

Porque as esferas de atuação são bem distintas. Não adianta à Igreja, por exemplo, tentar competir com as festas e com os bailes no quesito de atração da juventude. Ora, se a juventude é atraída por dada sensualidade, ou certa irreverência, ou determinado passatempo fútil, é lógico e evidente que a Igreja não Se poderá jamais tornar suficientemente fútil, irreverente ou sensual a ponto de bater o mundo nestas características. Se tal fosse possível, deixaria de ser Igreja.

É fora de qualquer discussão que existem diversões sadias. Mas de maneira alguma compete à Igreja — à Igreja enquanto tal — proporcionar, diretamente, essas diversões, transformando os seus templos em casas de espetáculos ou em clubes familiares — ainda que fossem primorosos os espetáculos que lá se representassem ou muito distintas as famílias que ali se reunissem. Ao argumento de combater as más diversões, a Igreja não pode fazer de Si própria um parque de diversões, por mais que fosse um parque de diversões sadias.

O mesmo se diga a respeito da política. Não pode a Igreja competir com as associações civis ou com os partidos políticos no que concerne à persuasão das massas acerca da melhor maneira de se organizar in concreto a vida em sociedade. Ora, a Igreja aponta para a Eternidade, e se é verdade que o Eterno não é alheio ao contingente (coisa, aliás, que é particularmente verdade em se tratando do Cristianismo, que é a Religião do Verbo Encarnado!), não é menos verdade que Nosso Senhor não instituiu a Igreja para sair pelo mundo organizando as mil formas possíveis de os homens interagirem entre si.

Por vezes as pessoas — muitas delas bem formadas — estranham que a Igreja não estabeleça um partido político para fazer frente aos desmandos que grassam no país. É coisa boa e justa que os católicos se envolvam em partidos políticos; que a Igreja tenha Ela própria, institucionalmente, um partido político, aí já é coisa bastante inconveniente. Sinceramente, e para dizer o mínimo, é indigno d’Ela descer a essas minudências de estabelecer orçamentos e impostos, de fiscalizar a realização de obras públicas e dirigir políticas de combate à pobreza.

Porque a Igreja é Rainha e não convém à Rainha sair pelo castelo, à própria conta, com as próprias mãos, espanando o pó dos móveis e lavando os pratos dos banquetes reais. Note-se bem: com isso não se quer dizer, evidentemente, que o castelo deva ter salas empoeiradas e cozinhas sujas. Acontece que a boa ordem de um castelo exige a colaboração de um grande número de pessoas diferentes, com responsabilidades diferentes, todas necessárias ao bem do todo. Se não houvesse quem limpasse, quem cozinhasse, quem passasse, rainha nenhuma conseguiria dar conta de todo o trabalho palaciano. E se não houvesse rainha… ora, sem rainha, por que é que alguém iria construir um castelo em primeiro lugar?

Assim é a Igreja na sociedade, ou ao menos a Igreja discente, a hierarquia eclesiástica. Não dispondo de braços para fazer todas as coisas necessárias à vida secular, a Igreja espera — os padres, os bispos esperam — que os cristãos leigos tomem sob seu encargo a condução dos negócios terrenos. E que o façam de maneira ordenada e correta, edificando a cidade humana à sombra, imagem e semelhança da Jerusalém Celeste.

Da mesma forma esses cristãos leigos devem ordenar o corpo social em atenção ao fim último de cada homem, que é o conhecimento de Deus e o exercício das virtudes com vistas à sua própria salvação — esta, que só no seio da Igreja se dá. Espera, assim, o laicato — e, diga-se, também todo o gênero dos homens de boa vontade aos quais a Igreja já há décadas costume dirigir os Seus pronunciamentos — que a Igreja lhe dirija o caminho, apontando-lhe o que é reto e lhe censurando os desvios. Vivem os leigos, destarte, de olhos voltados para a Igreja — “ecce sicut oculi servorum in manibus dominorum suorum sicut oculi ancillæ in manibus dominæ ejus ita oculi nostri ad Dominum Deum nostrum” (Psalm CXXII, 2) –, esperando d’Ela conforto e direção. Edificando em função d’Ela a Cidade Terrena, que outro motivo não haverá para a construção de uma sociedade o mais possível justa e fraterna.

Porque certas obras humanas só se alcançam à custa de um sacerdócio consistente e devotado. E os sacrifícios que não sejam feitos ao Deus Vivo e Verdadeiro são incapazes de sustentar os homens por tempo suficiente para que dêem frutos.

O que deve, enfim, fazer a Igreja neste momento em que a heresia avança e parece assumir verdadeiro protagonismo na condução dos rumos do país? A Igreja deve ensinar a verdade e condenar o erro!, deve insistir na pregação da Sã Doutrina, no anúncio do Evangelho, na propagação da Fé Católica e Apostólica sem a qual é impossível agradar a Deus. Deve sustentar e inflamar a Fé na alma dos homens, em primeiríssimo lugar, sem querer resolver de chofre, por conta própria, os problemas mundanos: estes serão resolvidos na medida em que puderem ser resolvidos por homens tementes a Deus — homens que aprenderem a temer a Deus ouvindo a pregação da Igreja e nenhuma outra. Porque muitos podem cuidar do palácio, mas somente uma pode reinar no castelo. São muitos os que podem construir uma sociedade mais justa; mas somente a Igreja pode anunciar a Salvação.

Só a Igreja combate a pedofilia com coerência

Mentes pequenas discutem pessoas enquanto grandes mentes debatem idéias. Trata-se de um lugar comum; mas todo lugar comum encerra importantes verdades. As pessoas passam e seu horizonte de atuação é muito restrito; as idéias permanecem, transcendem os homens e modificam o mundo. Discutir pessoas, destarte, é mesquinho, é pequeno, é insignificante. Quem detém pretensões um pouco mais ambiciosas precisa voltar-se para as idéias que levam as pessoas a agirem de tal ou qual maneira.

As idéias, contudo, para produzirem os seus efeitos no mundo, precisam de tempo. Raras vezes os primeiros propagadores de uma nova idéia verão todas as consequências de sua disseminação. Talvez não fosse claro, por exemplo, aos adeptos entusiasmados da revolução sexual da década de 60 que, poucos anos depois, crianças de 12 anos estariam fazendo filmes pornográficos. Por esses dias eu ouvia uma professora comentar que os anos 80 foram estranhos — eu já o comentei aqui. De fato foram tempos sinistros aqueles; considerá-los imprevisíveis, contudo, parece-me excessiva ingenuidade.

O abuso sexual infantil é uma lástima sob quaisquer aspectos deplorável. Creditá-lo à Igreja Católica, no entanto, é de uma hipocrisia avassaladora. Ora, não é possível esquecer — para ficar só no exemplo talvez mais paradigmático — que, há bem pouco tempo, a sexualidade infantil mereceu o apoio entusiasmado e aberto do cinema nacional; e de uma maneira tão constrangedora que a protagonista do filme, posteriormente, empregou sem sucesso a sua fortuna para tentar removê-lo de circulação. Não se diga que foi apenas uma excentricidade isolada da época: hoje mesmo, em pleno terceiro milênio, não falta quem chame de “cultura” o funk que estimula o estupro de meninas. Ora, as idéias têm consequências, por mais que o ignorem os seus propagadores. Nos dias de hoje parece haver um certo consenso de que o abuso sexual de crianças é uma coisa condenável. No entanto, somente a Igreja Católica o tem consistentemente condenado com a devida coerência!

revista-veja-pedofilia

Ninguém faz mais que a Igreja contra a pedofilia. Recentemente se noticiaram novas medidas tomadas pela Santa Sé para facilitar a responsabilização de bispos que forem lenientes em casos de abusos infantis. Fui procurar; o documento que o Papa Francisco promulgou no último 4 de junho chama-se Come una madre amorevole — assim, em italiano mesmo, fugindo ao latim com que se costuma dar título aos documentos pontifícios. A Mãe Amorosa revela-se aqui implacável logo no primeiro artigo: os bispos podem ser legitimamente removidos de suas dioceses se a sua negligência provocar ou não impedir que seja provocado um grave dano a alguém.

Parágrafo primeiro: este dano pode ser físico, moral, espiritual ou patrimonial.

Parágrafo segundo: o bispo pode ser removido ainda que sua negligência não constitua culpa pessoal grave.

Parágrafo terceiro: em casos de abusos sexuais, basta que a indiligência seja grave (em oposição à molto grave do parágrafo antecedente).

Fico pensando em que hipótese um bispo pode ser negligente em matéria de abuso infantil e, ao mesmo tempo, não ser moralmente réu de culpa grave. Porque é evidente que a negligência pode configurar pecado mortal — e, para afastá-lo, é preciso que o agente ou não tenha visto com clareza a dimensão do problema, ou não dispusesse de plenas condições para o evitar. Em uma palavra: a negligência só não implica em pecado mortal se ela não for exigível. Mas, ora, se a atitude que se omitiu não era exigível, é ainda possível dizer que subsiste a própria negligência? Afinal, ser negligente é precisamente deixar de fazer algo que devia ser feito. Se devia ser feito, como é possível que não importe em culpa pessoal? Se não devia, como se pode falar ainda em negligência?

Penso que a novidade do documento reside precisamente nesta possibilidade de responsabilizar pessoas sobre as quais não é possível formar com segurança um juízo moral negativo. Fui olhar o Sacramentorum Sanctitatis Tutela e, nele, não encontrei semelhante previsão; a Graviora Delicta — que afirma ser «Congregationi pro Doctrina Fidei reservata» , entre outros, o «delictum contra sextum Decalogi praeceptum cum minore infra aetatem duodeviginti annorum a clerico commissum» — tampouco a traz. Não me recordo de a ter já visto em algum lugar — e, no entanto, ei-la reluzindo no frontispício da Madre Amorevole do Papa Francisco!

No Direito Penal secular isso provavelmente seria considerado responsabilidade objetiva — a possibilidade de se punir pessoas sem que lhes esteja caracterizado o dolo ou a culpa — e os doutrinadores contemporâneos, ciosos das garantias individuais contra a hipertrofia punitiva estatal, esmerar-se-iam por pintá-la aos olhos de todos como uma excrescência odiosa, não sossegando enquanto não a lograssem proscrever do Ordenamento Jurídico. No entanto, a justiça de Deus não deve prestar contas à justiça dos homens e, se é verdade que Leviathan não pode aplicar uma pena sem um fato típico, antijurídico e culpável, a Esposa de Cristo pode, sim, prescindir dessa culpabilidade na hora de desferir os golpes necessários à proteção dos Seus filhos.

É evidente que pode. Mais até: deve. Em se tratando de uma matéria grave como o abuso sexual de menores, mais do que estabelecer a culpa dos responsáveis importa fazer cessar o abuso e tomar medidas para que ele não se repita. Se determinado bispo não foi capaz de impedir a lepra da pedofilia de apodrecer parte do seu clero, é evidente que este bispo precisa ser substituído independente de sua culpa própria na propagação da epidemia — porque o papel do bispo é proteger os fiéis a ele confiados, e este dever é grave demais para que alguém possa eximir-se dele simplesmente dizendo “não consigo”. Ora, uma pessoa pode, perfeitamente, ser pessoalmente incapaz de enfrentar pervertidos sem que isso lhe acarrete culpa particular alguma. No entanto, tal pessoa não pode ser bispo católico. Não pode, porque de um bispo se exige mais do que de um católico comum. É bom que seja assim. Não pode não ser assim.

Amor_Estranho_AmorO abuso sexual de crianças é uma coisa terrível; nossa sociedade doente, no entanto, encontra e sempre encontrou mil modos de condescender com essa mácula! Lembremo-nos, o cinema brasileiro já filmou Amor Estranho Amor. Os nossos programas de auditório infantis já estiveram repletos de mulheres seminuas. As músicas cantadas ainda hoje por nossas crianças e adolescentes incentivam o sexo mais animalesco. O STF já há alguns anos flexibilizou a presunção de violência no estupro de vulnerável. O MEC há muito propõe aulas de educação sexual para crianças e jovens.

Somente a Igreja é de uma intolerância obstinada, medieval, contra o sexo infantil. Somente a Igreja afirma, sozinha, que o sexo é sagrado e que o seu lugar é dentro do Matrimônio com vistas à formação de uma família. Somente a Igreja prega, sozinha, que é preciso fugir do pecado e das ocasiões de pecado, e que é preciso mortificar os sentidos, e que a pornografia é pecado grave, e que certas modas imodestas muito ofendem a Nosso Senhor. Somente a Igreja ensina, sozinha, que o consentimento mútuo não elide o pecado contra a castidade, e que as depravações sexuais exaltadas pelo mundo moderno não deixam de ser depravações quando são consentidas. E, agora, somente a Igreja, sozinha, determina punição independente de culpa para quem não faz cessar os abusos sexuais sofridos por menores que de algum modo estavam sob sua responsabilidade.

A pedofilia é uma desgraça que cresce assustadoramente no mundo sob o impulso das concepções modernas a respeito do sexo. E somente a Igreja a combate com a coerência exigida. Somente à luz d’Ela este mal poderá ser vencido. Apenas esta Mãe Amorosa é capaz de proteger verdadeiramente os pequenos e indefesos.

Tudo o que é possível é perdoá-lo

O aborto, enquanto assassinato direto de um ser humano inocente, é um pecado grave, gravíssimo — daqueles que “clamam ao Céu vingança”, ao lado de praticar atos de homossexualismo, oprimir os pobres e negar o salário ao trabalhador. Por conta dessa sua (tão grande!) gravidade intrínseca e porque, muitas vezes, o horrendo crime do aborto é negligenciado e encarado como se fosse algo de somenos importância, a Igreja impõe, a quem o pratica e aos que colaboram materialmente com ele, uma pena de excomunhão. É o que diz o Código de Direito Canônico vigente: «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae» (CIC 1398). A pena não é nova; a mesmíssima sanção consta no Código Pio-Beneditino, Cân. 2350, o qual reza: «[p]rocurantes abortum, matre non excepta, incurrunt, effectu secuto, in excommumcationem latae sententiae Ordinario reservatam». Quem procura o aborto, sem exceção da mãe, incorre, alcançado o efeito, em excomunhão automática reservada ao Ordinário.

Ora, existem duas coisas distintas aqui. Existe o pecado mortal, decorrente de uma violação direta de um dos preceitos do Decálogo, cujas conseqüências — das quais a mais grave é a perda do estado de graça — nós conhecemos bem das aulas de teologia moral; e existe a pena canônica de excomunhão, imposta pelo Direito eclesiástico. Conquanto emanem ambas do mesmo ato, as duas coisas não se confundem. Um só é o ato humano aqui: o aborto. Dele decorrem, simultaneamente, duas penas, uma de ordem moral, outra de ordem eclesiástica: uma, a perda do estado de graça, outra, a perda da comunhão com a Igreja.

Todo pecado mortal — e não apenas o aborto — provoca a perda do estado de graça. Para recuperá-lo, são necessárias a contrição, a confissão e a satisfação: i.e., arrepender-se verdadeiramente do mal praticado, confessá-lo a um sacerdote da Igreja Católica que tenha a faculdade de o absolver e, na medida do possível, repará-lo. Esses são os pré-requisitos básicos e imprescindíveis para que alguém, tendo perdido a graça santificante por meio de um pecado mortal cometido após o Batismo, venha um dia a recuperá-la. Sem isso (ou pelo menos sem o primeiríssimo deles, a contrição — e perfeita –, na impossibilidade material de acorrer à Confissão Sacramental), não cabe falar em “perdão”.

Se todo pecado grave, pelo fato mesmo de ser grave (i.e., de ser uma ofensa consciente e deliberada à lei de Deus em matéria grave), provoca a perda do estado de graça, nem todo ele provoca excomunhão latae sententiae. Nem mesmo os pecados que clamam ao Céu vingança são, todos, punidos com excomunhão. Na verdade, são apenas oito as excomunhões automáticas atualmente vigentes no ordenamento jurídico canônico (no Código: aborto, absolvição de cúmplice em pecado contra o sexto mandamento, violação de sigilo de Confissão, agressão física ao romano pontífice, sagração episcopal sem mandato pontifício, profanação eucarística e heresia, apostasia ou cisma — hipóteses às quais foi posteriormente acrescentada a tentativa de ordenação feminina). A excomunhão é mais grave do que o mero pecado mortal, uma vez que rompe o vínculo jurídico do excomungado com a Igreja — o qual passa a, d’Ela, não poder receber mais nada. Quem está em pecado mortal, conquanto não aufira as graças próprias (e.g.) dos sacramentos “de vivos”, está apto a receber o perdão sacramental mediante o Sacramento da Penitência. Quem está excomungado, não; precisa primeiro ter a sua excomunhão levantada para, em seguida, receber o perdão sacramental.

Quem comete o aborto está sob uma dupla pena: a perda do estado de graça, comum a todos os pecados mortais, e a excomunhão, que é própria do aborto (e do restrito conjunto de pecados acima mencionado). Isso significa que, uma vez arrependido, o penitente precisa de um pouco mais do que o comum para se reconciliar com a Igreja: se àqueles que cometem pecados mortais que não excomungam basta a absolvição sacramental (i.e., basta a confissão com qualquer sacerdote que esteja apto a ouvir confissões), quem está excomungado precisa antes ser readmitido à comunhão eclesiástica para, só depois, ser absolvido.

O problema é que nem todo padre possui, de ordinário, o poder de levantar a excomunhão do aborto. Assim, quem comete o pecado do aborto — e que está, portanto, além de em pecado mortal, excomungado — precisa, para se reconciliar com Deus e a Igreja, de um sacerdote não só capaz de ouvir confissões, mas também com a faculdade de retirar a excomunhão. Quem possui tal faculdade, segundo o que está expresso no Código Pio-Beneditino (e ainda em vigor), é o Ordinário do lugar. Ou seja, é o bispo diocesano. O bispo pode delegar esta faculdade a alguns dos sacerdotes de sua diocese, ou mesmo a todos eles.

O Papa é o Pastor Supremo da Igreja, que possui jurisdição plena e imediata sobre todo fiel católico. Tudo aquilo que um bispo pode fazer, o Papa pode — e com muito mais razão — fazer igualmente. E foi isso o que Sua Santidade o Papa Francisco fez recentemente: estendeu, a todos os sacerdotes do orbe, durante o Ano Santo, a faculdade de levantar a excomunhão do aborto.

Algumas coisas, portanto, precisam ficar claras.

  • O aborto sempre foi perdoável, como todo pecado mortal, mediante arrependimento e confissão.
  • A pena de excomunhão do aborto, como toda pena de excomunhão, não pode ser levantada por todo e qualquer sacerdote — mas apenas pela autoridade competente e por aqueles a quem esta autoridade competente delegar este poder.
  • A autoridade competente para levantar a excomunhão do aborto é o Bispo Diocesano (o Ordinário).
  • O aborto comporta duas penas — a perda do estado de graça e a excomunhão eclesiástica — e, portanto, o processo de reconciliação com Deus e a Igreja de quem comete este pecado passa, também, por duas fases: o levantamento da excomunhão e a absolvição sacramental.
  • Estas duas fases, via de regra, acontecem no ato da mesma confissão sacramental: o penitente, arrependido, se confessa, e o padre, que tem a faculdade de levantar a excomunhão e a de absolver os pecados, revoga a excomunhão e, acto contínuo, absolve o penitente.
  • Na eventualidade de um fiel católico que tenha cometido o pecado do aborto vir a se confessar com um padre que não possua a faculdade de levantar a excomunhão, então este padre não o pode absolver, pelo menos não de imediato, e deve encaminhá-lo ao bispo, ou a outro sacerdote que, na diocese, possua esta faculdade, ou mesmo solicitar, ele próprio, o padre, ao seu bispo a faculdade de revogar a excomunhão do aborto, para então conferir ao penitente a reconciliação eclesiástica e a absolvição sacramental.
  • A fim de facilitar aos pecadores arrependidos a reconciliação com a Igreja, o Papa Francisco determinou que, durante o Ano Santo, todo sacerdote tem o poder de revogar a excomunhão na qual incorre “quem procura o aborto”. Aquilo que era privativo do bispo diocesano e dos sacerdotes que ele designasse, portanto, durante o Jubileu, por um ato de liberalidade do Romano Pontífice, cabe a todo e qualquer padre.
  • Não tem o menor sentido falar que, com isso, o Papa esteja “desculpando” o aborto ou qualquer coisa do tipo. As palavras de Sua Santidade são claras: «decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». Ou seja, não é para revogar automaticamente todas as excomunhões de todo mundo; é para que os padres possam absolver aqueles fiéis que cometeram aborto e — conjunção aditiva –, «arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». É preciso, portanto, i) estar arrependido — contrição — e ii) pedir o perdão — confissão sacramental.
  • O Ano Santo «abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição» e «terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016» (Misericordiae Vultus). É somente dentro deste intervalo de tempo que os padres gozarão da faculdade conferida pelo Papa.
  • Até lá, quem se arrependeu do aborto que cometeu ou ajudou a cometer pode se reconciliar com a Igreja procurando o Bispo da sua diocese.
  • Por fim, mesmo durante o Ano Jubilar, quem não está arrependido de ter praticado ou ajudado a praticar o aborto, evidentemente, não tem como receber o perdão sacramental. A estes cabe esta censura do Papa (cf. carta citada):

Uma mentalidade muito difundida já fez perder a necessária sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento de uma nova vida. O drama do aborto é vivido por alguns com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta.

Não surpreende que a mídia faça eco a esta «mentalidade». Os católicos, no entanto, aos quais Cristo mandou não se conformar com este mundo, não podem compreender as coisas — nem muito menos as coisas da Igreja — do modo superficial que elas aparecem nos meios de comunicação. Sim, o aborto é um «gravíssimo mal» — o Papa sabe disso! Mas não existe mal que não possa ser vencido por um coração contrito. O mundo clama por misericórdia. Mas misericórdia e arrependimento andam lado a lado. As reivindicações do mundo — por exemplo, para que se deixe de condenar os atos de homossexualismo, o adultério e a fornicação, o egoísmo, o aborto — não são, de nenhum modo!, misericórdia verdadeira. São, aliás, o contrário mesmo de misericórdia, na medida em que, fechando os olhos ao pecado, fecham o coração ao arrependimento — e, por conseguinte, vedam-lhe o perdão. Não é possível fazer com que o pecado deixe de existir. Tudo o que é possível é perdoá-lo. Para isso existe a Igreja. Fora disso não há salvação.

Quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha

Causou-me espanto esta notícia segundo a qual uma revista jesuíta (!), em solidariedade à Charlie Hebdo, após o recente atentado, resolveu publicar algumas charges do semanário francês agressivas ao Catolicismo (!!). Segundo explicou originalmente Étvdes, a tese era que rir de certos traços da instituição “Igreja” era «uma demonstração de força» (!), uma vez que mostrava que aquilo a que os católicos estavam realmente ligados [Cristo, suponho] está «além das formas sempre transitórias e imperfeitas [nas quais a Igreja visível se manifesta, acredito]».

[No original francês a que tenho acesso somente de segunda mão: C’est un signe de force que de pouvoir rire de certains traits de l’institution à laquelle nous appartenons, car c’est une manière de dire que ce à quoi nous sommes attachés est au-delà des formes toujours transitoires et imparfaites.]

A extravagante iniciativa recebeu diversas críticas; em particular este pedido de um jesuíta francês por «um pouco de bom senso» merece-nos alguma atenção. Como é possível que um católico ache que o escárnio da sua Fé é algo cuja divulgação possa ser sequer considerada por uma revista religiosa? A falta de visão sobrenatural e a pouca importância com a qual os editores da Étvdes tratam as coisas mais importantes da vida são de estarrecer. A revista – que se diz «de culture contemporaine»… -, com isso, mais parece um veículo de toda a podridão debochada, de mau gosto e descartável que se auto-intitula “cultura” nos dias de hoje. Desse tipo de mundanidades o mundo já está muitíssimo bem servido. Para quê pôr religiosos no desempenho de tão deplorável papel?

As caricaturas foram posteriormente retiradas. No lugar delas, a revista pôs uma nota sobre a «Repercussão», dizendo que a reprodução das irreverências era «um meio de afirmar que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas que [dela] se podem fazer, ainda que os cristãos se sintam ofendidos». Ora, a explicação não faz nenhum sentido.

Primeiro, porque é óbvio que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas. Qualquer ideia é mais forte do que as representações caricaturescas que os seus oponentes possam conceber para a ridicularizar. Isso independe da veracidade ou falsidade da ideia, sendo um simples dado da realidade: por definição, a caricatura é menor do que o caricaturizado. Também a fé islâmica ou o Nationalsozialismus são maiores do que as garatujas de Maomé ou os cartuns antinazistas britânicos da década de 30, por exemplo.

Segundo, porque quem se ofende são as pessoas mesmo, e não as suas crenças. Em qualquer agrupamento humano civilizado, é esta a razão que faz com que certos comportamentos sejam socialmente aceitos e, outros, reprováveis. Pretender que não haja problema com a blasfêmia porque “Deus Todo-Poderoso pode muito bem aguentar uma piada” é uma argumentação que não tem cabimento nem teológica e nem sociologicamente. Teologicamente é um absurdo, porque do fato de Deus ser perfeitíssimo só segue que a Sua glória intrínseca não sofre dano com o pecado dos homens: a glória extrínseca d’Ele, por sua vez, dado que depende não d’Ele próprio mas do mundo que Lhe é externo, aumenta ou diminui de acordo com os homens honrarem-No ou O rejeitarem. E sociologicamente é um nonsense porque, para além de quaisquer possíveis desavenças teológicas, indiscutivelmente o crente é ofendido com a blasfêmia, e isso por si só dificulta o bom e pacífico relacionamento entre os cidadãos que é um dos fins mais óbvios de qualquer sociedade.

Terceiro, por fim, porque a revista comodamente “se esqueceu” do que dissera anteriormente – e que é o seu erro maior. A questão de fundo é que, para os jesuítas da Étvdes, como eles disseram originalmente, há uma distinção radical entre um Cristo invisível e espiritual e as instituições humanas que se reúnem para falar d’Ele, há uma Igreja espiritual que nada tem a ver com a Igreja visível e histórica: isto, sim, explica que eles não vejam problema em escarnecer da Igreja Católica!

O problema é que tal se trata de uma concepção herética incontáveis vezes condenadas: a Igreja Católica é o Corpo Místico de Cristo e, portanto, não existem essas «formes toujours transitoires et imparfaites» além das quais a revista parece crer que Cristo está. Entre incontáveis outros, quem o disse – e muito recentemente – foi o próprio Papa Francisco: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo». O que passa pela cabeça desses jesuítas franceses, que não dão ouvidos ao Papa nem mesmo quando é um jesuíta a sentar-se no sólio pontifício?

«Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita», disse Cristo aos Apóstolos – à Igreja, portanto (cf. Lc X, 16). Estas palavras continuam válidas nos dias de hoje, e em observância a elas podemos muito bem concluir: quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha. Não se trata de nenhuma conclusão teológica de altíssima sofisticação: é matéria de doutrina católica a mais comezinha, da mais básica piedade popular. É questão de bom senso! Bom seria se os editores da Étvdes não tivessem somente retirado os cartoons blasfemos por conta da repercussão que eles tiveram. Bom seria se estes jesuítas tivessem se dado conta de que, na verdade, escarnecem de Cristo quando não se pejam de escarnecer da Igreja d’Ele.

Não temos o direito de abandoná-Lo

Deparo-me, vez por outra, com a alegação de que os católicos estão desobrigados de cumprir o preceito dominical caso não disponham de uma missa específica (v.g. uma Missa Tridentina) para assistir. Ora, tal alegação é falsa e ímpia, e demonstrá-lo não é difícil. Porque os que alegam semelhante temeridade fazem-no com base no pressuposto de que tal ou qual missa (v.g. uma repleta de abusos litúrgicos, ou uma Missa Nova, ou mesmo – pasmem – uma Missa Tridentina celebrada de acordo com a faculdade concedida pelo Summorum Pontificum (!)) seja capaz de causar dano à Fé de quem dela participa. Ora:

1. Que uma Missa explicitamente autorizada pela Igreja visível possa em si mesma ser daninha à Fé contraria a infalibilidade da Igreja em matéria litúrgica. Se tal fosse possível, estar-se-ia então desobrigado não só de assistir a determinada Missa, senão todas elas, porque a Igreja, tal qual como A conheceu vinte séculos de Cristianismo, teria deixado de existir.

2. Ainda que se diga, para salvaguardar o munus sanctificandi da Igreja, que a nocividade de tal ou qual Missa é-lhe não intrínseca, mas acidental, ainda assim tal dispensa não pode ser deixada ao alvitre de cada um. Seria o caso da impossibilidade moral de que falam os antigos moralistas, cuja determinação precisa exige i) uma situação concreta; e ii) o juízo da autoridade competente (v.g. o pároco). Se se diz – p.ex. – que “toda missa celebrada de acordo com o Novus Ordo Missae é nociva”, então se recai no ponto 1. acima (uma vez que um acidente que se verifica inalterável em todos os entes de uma determinada espécie não pode de maneira alguma ser tratado como acidente vere et proprie).

3. Ainda: se não for caso de impossibilidade moral, mas meramente de conveniência – digamos, que a alegação seja a de que uma Missa má celebrada predisponha a alma a tratar com desleixo as coisas sagradas etc. -, então das duas uma: ou a pessoa tem consciência de estar sendo conduzida à tibieza, ou é a ela conduzida sem disso ter consciência, et tertium non datur. Se a pessoa não tem consciência do perigo a que (alegadamente) se expõe, então é evidente que não pode pleitear uma dispensa com base numa ameaça que ignora – na verdade, ela não pode nem mesmo imaginar a necessidade da dispensa. Se, ao contrário, a pessoa tem conhecimento o bastante para saber que tal ou qual situação a conduz à impiedade e ao enfraquecimento da Fé, então ela está em condições de resistir a estas influências e, portanto, não ser por elas afetada de modo suficientemente grave para justificar a dispensa. Trata-se aqui, na verdade, de um paradoxo da fundamentação impossível: as pessoas ignorantes que poderiam em princípio ser conduzidas para longe da Fé por conta de certas omissões ou ambiguidades em determinada celebração estão, por conta da ignorância mesma, incapazes de pedir a dispensa ou mesmo de imaginar que ela possa existir; ao contrário, as pessoas que têm suficiente conhecimento litúrgico para identificar aquelas omissões e ambiguidades, pelo fato mesmo de as identificarem, não estão sujeitas a terem a sua Fé por elas enfraquecida.

4. Por fim, se o caso for da ilicitude de se participar dos sacramentos – mesmo válidos e intrinsecamente santificantes – dos não-católicos (alegando-se, v.g., que os que celebram a Missa em tais ou quais condições não possuem a Fé Católica e, portanto, estar-se-ia cometendo uma communicatio in sacris proibida se se lhes assistisse às celebrações), trata-se aqui de donatismo totalmente extemporâneo e injustificado. Santo Tomás de Aquino distingue explicitamente entre os que estão privados de ministrar sacramentos por «sentença divina» (ex sententia divina) e por «sentença eclesiástica» (ex sententia Ecclesiae), e diz que somente das missas destes últimos é proibido ao fiel católico tomar parte:

Porque os hereges, cismáticos e excomungados estão privados do exercício de consagrar por sentença eclesiástica – pelo que peca todo aquele que ouça suas Missas ou deles receba os Sacramentos. Mas nem todos os pecadores estão privados do exercício dessa potestade por sentença da Igreja. De tal modo que, ainda que [alguns] estejam suspensos por sentença divina, não o estão no que diz respeito aos demais [fiéis] por sentença eclesiástica. De onde se segue que seja lícito receber deles a comunhão e ouvir as suas missas até que a Igreja pronuncie a Sua sentença.

Summa, IIIa, q.82, a.9., Resp.

Rejeitem-se, portanto, todos os arrazoados que intentem dispensar por conta própria os católicos do cumprimento de seus deveres religiosos. Mandamento é o que o próprio nome diz: é Mandamento, e é precisamente quando é difícil que o seu cumprimento se torna mais necessário. É particularmente duro ser católico nos dias de hoje; poucas coisas conduzem menos a alma à adoração do que as nossas missas medianas, medíocres de símbolos e repletas de abusos. Poucos ambientes são mais hostis à oração do que as nossas paróquias repletas de palmas, de baterias barulhentas, de leigos no altar. No entanto, é exatamente por ser mais difícil descobrir Nosso Senhor por debaixo da mundanidade eclesiástica que o nosso ato de Fé é mais meritório.

É à obediência da Fé que somos chamados, e não temos o direito de dar as costas à graça de Deus porque a indignidade dos Seus ministros nos ofende. Garanto que muito mais ofende a Cristo, e mesmo assim Ele não hesita em Se doar de novo e de novo debaixo do pandemônio litúrgico contemporâneo. Se Cristo permanece lá, nós não temos o direito de abandoná-Lo. Uma coisa justa e meritória é enxugar o rosto chagado de Cristo; outra, completamente diferente, é debandar do Calvário por não suportar os escarros que lançam sobre Sua Sagrada Face.

A falta de sentido como objetivo do discurso

O nosso mundo padece de uma falta crônica de rigor terminológico. O fenômeno se reproduz e manifesta nos mais variados âmbitos da vida, dos debates presidenciais à catequese dos párocos, das falas dos sedizentes formadores de opinião à informação dita imparcial da imprensa. É certo ser muito difícil negar a existência da textura aberta da linguagem; contudo, muitas vezes as pessoas agem como se se tratasse de um abismo intransponível e como se, na comunicação interpessoal, nada importasse mesmo porque qualquer coisa dita poderia, sempre e necessariamente, ser entendida de um sem-número de maneiras.

As pessoas perderam, completamente, a sua confiança na capacidade da linguagem de transmitir o pensamento: só isso explica a proliferação generalizada de discursos sem sentido que nos bombardeiam o tempo inteiro. O introito, fi-lo porque queria comentar, algo ligeiro, esta matéria sobre o padre que afirmou ter sido Jesus “revolucionário e comunista”. Há diversos absurdos aqui.

Há, antes de mais nada, o absurdo de semelhante sandice constituir manchete jornalística corriqueira. Por um lado, não provoca estupor que um sacerdote católico seja capaz de proferir tal absurdo; por outro lado, a própria notícia é escrita sem paixão, com três parágrafos mornos, como se o repórter estivesse redigindo a coisa mais desinteressante do mundo. A blasfêmia nos lábios do sacerdote – eis o que quero dizer – não provoca nem revolta e nem júbilo; nem os protestos dos bons, nem a exaltação dos maus. Permanece naqueles círculos das notícias banais, publicadas somente para “bater meta” e que, ao que parece, não interessam suficientemente a ninguém.

Há o próprio absurdo do conteúdo da declaração: Nosso Senhor Jesus Cristo, é evidente, não pode ser comunista nem propriamente e nem por analogia. Não o pode propriamente por patentes limitações de ordem historiográfica: o comunismo só surgiu muitos séculos depois de Cristo. E não o pode ser por analogia porque a doutrina cristã não é, nada, em nenhum aspecto, comparável à pregação comunista. Os princípios básicos desta são – para ficar apenas nos dois mais gritantes – a igualdade absoluta entre todos os homens (com todos eles dissolvidos na massa desindividualizada da qual é feito o Estado Onipotente) e a rejeição do direito de propriedade. E mostrar como o Cristianismo se opõe a ambas é a coisa mais fácil do mundo.

Quanto à primeira, basta lembrar a estrutura hierárquica que Jesus claramente impingiu ao grupo dos Seus seguidores: Ele ensinava às multidões, mas enviava em missão apenas a alguns que chamou discípulos («setenta e dois», segundo São Lucas) e só a Doze constituiu Apóstolos, Seus mais próximos colaboradores, como bem o sabemos. Quanto à última, seria desnecessário e até meio ridículo arrolar as passagens todas onde o próprio Cristo defende, sim, que as pessoas tenham posses; contentemo-nos, tão somente, com este breve versículo, horror dos que pugnam contra o direito de propriedade:

O Reino dos céus é também semelhante a um tesouro escondido num campo. Um homem o encontra, mas o esconde de novo. E, cheio de alegria, vai, vende tudo o que tem para comprar aquele campo. (São Mateus 13, 44)

Ousando comparar as coisas mais sublimes – o Reino dos Céus! – a um vil comércio de terras, mais lógico seria que Nosso Senhor fosse chamado de latifundiário que de «comunista». Mas a lógica, percebe-se, não é mesmo o ponto forte dos que gostam de inventar nescidades à revelia do Magistério da Igreja Católica.

Por fim, há o absurdo da fala do padre. Veja-se a confusão do discurso:

Jesus é revolucionário, é super-revolucionário, vai além dos seres humanos, é amor, a sua ação é socialista, é comunista, compartilhou com uma comunidade de seres humanos.

Por todas as revoluções, o que raios isso poderia significar?! Não satisfeito em simplesmente assertar o revolucionarismo de Cristo, o padre vai além e afixa-Lhe um superlativo. Não fica claro, de nenhuma maneira, nem em quê, exatamente, se distingue o “super-revolucionário” do reles revolucionário comum e nem por qual misteriosa razão Jesus Cristo pertenceria a uma classe ou a outra. Ao dizer que Ele “vai além dos seres humanos”, mais uma vez não se percebe onde o reverendíssimo sacerdote quer chegar: sim, Cristo, “vai além” dos homens porque é Deus, mas isso não tem nada a ver, à primeira vista, com os dois adjetivos precedentes. Segue o discurso, sem a mínima conexão das partes seguintes com as antecedentes: “é amor”, diz o padre. Deus caritas est, de fato, verdade cristã incontrastável. No entanto, o discurso decai novamente da alta teologia para a revolta materialista chinfrim e, de repente, sem ter nem pra quê, a ação de Cristo é, de novo, comunista e socialista. Mais uma vez, nem uma única explicação é dada. Por fim, como se até então não fosse suficiente, vem o grand finale: “compartilhou com uma comunidade de seres humanos”.

Quem compartilhou? Cristo? A ação? Compartilhou o quê? A ação? Cristo? O amor? Com qual comunidade? A “dos seres humanos”? E, se a comunidade não fosse “de seres humanos”, seria de quê? É inútil procurar qualquer sentido: o padre não quer dizer absolutamente nada. Trata-se de pura verborragia, de um pretenso “falar bonito” que, na verdade, de bonito não tem nada, porque amputa a linguagem exatamente daquilo que é a sua função precípua: transmitir o pensamento.

Ninguém sabe o que o pe. Molina quer dizer com a sua tagarelice, e é proposital: ele não quer, mesmo, ser entendido. Quer apenas jogar palavras soltas que evoquem sentimentos atualmente benquistos – “socialista”, “amor”, “partilha”, “comunidade”, “Jesus Cristo” – num saco de gatos onde cada parte é uma unidade semântica autônoma e não tem qualquer relação com o todo. É isso o que acontece, com assustadora freqüência, nos dias de hoje: o próprio objetivo do discurso é não ter sentido algum, é não se comprometer, é não transmitir nada e apenas evocar estados de espírito de algum modo agradáveis. Que os que assim agem não consigam ver o quanto isso degrada o ser humano é somente a conseqüência previsível de trocar o pensamento claro e rigoroso pelos arroubos emotivos provocados por palavreados vazios.

Dom Afonso I, o Apóstolo do Congo

[A história é muito bonita para que a permitamos ser esquecida pelo pouco caso que o Facebook devota a tudo que não seja up-to-date. Copio-a aqui na íntegra.

Em fins do século XV, em pleno recrudescimento da escravidão negra, a Igreja estendia a Boa Nova do Evangelho aos povos da África subsaariana; enquanto negros eram traficados para o Novo Mundo como escravos, a Igreja os sagrava bispos e os enviava de volta à sua terra natal.

Isto é história. O resto é ranço anti-clerical setecentista, do qual já está mais do que na hora de nos livrarmos.

Fonte: Missionários da África.]

A história de Dom Afonso I, o Novo Constantino, o Apóstolo do Congo, o Carlomagno da África

Poucos sabem que o cristianismo na África tem uma origem muita antiga, que se confunde com os primórdios da fé. No norte africano o Evangelho chegou com a pregação dos Apóstolos e logo se encarnou na vida dos povos locais. Coptas, berberes, gregos e romanos abraçaram a Boa Nova. Na Núbia, a Igreja também se instaurou e na Etiópia a Fé está vinculada com as histórias do Antigo Testamento. Contudo, o que é ignorado é que o cristianismo na África subsaariana é mais antigo do que a evangelização da América.

Tudo começa com o ardor do Infante Dom Henrique, o visionário das Grandes Navegações. Motivados pelo interesse de chegar às Índias e descobrir o Reino cristão desconhecido – a Etiópia – os portugueses se lançaram ao mar, descobrindo o vasto continente africano. Nasce, portanto, o desejo de disseminar a fé cristã entre esses povos, anunciando a Boa Nova de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Divina Providência, contudo, suscitou um homem dotado de muitos dons e de uma busca incessante pelo Senhor: Nzinga Mbemba (1456 – 1542), filho de Nzinga a Nkuwu, Rei do Congo.

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Esse homem, que ficou conhecido como o “Novo Constantino” e o “Apóstolo de Congo”, foi o instrumento de Deus para o início da evangelização da África subsaariana. Ele era neto do fundador do reino, que conseguiu unificar as tribos, e como filho primogênito herdaria o trono.

Os portugueses aportaram no Congo em 1482 e em 1485 os dois reinos já tinham enviados embaixadores para as suas respectivas cortes. Em 1487 já chegavam de Lisboa quatro congoleses formados na Europa e dispostos a evangelizar o reino africano. Em 1491 mais missionários vinham de Portugal, estabelecendo missões. Tanto o Rei como o seu filho estavam felizes com o advento do cristianismo. Em 3 de maio desse mesmo ano ambos foram batizados. Agora Nzinga Mbemba era Afonso, Príncipe do Congo. Assim, o seu reino se tornava oficialmente cristão, como disse o Papa Paulo VI: “O Congo pode ser realmente chamado de o filho mais velho da Igreja na África negra”.

Afonso assim relata a sua conversão: “A graça do Espírito Santo nos iluminou com um favor único e especial, a nós regalado pela Santíssima Trindade (…) Nós recebemos a doutrina cristã tão bem que, pela misericórdia de Deus, ela foi a cada momento melhor se implantando em nossos corações. Nós definitivamente renunciamos todos os erros e idolatrias que nossos ancestrais do passado acreditaram”.

Entretanto, apenas Afonso se mostrou fiel à mensagem cristã. Muitos dos batizados retornaram aos “erros” dos ancestrais, como a poligamia e a feitiçaria. Seu outro irmão conseguiu junto ao pai que o príncipe devoto fosse exilado, juntamente com os missionários, numa província. Afonso dizia que “estava longe da face do Rei, mas feliz por sofrer pela fé de Nosso Senhor”. Sabendo da morte iminente do pai, Afonso resolveu lutar pelo seu legítimo direito de primogênito, e juntamente com chefes tribais cristãos marchou rumo à capital. Ali se depararam o imenso exército de seu irmão, formado pelos adeptos da idolatria. Antes do primeiro ataque, o pequeno grupo de cristãos se ajoelhou e invocou a intercessão de Santiago, devoção levada pelos portugueses. Quando perceberam, todos os seus inimigos estavam correndo em disparada, garantindo uma vitória fácil ao exército de Afonso. Seu irmão foi capturado e executado. Os inimigos explicaram, depois de capturados, que viram no céu uma cruz branca, Santiago e uma grande quantidade de guerreiros em cavalados negros. Impactado com esse relato, o Rei Afonso rendeu glória a Deus, fez de Santiago o patrono do Congo e mandou gravar no escudo do reino a história dessa vitória, para que fosse perpetuada.

Dom Afonso iniciou o processo de evangelização do Congo. Nos lugares de culto da antiga religião mandou construir igrejas. O antigo chefe do culto pagão, guardião da água sagrada, tornou-se cristão, Dom Pedro, e passou a ser o guardião da água batismal das igrejas. Em seguida foi enviado para Lisboa como embaixador. O Rei passou a pregar depois de cada Missa, conclamando os fiéis para que rezassem e pedissem mais missionários.

Um novo grupo de missionários chegou ao Congo em 1508. Foram recebidos com grande entusiasmo por Dom Afonso, que fez uma belíssima pregação, passando por toda a história da salvação, desde Adão e Eva chegando à Redenção em Cristo. Contudo, ainda sendo apresentados como “santos servos”, os missionários se mostraram homens de escândalo. Em carta enviada para o Rei de Portugal, Afonso diz: “Nesse reino a fé ainda está frágil como um vidro devido ao mau exemplo daqueles que vieram pregá-la (…) Hoje Nosso Senhor é crucificado de novo pelos muitos ministros do Seu Corpo e Sangue. Nós preferíamos não ter nascido para ver como nossas inocentes crianças (…) vão para a perdição graças a esses maus exemplos”. A situação se tornou tão escandalosa que o Núncio em Lisboa sugeriu ao Papa que a esses missionários fosse aplicada a lei dos orientais, permitindo que se casassem. Outra opção apresentada foi a evacuação do Congo de todos os brancos, clérigos e leigos, substituindo-os por gente nova de boa conduta.

A esperança de Dom Afonso era a formação de um clero autóctone. Em 1508 um grupo de congoleses foi enviado para Lisboa, para iniciar os estudos seminarísticos. Entre eles estava Dom Henrique, seu filho. Em 1520 este foi ordenado sacerdote e em 1521, com permissão pontifícia, foi sagrado bispo – o primeiro bispo negro da Igreja -, sendo nomeado Auxiliar de Funchal, na Ilha da Madeira, da qual dependia até então o Reino do Congo. Como Bispo, esforçou-se para aumentar o número de missionários no reino e ver erigida uma diocese no país. Infelizmente Dom Henrique faleceu prematuramente um ano antes da viagem para Lisboa. O Rei também queria fazer um ato de submissão à Roma, para evitar depender religiosamente dos portugueses.

Dom Afonso era um verdadeiro Rei cristão, preocupado com a evangelização do seu reino, com a justiça e com a educação. Abriu escolas para as meninas, combateu a escravidão e lutou pela manutenção da independência de seu país frente aos portugueses. Um contemporâneo seu, em carta ao Rei Manuel de Portugal, diz: “Seu cristianismo é tanto que parece para mim não o de um homem, mas o de um anjo que Deus enviou a esse reino para convertê-lo. Fala tão bem e com tanta segurança que parece que o Espírito Santo constantemente fala através dele. Durante suas audiências ou na resolução de um litígio, Dom Afonso somente fala de Deus e dos santos”. Ao final de sua vida, o Rei viu o aumento da oposição portuguesa em São Salvador, a capital. Muitos estavam incomodados com a proibição do comércio de escravos. Em 1540, Dom Afonso foi alvo de um atentado, armado por um sacerdote, durante a Santa Missa, mas de modo miraculoso saiu ileso. Dom Afonso faleceu três anos depois, com 85 anos e uma fé inabalável. Com sua morte, seu filho Pedro foi feito Rei. Em 1596 foi erigida, finalmente, a diocese de São Salvador do Congo, a primeira da África subsaariana. Hoje nós a conhecemos como Arquidiocese de Luanda.

A história desse bravo e santo homem nos mostra a força da fé e o ardor daqueles que buscam a santidade. Dom Afonso estava movido pelos sentimentos de Cristo, por isso via como urgente a evangelização do Congo. A Igreja, que jamais teve motivações racistas, esforçou-se desde sempre para a promoção do cristianismo entre os africanos. A existência de sacerdotes e bispos congoleses já no século XVI é um resposta acachapante àqueles que reproduzem afirmações mentirosas sobre a nossa fé. Que o exemplo de Dom Afonso seja sempre recordado, o seu modelo de catolicidade que ultrapassando os obstáculos geográficos e culturais consagrou-se pela propagação do Evangelho.

Eu não sabia de quem se tratava

exatamente um ano este blog publicava em seqüência os anúncios de «Habemus Papam» e «Franciscus». Lembro-me da demora, diante da televisão, entre a fumata bianca e o esperado aparecimento do novo Pontífice no balcão diante da Praça de São Pedro. Pareceu-me demorar mais do que há alguns anos, à eleição de Bento XVI. Ou talvez eu estivesse mais velho, menos paciente, mais ansioso… mais contaminado com o espírito do mundo.

O velho jesuíta veio do fim do mundo e surpreendeu a todos. Confesso: eu não sabia de quem se tratava. Ao que parece, muitas pessoas também não. Daqui, do outro lado do Atlântico, ouvi-lhe o «buona sera» antológico. Recebi a primeira Urbi et Orbi do novo pontificado. A televisão continuou ligada, e eu saí. Estava perplexo.

Demorei um pouco a perceber que toda pressa era vã e, toda ansiedade, inimiga da compreensão serena. Não seria possível descobrir quem é o Chefe de uma Igreja de dois mil anos com a velocidade à qual nos acostumamos graças às modernas telecomunicações. A Igreja é Eterna, e isso faz com que haja algo de atemporal em todos os Papas. Quem entende isso, já sabe mais do que é possível aprender com uma legião de vaticanistas.

Um Papa fora eleito e eu não sabia de quem se tratava. Para meu temor, parece que hoje, transcorrido um ano, ainda há muitas pessoas que continuam sem saber. Leio uma profusão de matérias sobre o Papa Francisco na mídia secular, ouço falar dele o tempo inteiro em ambientes religiosos. É impressionante esse mistério: trata-se talvez da pessoa de quem mais se falou ao longo do último ano e, mesmo assim, ela permanece completamente desconhecida para a maior parte dos que ouviram falar dele.

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Como explicar? Tudo parece girar em torno da obsessão que se tem hoje em dia pelo conceito de «mudança», à luz do qual é impossível entender o Catolicismo. Pior ainda quando este conceito é substituído pelo de «Revolução», tão ao gosto da imprensa anti-clerical ou dos desgostosos – de séculos… – com a Igreja. Sob essa clave muito se falou e fala sobre o Papa Francisco. E sob ela o Bispo de Roma é aos homens de hoje cada vez menos conhecido.

Trago um exemplo somente, de tantos que se podiam coligir. Há poucos dias um amigo publicou no Facebook que o Papa era tão revolucionário que ele temia por sua vida, agora que ele – o Papa – estava tentando incluir os “casais gays” dentro da Igreja. A história é de um descabimento retumbante, de uma inverossimilhança tão grotesca que espanta alguém dar crédito. No entanto, ouve-se algo parecido com isso, as pessoas projetam suas expectativas no que acharam ter ouvido dizer, a história se repete e, de repente, tem-se a histeria formada. Contudo, longe dessa pirotecnia irracional, o humilde jesuíta que hoje calça as Sandálias de Pedro se encontra na mais solitária obscuridade. Já há um ano ele guia a Igreja e ainda não sabem de quem ele se trata.

Criou-se muita falsa expectativa em relação ao Vigário de Cristo, e qual o resultado disso? Passou-se um ano, o wishful thinking não se realizou e o papado do primeiro latino-americano permanece para muitos uma incógnita tão grande quanto o era naquele outro 13 de março.

Esta tragédia foi abertamente anunciada. Menos de quinze dias depois da eleição do Papa Francisco, eu ecoei aqui a denúncia de Vortex sobre o «seqüestro do Papa» que estava em andamento. Hoje, um ano depois, ficamos com a impressão de que o plano macabro teve uma perturbadora eficácia. Hoje, ainda há multidões de pessoas que não sabem quem é o Papa e nem se apercebem disso.

Sempre à volta com quimeras. Já se completou um ano. Quantos outros aniversários será preciso esperar para que as sucessivas frustrações com «mudanças» que nunca podem vir dêem enfim lugar à serena aceitação da realidade?

Tarefa difícil. Veja-se: abro um texto de uma revista não-religiosa sobre este primeiro ano de pontificado. Lá, perdido no meio de uma matéria enorme, é dito en passant, quase como se fosse uma curiosidade sem importância, que o Papa Francisco é um homem que passa uma hora em oração diante da Santíssima Eucaristia todas as tardes. E penso que há nessa pequena frase mais sobre o atual Bispo de Roma do que nos desvarios e tresvarios que se costumam apresentar como análises da Igreja. Se as nossas manchetes sobre o Papa Francisco do último ano fossem assim, talvez hoje os homens já soubessem melhor de quem ele se trata…

Faz um ano. Eu não sabia quem ele era. Mas sabia que se tratava do Vigário de Cristo, da Cabeça Visível da Igreja, daquele a quem toda submissão é necessária para os que desejam se salvar. Eu não sabia quem ele era, mas sabia que precisava rezar por ele. E refaço aqui as orações de um ano atrás, as súplicas de cada dia, pelo nosso Pontífice Francisco. A fim de que o Bom Deus o conserve e vivifique. A fim de que o torne feliz sobre a terra. A fim de que jamais o entregue nas mãos dos seus inimigos.

“Quanto mal fazem à Igreja os padres untuosos!” – sobre o pe. Fábio de Melo e suas más colocações

O revmo. Pe. Fábio de Melo voltou a aprontar das suas. Em entrevista que ainda não foi ao ar (mas da qual alguns trechos já foram amplamente divulgados pelos órgãos de mídia), o padre soltou a seguinte estarrecedora frase:

Jesus não queria a Igreja, queria o Reino de Deus, mas a Igreja foi o que conseguimos dar a Ele.

É impressionante como uma frase tão pequena possa conter um número tão grande de absurdos, e é muito difícil conceber como uma pessoa católica, que tenha ao menos noções básicas de Catecismo, seja capaz de proferi-la e ao mesmo tempo manter a Fé. Esta frase estarrecedora, em uma única linha,

  1. afirma que a Igreja não é da vontade de Deus [Jesus não queria a Igreja];
  2. introduz uma oposição descabida entre “Igreja” e “Reino de Deus” [não queria a Igreja, queria o Reino de Deus]; e
  3. afirma que a Igreja é criação humana [a Igreja foi o que conseguimos dar a Ele].

Não percamos tempo com fabiodemelorices. Vamos à Doutrina Católica.

Primeiro, é óbvio que a fundação da Igreja sempre esteve nos desígnios de Deus. Nem poderia ser diferente, uma vez que, se Cristo tivesse querido com Sua Encarnação uma coisa diferente da Igreja, teria fracassado miseravelmente em Sua Missão e, portanto, não seria Deus e, portanto, não deveríamos nos preocupar com Ele e nem com mais nada nessa vida.

Não fossem suficiente as claríssimas palavras de Nosso Senhor nos Evangelhos – “E eu te declaro que és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a Minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra Ela” -, o Catecismo ainda nos diz com todas as letras:

766. (…) Assim como Eva foi formada do costado de Adão adormecido, assim a Igreja nasceu do coração trespassado de Cristo, morto na cruz (CCE).

Se tudo isso ainda não bastasse, o erro de número 52 condenado por São Pio X no decreto Lamentabili é o seguinte:

52. Cristo não pensou constituir a Igreja como uma sociedade destinada a durar na terra por uma longa série de séculos; além disso, na mente de Cristo, o reino dos céus juntamente com o fim do mundo já deveria ter chegado.

Ora, tudo isso posto, em qual esotérico sentido, então, de que maneira minimamente católica é possível afirmar “Jesus não queria a Igreja”? Essa frase é herética e blasfema. Encontrá-la nos lábios de um sacerdote católico é daquela espécie de desolação no lugar santo que nos faz gritar do fundo da alma: Exsurge, Deus, iudica causam tuam.

Em segundo lugar, não existe oposição entre a Igreja fundada por Cristo e o Reino de Deus, exatamente porque a Igreja por Ele fundada é precisamente o Reino de Deus já inaugurado na terra! De novo, é o que nos ensina o Catecismo:

541. (…) Ora a vontade do Pai é «elevar os homens à participação da vida divina». E fá-lo reunindo os homens em torno do seu Filho, Jesus Cristo. Esta reunião é a Igreja, a qual é na terra «o germe e o princípio» do Reino de Deus (CCE).

567. O Reino dos céus foi inaugurado na terra por Cristo, e resplandece para os homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo. A Igreja é o gérmen e o princípio deste Reino. As suas chaves são confiadas a Pedro (CCE).

A Igreja já é o Reino de Deus! Pouco importa aqui a obviedade de que este Reino só estará plenamente estabelecido quando Cristo voltar em Sua Segunda Vinda Gloriosa, exatamente porque, então, será a Igreja – a mesmíssima Igreja da qual hoje fazem já parte todos os católicos – que reinará perfeitamente. O Fim dos Tempos não destrói a Igreja, cáspita, mas é exatamente o contrário: realiza-A em plenitude! Que um sacerdote católico não saiba dessas coisas é uma dessas tragédias religiosas que, em épocas mais sensatas, seria interpretada como um sinal do Fim dos Tempos iminente e levaria os católicos a baterem no peito e fazerem penitência, suplicando ao Senhor misericórdia pelos seus muitos pecados.

Em terceiro lugar, e muito sucintamente, é óbvio que a Igreja não é criação humana. Não é criação humana porque é criação de Cristo, que é Deus. Não é criação humana porque Ela não poderia ser Santa e Santificante se fosse o homem que A tivesse criado, uma vez que o homem não tem por si só capacidade de santificar a nada e nem a ninguém. E não é criação humana, por fim, porque assim o diz com todas as letras a Doutrina Católica: «a Igreja católica [é] fundada por Deus» (Lumen Gentium, 14).

Não fomos nós que “demos” a Igreja a Cristo, foi Ele quem no-La deu, através do Seu Sacrifício na Cruz; e o fez para que por meio d’Ela (e somente por meio d’Ela) pudéssemos nos unir a Ele. Qualquer criança minimamente catequizada aprende isso. Por que diz o contrário o pe. Fábio de Melo?

Após a polêmica inflamada, o pe. Fábio publicou no Facebook uma de suas famosas respostas que não respondem a coisa alguma. Absolutamente nada do blá-blá-blá lá despejado tem o mínimo a ver com o que se está discutindo. Aproveito a oportunidade, no entanto, para fazer (mais uma vez) um comentário que talvez possa ser útil ao reverendíssimo sacerdote. Lá, no seu Facebook, no meio da tagarelice irresponsável, o padre diz o seguinte:

Estou unido ao Papa Francisco, quando movido por coragem profética, falou-nos do perigo que a Igreja corre de tornar-se uma ONG.

Será que está mesmo? Em outra tristemente famosa entrevista (ocorrida em meados do ano passado), o padre Fábio fez questão de destacar a sua própria vaidade e afirmou ser «vaidoso sim». A matéria que inicia esse post traz na manchete a seguinte piedosa frase proferida pelos lábios sacerdotais do padre Fábio de Melo: «Sempre me senti artista». Será que o padre Fábio acredita, em consciência, estar unido ao Papa Francisco?

Vejamos o que o Vigário de Cristo tem a dizer sobre isso. Em homilia proferida na semana passada (sábado, 11 de janeiro; original italiano aqui, tradução para o português aqui, de onde retiro a citação), o Papa Francisco falou o seguinte:

[Q]uanto mal fazem à Igreja os padres untuosos! Aqueles que colocam a sua força nas coisas artificiais, na vaidade.

Quantas vezes se ouve dizer, com dor: “Este é um padre-borboleta, porque há sempre vaidade nele”.

Se nos afastamos de Jesus Cristo, devemos compensar isto com outras atitudes… mundanas. E assim, há todas estas figuras… também o padre de negócios, o padre empreendedor…

[…]

É belo encontrar padres que deram a sua vida como sacerdotes, verdadeiramente, de quem as pessoas dizem: “Sim, tem esta característica, tem aquela… mas é um padre”. E as pessoas têm a intuição.

Em vez disso, quando as pessoas vêem os padres – para dizer uma palavra – idólatras, que em vez de terem Jesus têm os pequenos ídolos… pequenos… alguns até devotos do “deus Narciso”… Quando as pessoas vêem isto, dizem: “Coitado!”

Que sirvam estas palavras para o pe. Fábio, mas que sirvam também para nós, a fim de que saibamos escolher com mais sabedoria os homens que admiramos e a quem seguimos. Procuremos – como nos pede o Papa Francisco – aqueles «padres que deram a sua vida como sacerdotes». Procuremos os padres que nos falem das coisas de Deus! Não percamos tempo com estes que, ao contrário, têm um gosto particular por frases heréticas e blasfemas, nunca se responsabilizando pelas barbaridades que ensinam com seus exemplos e suas palavras.

Papa Francisco: “Confessar a Fé! Toda, não uma parte!”

A fé é confessar Deus, mas o Deus que se nos revelou, desde o tempo dos nossos pais até hoje; o Deus da história. E isto é aquilo que nós todos os dias recitamos no Credo. E uma coisa é recitar o Credo com o coração, outra é fazê-lo como os papagaios, não é? Creio, creio em Deus, creio em Jesus Cristo, creio… Eu creio naquilo que digo? Esta profissão de fé é verdadeira ou digo-a de memória, porque se tem que dizer? Ou creio pela metade? Confessar a fé! Toda, não uma parte! Toda! E esta fé, guarda-la toda, como chegou até nós, pelo caminho da tradição: toda a fé!

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
10 de janeiro de 2014