[Já havia lido, mas não me lembrava; recebi recentemente por email. Todos os grifos são meus. É engraçado como a História parece ser cíclica; e é trágico que os homens de hoje não consigam aprender com o seu passado. Alegremo-nos, no entanto, com pelo menos uma coisa: foi nestas condições que o Cristianismo resplandeceu um dia, é nestas condições que ele pode voltar a resplandecer.]
(…) Mas há algo ainda [além] do que esse deslizar da sociedade para a inércia mortal; ou melhor, há ainda outro fenômeno que anda a par deste, proveniente das mesmas causas e sobretudo do enriquecimento excessivo. A sociedade romana foi atingida na fonte viva que alimenta toda a sociedade: a família está abalada e a natalidade decresce. A mãe dos Gracos tivera doze filhos, mas nos começos do século II serão louvados como uma exceção os pais que tenham três. Evita-se o casamento; porventura a orbitas, o celibato, não traz ao rico todas as vantagens, assegurando-lhe uma fiel clientela de herdeiros expectantes? E de que poderá o celibato privar o homem, se a escravidão lhe proporciona companheiras mais dóceis que as esposas e que se podem renovar à vontade? O aborto e o abandono de crianças assumem proporções espantosas. Uma inscrição do tempo de Trajano dá-nos a conhecer que, de cento e oitenta e um recém-nascidos, cento e setenta e nove são legítimos, e destes, apenas trinta e cinco são meninas, o que prova suficientemente a facilidade com que as pessoas se desembaraçavam das meninas e dos filhos naturais. Quanto ao divórcio, tornou-se tão corrente que já não lhe procuravam sequer qualquer aparência de justificação: bastava o simples desejo de mudança. Que se poderia opor a estas forças de desagregação? Os Estados têm-se mostrado sempre incapazes de recolocar a moral nas suas verdadeiras bases, depois de a terem deixado definhar.
Os dirigentes romanos não estão inteiramente inconscientes do perigo, mas a sua boa vontade mostra-se irrisória perante o conjunto de circunstâncias que arrastam a sua sociedade para a ruína. O exemplo de Augusto é revelador. Multiplicou as leis de intenção altamente moralizadora com o fim de combater o adultério e o divórcio. Quem as tomou a sério? Nem mesmo os da sua família. Aliás, não tinha sido ele que oficializara a preguiça, fundando a prefeitura da Anona (hábito de o Estado distribuir alimentos irá estendendo-se cada vez mais. No século III, para uma população de 1.200.000 pessoas, calcula-se que não haveria menos de 100.000 chefes de família que não se valessem da Anona.), encarregada de alimentar gratuitamente o povo? Periodicamente, veremos os imperadores subsequentes reeditarem essas primeiras medidas, o que prova que foram totalmente ineficazes. Os costumes dissolutos de tantos dos seus senhores, a resignação mais ou menos altaneira com que um Cláudio ou um Marco Aurélio suportam as suas desgraças conjugais, esclarecem a plebe sobre o verdadeiro alcance das medidas legislativas. Nos começos do século III, ao tomar posse do Consulado, Dion Cássio há de encontrar, só em Roma, três mil casos de adultério inscritos no respectivos registro. Pode-se dizer que ainda existe crime, quando ele é universal ou quase universal?
Em todos os tempos e em todos os países, a substituição das tendências naturais do homem pela vontade do Estado é sempre um indício de decadência. Um povo está muito doente quando, para viver honestamente e ter filhos, necessita de prêmios ou de regulamentos. ‘Chegamos a um ponto – dizia já Tito Lívio – em que já não podemos suportar nem os nossos vícios nem os remédios que os poderiam curar’. Quatro séculos mais tarde, São Jerônimo escreverá: ‘São os nossos vícios que tornam os bárbaros tão fortes’. Já não estava nas mãos do imperador ou dos seus juristas restituir à sociedade romana as suas sadias raízes. Tornava-se necessário nada menos que uma mudança radical nos próprios fundamentos da moral e nos seus meios de ação sobre a consciência.
[Texto tirado do volume I, A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires de Daniel-Rops, ex-membro da Academia Francesa. Faleceu em 1965.]