[Transcrevo – aliás, copio a transcrição feita por um caríssimo amigo daqui de Recife, na lista “Tradição Católica” – alguns trechos do livro “História da Guerra de Pernambuco”, do século XVII, escrito por Diogo Lopes Santiago. Contextualizando, nas palavras introdutórias de quem transcreveu originalmente os trechos: “A narrativa concentra-se no desenrolar das guerras envolvendo o domínio holandês: a de resistência, até a queda do Arraial do Bom Jesus, e a da restauração, com a expulsão dos holandeses em 1654. A parte que relata os sucessos de Cunhaú preparam a narração dos feitos de João Fernandes Vieira, herói da restauração, no Rio Grande do Norte”.
A referência aos mártires de Cunhaú surgiu neste vídeo (assistam) da caravana do IPCO. Mais informações podem ser obtidas também na revista “Mundo e Missão”, reproduzindo um documento da Arquidiocese de Natal.]
Livro II, capítulo IX
(…) Por me tirar do fio da história, quero escrever um caso infausto que sucedeu em Cunhaú (teatro, como já tenho escrito, de trágicos sucessos), e foi o caso que um domingo 16 de julho, e não como Fr. Manuel escreve que sucedeu em 29 de junho, dia de S. Pedro e de S. Paulo, estando ainda o governador João Fernandes Vieira no sítio do Covas, veio um holandês, chamado Jacó, casado com uma índia tapuia e quase bárbaros como esses indômitos e cruéis gentios, que com eles havia muito tempo morado no sertão e exercitado seus brutos e depravados costumes. Veio, pois, com ordem dos do Recife, trazendo muitos índios e tapuias e mandou chamar à falsa fé os moradores que estavam em suas casas, pacíficos, tratando cada qual de granjear suas fazendas, sem saber do levantamento de João Fernandes Vieira, e juntos ao domingo, pela manhã, pondo um edital dos do supremo conselho de segurança nas portas da igreja, e dizendo querer tratar com eles negócios de importância. Eles, posto que receosos dos índios, se juntaram na igreja. O Jacó lhes disse que ouvissem missa, que depois lhes manifestaria o negócio a que vinha; isto fez para os acolher todos juntos os que estavam por suas casas para virem ouvir missa. Não faltou da companhia quem dissesse aos moradores que fugissem enquanto tinham tempo, porque os vinham matar, e eles por verem que em nenhuma causa estavam culpados, não fizeram caso do aviso por seu mal.
Estando, pois, todos juntos, uns dentro da igreja, que serviu de cadafalso a estes inocentes, e outros na casa do senhor de engenho, mandou o flamengo cercar assim a casa como a igreja, e entendo já os miseráveis que a tempo não podiam fugir, ser certo o que se lhes havia dito, e vendo que os flamengos que vinham com Jacó e os índios lhes foram tomando os bordões que traziam, que estas eram as armas com que vinham, entre mortais ânsias se confessaram ao Sumo Sacerdote Jesus Cristo Senhor Nosso, pedindo cada qual, com grande contrição, perdão de suas culpas. Jacó, fazendo sinal assim aos flamengos, como aos tapuias, foram matando cruelmente e atrozmente aos que na igreja estavam, e o primeiro que cometeu esta maldade, levando de uma adaga, foi um dos potiguares principal, chamado o Jererera, filho do Jandoim, que foi grande amigo dos portugueses no tempo passado, não seguindo as pisadas do seu pai, degenerando de sua bondade. E se afirma que ele foi o primeiro que feriu o padre capelão daquela igreja, chamado André do Soveral, que ali mataram com os moradores, exortando-os a bem morrer e rezando apressadamente o ofício da agonia. Os que na casa do senhor de engenho se recolheram, ouvindo os tristes gritos daqueles que na igreja e seu adro e cemitério matavam, desceram pela escada abaixo; e como no súbito perigo não é necessário largo conselho, vendo que não podiam romper por entre a caterva dos tapuias e potiguares, cada qual se abraçou com o seu e assim, às dentadas e punhadas, pois outras armas não tinham, venderam as vidas. Mortos aqueles, subiram pela escada acima e fizeram em pedaços os que na casa acharam, escapando somente três por cima dos telhados, ficando mortos alguns sessenta e nove.
E o padre, sacerdotes de noventa anos de idade, ou por ver se podia escapar a vida, ou já por não saber com as ânsias da morte, que tão presente via o que dizia, se bem poderia ser por impulso sobrenatural, disse aos tapuias, que lhes falava bem a língua, que aqueles que o matassem se haviam de secar e morrer. Ficaram os tapuias tão admirados e confusos, que não quiseram dar morte ao padre; antes, se apartaram dele. Mas os potiguares, zombando dos tapuias, fizeram pedaços ao sacerdote e foi cousa admirável e estupendo caso que aos mesmos bárbaros causou espanto; porque secando em brevíssimo tempo os braços dos que ao padre mataram, acabaram as vidas raivando, e os que o ameaçaram ficaram com os braços tolhidos, conhecendo o erro que fizeram, que foi esse, se assim posso chamar, o primeiro arrependimento que esses bárbaros insolentes tiveram, por verem com seus olhos o castigo das inumanidades que fizeram; e ainda se viu outro prodígio; porque indo a Cunhaú, depois deste sucesso dois ou três meses, umas tropas de soldados nossos viram na igreja e seu adro o sangue dos que foram mortos tão vivo e fresco como se naquela hora fora derramado, e na porta da igreja uma estampa da mão que afirmaram ser do padre André do Soveral (…).
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[mais dois curtos depoimentos sobre a ojeriza do povo brasileiro à heresia calvinista holandesa]
De Nassau, aos seus sucessores na administração do Recife, advertindo-os da incoveniência de pretender converter os da terra:
“Não convém por agora que a prática da nossa religião seja abertamente introduzida entre os portugueses, com a supressão dos seus ritos e cerimônias, pois nada há que mais os exaspere. Também não é conveniente agora que Vossas Nobrezas se envolvam em sua disciplina eclesiástica e no que disto depende. Deixem esta matéria (servatis servandis) a seus padres e vigários, poquanto o contrário disso é prematuro, sem proveito ou reputação, e Vossas Nobrezas verificarão de fato que nada há que mais lhes doa do que meter-se o governo secular e interferir com seus eclesiásticos.”
De Adriaan van der Dussen (conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais), em 1639:
“Há pouca aparência de que os portugueses se convertam à religião reformada, porque aqui só há um ministro que prega na língua deles, porém nem um só português comparece às prédicas nem o procuram para, por meio de entrevistas individuais, aprenderem algo a respeito. Pelo contrário, recusam-se a prestar ouvidos a isto com pertinácia, o que procedem do que lhes disseram os padres, isto é, que a nossa doutrina é herética e maldita, da qual não poderiam ouvir falar sem incorrer em pecado de heresia.”