A infalibilidade papal «foi, no princípio, uma heresia reprovada» (!)

Encontramos mais um didático exemplo de por que ninguém deve dar crédito à cobertura que grande parte da mídia laica faz sobre religião: este longo artigo de UOL Notícias, reproduzindo El País. O texto está repleto de sandices, mas lá pelas tantas é possível ler a seguinte barbaridade:

“O inventor [da doutrina da infalibilidade] é o excêntrico franciscano Petrus Olivi. O que ele queria era que os papas se submetessem a um decreto de Nicolau 3º favorável à corrente franciscana, que exigia a pobreza radical. Por isso, em 1324 João 22 condenou essa doutrina como obra do demônio, o pai da mentira. Consequência: o dogma da infalibilidade papal foi, no princípio, uma heresia reprovada!”

A informação vem assim, cuspida, sem fonte e sem nada, e os jornais a reproduzem com alegria sem se preocupar minimamente com o absurdo que está escrito.

Aí alguém que tem um mínimo de senso crítico olha para a alegação estapafúrdia, acha-a (no mínimo!) estranha e decide ir atrás. Em menos de um minuto no Google ele encontra o Denzinger, dá um ctrl + f e procura por “John XXII”. Começa a ler o Magistério deste Papa. Obviamente não encontra nada sequer remotamente parecido com o que estava na matéria do jornal. Mas encontra outra coisa:

Erros de Marsilius de Pádua e João de Jandun

(A Constituição da Igreja)

[Examinados e condenados no edito “Licet iuxta doctrinam”, 23 de Outubro de 1327]

[…]

496 (2) Que o Bem-Aventurado Apóstolo Pedro não tinha mais autoridade do que os outros Apóstolos, nem que foi a cabeça dos demais Apóstolos. Do mesmo modo, que Deus não estabeleceu nenhuma cabeça da [Sua] Igreja, nem constituiu ninguém Seu vigário.

[…]

498 (4) Que todos os sacerdotes, quer seja o Papa ou [um] Arcebispo ou um simples padre, são por instituição de Cristo iguais em autoridade e jurisdição.

[…]

500 Nós declaramos e sentenciamos que os artigos acima mencionados… são contrários às Escrituras Sagradas e inimigos da Fé Católica, hereges, ou heréticos e errôneos, e também que os supracitados Marsilius e João sejam hereges – ou melhor, sejam arqui-hereges manifestos e notórios.

Como é possível que o mesmo Papa tenha chamado a infalibilidade pontifícia de “obra do demônio” e depois tenha condenado com veemência os que queriam diminuir a autoridade do Romano Pontífice é um desses esotéricos arcanos da sabedoria midiática que não está ao alcance das pessoas comuns que lêem jornais. Ao que parece, estas últimas, segundo a concepção de alguns órgãos de imprensa, deveriam simplesmente aceitar qualquer informação – por evidentemente disparatada que seja – divulgada nos honestos e impolutos meios de comunicação em massa.

Infelizmente para eles, nós somos capazes de raciocinar. E a discrepância entre o que lemos nos jornais espanhóis e o que está registrado nos compêndios do Magistério da Igreja é verdadeiramente assombrosa. Para nossa sorte, destas últimas informações nós temos as fontes históricas bem detalhadas. Já sobre condenação da “infalibilidade papal”… bom, nós temos o artigo do Juan G. Bedoya (Juan-quem?) que El País publicou e a UOL traduziu!