Está surpreendentemente bom este artigo sobre pena de morte publicado por Aleteia. Aborda um tema candente dos últimos tempos – a questão da pena de morte – com uma clareza de raciocínio e capacidade de exposição de idéias fascinante. Mais ainda, ele o faz sem se furtar ao sofisma talvez mais calhorda que existe no debate pró-vida contemporâneo: o que pinta como uma monstruosa contradição alguém se dizer ao mesmo tempo contra o aborto e a favor da pena de morte.
A resposta definitiva à questão é dada imediatamente após a manchete, antes mesmo de começar o texto em si: Defender o inocente não implica renunciar à punição do culpado. Claro, conciso, irretocável. Mas o argumento vai ser melhor desenvolvido ao longo das linhas do texto, as quais valem muito uma leitura.
A defesa da vida tem um objeto muito específico. O que se afirma é a inviolabilidade da vida humana inocente. Os dois adjetivos são essenciais para a correta compreensão do assunto.
O que é inviolável, em primeiro lugar, é a vida humana, e não simplesmente a “vida”. O ser humano se utiliza de seres vivos em seu benefício o tempo inteiro: colhendo o milho para engordar o pintinho, matando o frango para assar o galeto. Independente do que possam dizer os vegetarianos radicais, tudo isso é perfeitamente razoável e legítimo. Há certas diferenças essenciais entre o ser humano e os outros animais, e tais diferenças justificam que haja um tratamento diferenciado entre estes e aquele.
[Isto obviamente não autoriza que os demais seres vivos sejam usados de forma desumana e irresponsável; não é porque podemos matar uma galinha para fazer uma canja que nos é igualmente permitido esfolar um gato, e não é porque é legítimo capinar a frente da nossa casa que não existe nunca nenhum problema moral com o desmatamento. Os ecoterroristas estão para o uso legítimo da natureza como os vegans para a alimentação humana. Ninguém precisa defender o esfolamento de felinos para provar a imoralidade do vegetarianismo radical, como ninguém precisa extinguir a Mata Atlântica para entender que os catastrofistas ambientais estão errados. O parêntese talvez seja necessário.]
Em segundo lugar, é preciso ter em conta que indiscutivelmente inviolável é a vida humana inocente. Discutir a pena de morte para um criminoso não é a mesma coisa que trair o ideal da defesa da vida, da mesma forma que discutir a cadeia para quem comete crimes não é igual a contradizer o direito de ir e vir. E da mesma forma que há uma diferença muito grande entre o ser humano e os animais irracionais que justificam as diferenças de tratamento dispensadas a ambos, há também uma diferença – menor que a primeira, por certo, mas também diferença – entre um inocente e um criminoso, que justifica pelo menos defender um tratamento desigual para ambos sem que isso implique em nenhuma contradição.
Ao contrário do que acontece com os promotores do aborto, são pouquíssimos os católicos para os quais a pena de morte é propriamente uma bandeira. Trata-se muito mais de uma questão acadêmica, especulativa, de salvaguardar a coerência da Doutrina Moral da Igreja, de compreender melhor a Justiça que se esconde para além dos costumes sociais vigentes na sociedade contemporânea – e não de introduzir a figura da pena capital no ordenamento jurídico pátrio. Todos os defensores do aborto querem que o aborto seja legalizado; nem todos os (assim chamados) “defensores da pena de morte” querem que ela seja efetivamente implantada. Isso permite ao John Zmirak (autor do texto acima indicado) fazer a seguinte genial provocação:
Eu já propus o seguinte aos liberais pró-escolha, que chamavam de hipócrita quem era pró-vida e ao mesmo tempo favorável à pena de morte: “Caros liberais pró-escolha, vamos fazer um acordo: eu deixo de apoiar a pena de morte e vocês param de apoiar o aborto. Se vocês pararem de matar os inocentes, nós concordamos em parar de matar os culpados”. Ninguém aceitou a minha proposta (…).
E o mesmo trato vale para qualquer abortista hipócrita que venha despejar erística vazia por aqui.
Há uma última coisa que o Zmirak não faz, mas que eu gostaria de fazer. Não há contradição entre ser contra o aborto e a favor da pena de morte, como foi mostrado acima, mas a recíproca não é verdadeira: há, sim, contradição, uma aberrante e clamorosa contradição, uma contradição inescapável e vergonhosa, em ser ao mesmo tempo contra a pena de morte e favorável ao aborto. É insofismavelmente contraditório e hipócrita defender ao mesmo tempo que os criminosos não podem ser condenados à morte pelos tribunais, mas as crianças inocentes podem ser mortas por suas mães sem nenhum problema. E, disso, não dá para fugir.
Todo mundo que é a favor do aborto, portanto, não tem envergadura moral alguma para se dizer contra a pena de morte. E todo mundo que é contra a pena de morte deveria, por força de coerência, opôr-se também e visceralmente à legalização do aborto, esta particular forma de pena de morte que é direcionada aos mais inocentes e indefesos dos seres humanos: as crianças no ventre materno. Agir diferente disso é que é contradição e hipocrisia.
Outros textos muito bons do John Zmirak podem ser lidos em português no próprio Aleteia. O blog dele em inglês (que eu também só conheci agora) é este The Bad Catholic’s Bingo Hall.