Curtas sobre os abusos sexuais na Igreja

1. Dossiê sobre o Cardeal Ratzinger e os abusos sexuais na Igreja Católica. É uma pena que esteja em inglês, mas me parece excelente: uma análise caso-a-caso, trazendo as acusações e as respostas que elas tiveram. Para acessar, cliquem na imagem abaixo.

2. Bertone tinha razão. Según el psicólogo Amenós Vidal, el Card. Bertone tenía razón. Foi publicado no “Diário de Chile” e reproduzido na íntegra pela agência argentina aqui linkada.

3. Papa começa a fazer a limpeza. Foi publicado na mídia secular (original El País, tupiniquim UOL Notícias). É engraçado que, até ontem, o Papa era um acobertador de pedófilos. Agora, ao contrário, ele é o cara que está “limpando a sujeira” da Igreja, e o acobertador na verdade era João Paulo II…

Uma carta aberta a Hans Küng – por George Weigel

Original: First Things
Tradução: Fabiano Rollim

Uma carta aberta a Hans Küng

21 de abril de 2010

Por George Weigel

Dr. Küng,

Há uma década e meia atrás, um ex-colega seu, um dos mais jovens teólogos progressistas no Vaticano II, contou-me sobre uma advertência amigável que lhe teria feito no começo da segunda sessão do Concílio. Essa pessoa, hoje um eminente catedrático em Sagradas Escrituras e defensor da reconciliação judaico-cristã, lembrava como, naqueles dias conturbados, você o levou para dar uma volta por Roma em um Mercedes vermelho conversível, o qual seu amigo presumiu ter sido um dos frutos do sucesso comercial de seu livro, The Council: Reform and Reunion [1].

Seu colega considerou aquela exibição automotiva um chamariz de atenção imprudente e desnecessário, dado que algumas de suas opiniões mais aventureiras, e seu talento para o que mais tarde seria conhecido como “frases de efeito”, já estavam levantando sobrancelhas e causando frio em espinhas na Cúria Romana. Então, conforme me foi contado, seu amigo o chamou à parte um dia e disse, usando um termo francês que vocês dois entendiam, “Hans, você está ficando muito évident.” [2]

Como alguém que, sozinho, inventou um novo tipo de personalidade global – o teólogo dissidente que se transforma em estrela da mídia internacional – acredito que você não tenha ficado muito incomodado com a advertência de seu amigo. Em 1963, você já estava determinado a traçar um caminho singular para si, e conhecia a mídia suficientemente bem para saber que uma imprensa mundial obcecada com a história peculiar de um teólogo sacerdote dissidente daria a você um megafone para seus pontos de vista. Você deve ter ficado triste com o saudoso João Paulo II por ter tentado desmantelar aquele enredo ao retirar seu mandato eclesiástico para ensinar como professor de teologia católica; sua subsequente acusação rancorosa de uma suposta inferioridade intelectual de Karol Wojtyla, em um volume de suas memórias, tornou-se, até recentemente, o ponto mais baixo de uma carreira polêmica na qual se tornou évident que você é um homem pouco capaz de reconhecer inteligência, decência ou boa vontade em seus oponentes.

Eu digo “até recentemente”, entretanto, porque sua carta aberta aos bispos do mundo, de 16 de abril, que li primeiramente no Irish Times, estabeleceu novos padrões para aquela forma distintiva de ódio conhecida como odium theologicum e para a condenação maldosa de um velho amigo que, ao ser elevado ao papado, foi generoso com você ao encorajar aspectos de seu trabalho atual.

Antes de chegarmos ao assalto à integridade do Papa Bento XVI, entretanto, permita-me observar que seu artigo deixa terrivelmente claro que você não tem prestado muita atenção às questões sobre as quais se pronuncia com um ar de infalibilidade que faria corar as bochechas de Pio IX.

Você parece displicentemente indiferente ao caos doutrinal que cerca a maioria do protestantismo europeu e norte-americano, o qual criou circunstâncias nas quais um diálogo ecumênico teologicamente sério ficou gravemente ameaçado.

Você considera como verdadeiras as acusações mais irracionais feitas a Pio XII, evidentemente sem levar em conta que o recente debate entre os estudiosos está fazendo a balança pender a favor da coragem daquele Papa na defesa dos judeus europeus (independentemente do que se queira pensar a respeito de sua prudência).

Você erra ao representar os efeitos do discurso de Bento XVI em Regensburg, em 2006, rejeitando-o como tendo “caricaturado” o Islã. Na verdade, o discurso em Regensburg focou novamente o diálogo católico-islâmico nas duas questões que precisam ser urgentemente abordadas – a liberdade religiosa como um direito humano fundamental que pode ser conhecido pela razão, e a separação da autoridade religiosa e política no estado do século vinte e um.

Você não mostra qualquer compreensão a respeito do que realmente previne a AIDS na África, e se agarra ao desgastado mito da “superpopulação” em um momento onde as taxas de natalidade estão caindo ao redor do globo e a Europa está entrando em um inverno demográfico criado conscientemente por ela mesma.

Você parece alheio à evidência científica que subscreve a defesa que a Igreja faz do status moral do embrião humano, ao mesmo tempo em que acusa falsamente a Igreja Católica de se opor à pesquisa com células-tronco.

Por que você desconhece essas coisas? Obviamente você é um homem inteligente; você chegou a fazer um trabalho pioneiro em teologia ecumênica. O que aconteceu com você?

O que aconteceu, creio eu, é que você perdeu seus argumentos a respeito do significado e da hermenêutica correta do Vaticano II. Isso explica porque você insiste incansavelmente em sua busca cinquentenária por um catolicismo protestante, precisamente no momento em que o projeto liberal protestante está desmoronando de sua inerente incoerência teológica. E é por isso que agora você se envolveu em uma torpe difamação de outro ex-colega do Vaticano II, Joseph Ratzinger. Antes, porém, de abordar essa difamação, permita-me comentar brevemente sobre a hermenêutica do Concílio.

Ainda que você não seja o expoente mais completo, teologicamente falando, daquilo que Bento XVI chamou de “hermenêutica da ruptura” no discurso à Cúria Romana no Natal de 2005, você é, sem dúvida, o representante de maior visibilidade internacional daquele grupo idoso que continua a insistir em que o período de 1962 a 1965 marcou um caminho sem volta decisivo na história da Igreja Católica: o momento de um novo começo, no qual a Tradição seria destronada de seu lugar de costume como fonte primária de reflexão teológica, sendo substituída por um cristianismo que paulatinamente deixaria “o mundo” estabelecer a agenda da Igreja (como num mote que o Conselho Mundial de Igrejas utilizava na época).

A luta entre essa interpretação do Concílio e aquela defendida por padres conciliares como Ratzinger e Henri de Lubac dividiu o mundo teológico católico pós-conciliar em grupos contendedores representados por duas revistas: a Concilium para você e seus colegas progressistas, e a Communio para aqueles que vocês continuam a chamar de “reacionários”. O fato de que o projeto Concilium se tornou cada vez mais inviável com o tempo – e que uma geração mais nova de teólogos, especialmente na América do Norte, passou a gravitar na órbita da Communio – não deve ter sido uma experiência feliz para você. E o fato de que o projeto Communio moldou decisivamente as deliberações do Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, convocado por João Paulo II para celebrar os resultados alcançados pelo Vaticano II e avaliar sua plena implementação no vigésimo aniversário de seu encerramento, deve ter sido outro baque.

Ainda assim arrisco dizer que a espada entrou mesmo em sua alma quando, em 22 de dezembro de 2005, o recém-eleito Papa Bento XVI – o homem cuja indicação para a faculdade teológica de Tübingen você tinha ajudado a conseguir – dirigiu-se à Cúria Romana e sugeriu que a disputa tinha acabado: e que a “hermenêutica conciliar da reforma”, que presumia continuidade com a Grande Tradição da Igreja, tinha prevalecido sobre a “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”.

Talvez, enquanto você e Bento XVI bebiam cerveja em Castel Gandolfo no verão de 2005, você de alguma forma tenha imaginado que Ratzinger tinha mudado de idéia nessa questão central. Obviamente ele não tinha. Por que você chegou a imaginar que ele poderia aceitar sua visão sobre o que significaria uma “constante renovação da Igreja”, francamente, é um mistério. Também sua análise sobre a situação católica contemporânea não se tornou nem um pouco mais plausível quando se lê, mais adiante em seu recente artigo, que os papas recentes têm sido “autocratas” em relação aos bispos; de novo, é de se pensar se você tem prestado atenção suficientemente. Pois parece evidente e claro que Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI têm sido dolorosamente relutantes – alguns diriam, desafortunadamente relutantes – em disciplinar bispos que se mostram incompetentes ou com má conduta e que por isso perderam a capacidade de ensinar e de liderar: uma situação que muitos de nós esperam que mude, e mude logo, à luz das recentes controvérsias.

De certa forma, naturalmente, nenhuma de suas reclamações sobre a vida católica pós-conciliar é nova. Entretanto, parece mesmo muito contraditório, para alguém que realmente se importa com o futuro da Igreja Católica como uma testemunha da verdade de Deus para a salvação do mundo, insistir no ponto a que você persistentemente nos insta: que um catolicismo credível percorra o mesmo caminho traçado nas décadas recentes por várias comunidades protestantes que, conscientemente ou não, seguiram uma ou outra versão de seus conselhos para adotar uma hermenêutica de ruptura com a Grande Tradição Cristã. A propósito, essa é a singular posição que você ocupou desde que um de seus colegas se preocupou em você estar muito évident; e já que essa posição lhe manteve évident, pelo menos nas colunas de jornais que compartilham sua visão sobre a tradição católica, imagino ser demais esperar que você mude, ou mesmo aperfeiçoe, seus pontos de vista, mesmo se cada pedacinho de evidência empírica à disposição sugerir que o caminho que você propõe é o caminho da decadência para as igrejas.

O que pode ser esperado, em vez disso, é que você se comporte com um mínimo de integridade e decência nas controvérsias nas quais se envolve. Entendo o odium theologicum tão bem quanto qualquer um, mas tenho de, com toda a franqueza, dizer-lhe que em seu recente artigo você cruzou uma linha que não devia ser ultrapassada, quando escreveu:

“Não há como negar o fato de o sistema de ocultamento posto em prática em todo o mundo diante dos crimes sexuais dos clérigos ter sido engendrado pela Congregação para a Doutrina da Fé romana sob o cardeal Ratzinger (1981-2005)”.

Isso, senhor, não é verdade. Recuso-me a acreditar que você sabia que isso era falso e mesmo assim o tenha escrito, pois isso significaria que você conscientemente se condenou como um mentiroso. Mas assumindo que você não sabia que esta sentença era um punhado de mentiras, então você é tão notoriamente ignorante a respeito de como a competência por casos de abuso eram designadas na Cúria Romana antes de Ratzinger ter tomado o controle do processo e trazido o mesmo para competência da CDF em 2001, que perdeu toda a possibilidade de ser levado a sério a respeito deste ou de qualquer outro assunto que envolva a Cúria Romana e o governo central da Igreja Católica.

Como talvez você não saiba, tenho sido um crítico vigoroso e, assim espero, responsável a respeito de como casos de abuso foram (mal) conduzidos por bispos e autoridades na Cúria até o fim da década de 1990, quando o então Cardeal Ratzinger começou a lutar por uma mudança significativa no tratamento desses casos. (Se estiver interessado, consulte meu livro de 2002, The Courage To Be Catholic: Crisis, Reform, and the Future of the Church [3].)

Por isso, falo com algum conhecimento de causa quando digo que sua descrição a respeito do papel de Ratzinger, conforme citado acima, não é apenas burlesca para quem quer que esteja familiarizado com a história, mas contradita pela experiência de bispos americanos que sempre viram em Ratzinger alguém cuidadoso, disposto a ajudar e profundamente preocupado com a corrupção do sacerdócio por uma pequena minoria de abusadores, e ao mesmo tempo aflito com a incompetência e má conduta de bispos que levaram a sério, mais do que deviam, as promessas da psicoterapia ou que não tiveram a hombridade de confrontar o que tinha de ser confrontado.

Sei que não são os autores que redigem os subtítulos, algumas vezes horríveis, que são colocados em colunas de jornal. Apesar disso, você foi o autor de uma peça tão ácida – em si mesma completamente inapropriada para um sacerdote, um intelectual, ou um cavalheiro – que permitiu que os editores do Irish Times resumissem seu artigo da seguinte forma: “O Papa Bento piorou tudo o que já era errado na Igreja Católica e é diretamente responsável por engendrar o ocultamento global do estupro de crianças perpetrado por sacerdotes, de acordo com esta carta aberta a todos os bispos católicos.” Essa falsificação grotesca da verdade demonstra aonde o odium theologicum pode levar um homem. Mas de qualquer forma isso é vergonhoso.

Permita-me sugerir que você deve ao Papa Bento XVI um pedido público de perdão pelo que, objetivamente falando, é uma calúnia que, assim rezo, tenha sido formada em parte por ignorância (ainda que por ignorância culpável). Garanto-lhe que sou a favor de uma profunda reforma na Cúria Romana e no episcopado, projetos que descrevo até certo ponto no livro God´s Choice: Pope Benedict XVI and the Future of the Catholic Church [4], uma cópia do qual, em alemão, ficarei feliz em enviar-lhe. Mas não há caminho para a verdadeira reforma na Igreja que não passe pelo íngreme e estreito vale da verdade. A verdade foi trucidada em seu artigo no Irish Times. E isto significa que você atrapalhou a causa da reforma.

Com a garantia de minhas orações,

George Weigel

George Weigel é Membro Sênior do Centro de Ética e Política Pública de Washington, onde ocupa a cadeira William E. Simon em estudos católicos.

Artigo original em inglês disponível em: http://www.firstthings.com/onthesquare/2010/04/an-open-letter-to-hans-kung

Traduzido por Fabiano Rollim

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[1] N. do T.:“ O Concílio: Reforma e Reunião” – livro não publicado no Brasil.

[2] N. do T.: Évident: aparente, evidente, notável.

[3] N. do T.: “A Coragem de Ser Católico: Crise, Reforma e o Futuro da Igreja” – livro não publicado no Brasil.

[4] N. do T.: “A Escolha de Deus: O Papa Bento XVI e o Futuro da Igreja Católica” – livro não publicado no Brasil.

Católicos e ateísmo

O Alien fez a seguinte pergunta em um comentário sobre outro texto cá do blog:

Não sei se a mídia não mostra, ou não temos acesso, mas alguma vez alguém da Igreja Católica já confrontou cara a cara os defensores do ateísmo? Em público?

Não sei a resposta completa à pergunta, pois não conheço todos os católicos que desenvolvem trabalho apologético nos meios de comunicação mundo afora. Historicamente, sei que muitos católicos já confrontaram abertamente os defensores de todos os erros e heresias (quanto ao agnosticismo em particular, não poderia deixar de mencionar o grande Chesterton), mas imagino que o Alien esteja perguntando com relação aos nossos tempos.

Não conheço muito sobre a apologética católica anti-ateísta contemporânea. Mas posso responder que sim, alguma vez alguém da Igreja Católica, alguém grande, já “confrontou cara a cara os defensores do ateísmo”. Em público, em um teatro, que lotou e foi necessária a colocação improvisada de alto-falantes, para que as pessoas que se aglomeravam do lado de fora pudessem acompanhar o debate.

Quem foi? O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI gloriosamente reinante. O seu adversário foi o filósofo ateu Paolo Flores d’Arcais. O debate está transcrito em um livro lançado no ano passado, “Deus existe?”, que ainda não li, mas está na minha lista.

Inclusive o ateu Marcelo Coelho, articulista da Folha, escreveu já por duas vezes sobre este debate. O texto que está disponível no seu blog pode ser lido aqui. E seu início não deixa de ser um elogio ao Papa: “Pode-se discordar muito de Bento 16 – e mesmo detestá-lo. Mas é, sem dúvida, um ótimo papa do ponto de vista intelectual”. Em um outro texto (aqui para assinantes), o ateu é forçado a reconhecer a vitória do cardeal católico:

Flores d’Arcais não sai vitorioso, entretanto, do debate com Joseph Ratzinger. Quando se trata de defender princípios universais e inalienáveis, como os direitos humanos, nosso ateu de plantão cai na armadilha do relativismo: muitas sociedades admitiram o homicídio, a antropofagia…

Ratzinger insiste, com razão, que se muitas sociedades fizeram coisas detestáveis, isso não torna casuais, contingentes, os direitos humanos. D’Arcais também não gostaria que isso acontecesse, mas se confunde no debate.

Debates assim são importantes e devem ser divulgados e incentivados. Pois a razão está do lado da Fé, e não do ateísmo. É importante fazer as pessoas compreenderem isso.

P.S.: Sobre este livro, vale a pena ler: ¿Dios existe?, tradução de um artigo do pe. Rodrigo Polanco, aqui publicado.

Mais Crimen Sollicitationis

Isto não é uma questão de anti-catolicismo, no sentido da malícia com a qual certos segmentos da sociedade americana sempre abordaram a Igreja Católica. Isto é um novo fenômeno – uma tendência de até mesmo as pessoas imparciais [fair-minded] acreditarem nas piores interpretações sobre qualquer história envolvendo a Igreja.

– John L. Allen Jr., August 15, 2003.

As minhas trocas de farpas com o pessoa da UNA deram resultado, motivo pelo qual fico muitíssimo feliz. Os ateus preconceituosos deram-se ao inaudito e louvável trabalho de pensar por conta própria, de ir às fontes e parar com a síndrome-de-papagaio de repetição de chavões. Não conseguiram ainda escapar do fenômeno cuja existência o Allen Jr. evoca na frase em epígrafe, mas já é um bom começo. Oxalá a progressiva abertura da mente à verdade e à honestidade termine por abrir enfim espaço Àquele que é a Verdade.

Após a irresponsável publicação de um documentário velho da BBC sem checar as fontes (e, aliás, repleto de erros crassos de português; ser obrigado a ler “pretesto” foi uma coisa realmente frustrante…), a UNA me surpreendeu com a publicação de um texto incomparavelmente melhor sobre o mesmo assunto, tanto que eu nem seria capaz de atribuir ambos ao mesmo blog. Não vou me deter no exame do documentário: basta dizer que a acusação principal – de que a Crimen Sollicitationis tenciona impedir que os padres pedófilos sejam punidos – é  totalmente descabida, pois segredo canônico não se confunde com investigações policiais.

Quanto ao texto da UNA, é uma pena que o louvável esforço investigativo feito por eles não tenha sido um pouco maior. Se eles tivessem pesquisado um pouquinho a mais, iriam encontrar esta discussão sobre o documento na Wikipedia inglesa que diz que a tradução para o inglês está cheia de erros. Se eles entendessem melhor sobre o assunto que estão falando, também chegariam facilmente à mesma conclusão, porque há trechos do documento que simplesmente não fazem sentido. Por exemplo, o número 11 fala em “penalty of excommunication latae sententiae, ipso facto and without any declaration [of such a penalty] having been incurred and reserved to the sole person of the Supreme Pontiff, even to the exclusion of the Sacred Penitentiary” (Crimen Sollicitationis, 11). Passei um tempo enorme tentando entender o que raios era essa “exclusão da Sagrada Penitenciária” [cheguei a cogitar se o documento não estaria dizendo que a pessoa estava excluída do Sacramento da Penitência], até me deparar com a tradução melhor na supracitada discussão da Wikipedia: a excomunhão é “reserved to the Supreme Pontiff in person alone, excluding even the Apostolic Penitentiary”.

As fontes consultadas pela UNA, portanto, por serem inacuradas, comprometem seriamente a análise que eles fizeram sobre o documento. Algumas coisas ditas, evidentemente, são verdadeiras. Mas outras são erros decorrentes quer da má tradução para o inglês, quer da falta de conhecimento que têm os ateus sobre as leis canônicas da Igreja Católica.

Sobre os erros de tradução, a citada discussão da Wikipedia disse que, em um ponto, chegou-se ao absurdo de que the word “excepted” has been transformed into “accepted”, thereby reversing the meaning (!!!). E este ponto é precisamente o parágrafo 72 da instrução, usado pela UNA para mostrar que a Igreja impunha silêncio às vítimas de pedofilia. Na tradução do blog ateu:

72. Essas coisas devem ser tratadas conforme [as regras dos] pecados de solicitação [que] são válidas aqui, mudando apenas aquelas coisas necessárias para adaptá-las à sua natureza exata, a de pior de todos os pecados [o texto segue e adverte que todos estão obrigados a denunciar um eventual transgressor ao Superior Hierárquico, sob as penas da lei da Igreja, a menos que o conhecimento dos fatos tenha sido obtido por  Segredo de Confissão].

Isto foi dito baseado na versão inglesa do documento, que diz (grifos meus) “having accepted the obligation of the denunciation from the positive law of the Church”. Contudo, o original em latim diz claramente (de novo, meus grifos) “excepta obligatione denunciationis ex lege Ecclesiae positiva”. Francamente, isso não é nem mesmo uma falsa cognata! O que impediu o sujeito que fez a tradução para o inglês de escrever a tradução imediata “excepting the obligation of the denunciation”? Devido ao erro de tradução e à inversão do sentido da frase, a UNA disse que, “nos casos de abuso de menores, prevalece a lei da imposição do silêncio”. Não é verdade. Nos casos de abuso de menores – o “pior de todos os pecados” -, não existe a obrigação de se fazer a denúncia ao Superior e, por conseguinte, não existe o voto de silêncio que é feito nesta denúncia.

Na verdade, não fosse – de novo – por aquele estranho fenômeno ao qual alude o jornalista na citação em epígrafe, os ateus deveriam ter percebido que havia alguma coisa estranha. Imposição de silêncio pontifício para casos de parafilias com “PORCOS, ÉGUAS, GALINHAS E VACAS”? Isso pode fazer sentido na cabeça atéia preconceituosa, mas ofende o bom senso. O voto de silêncio que é exigido nos casos de crimes de solicitação decorre da natureza sigilosa da penitência sacramental. O segredo de confissão é absolutamente inviolável e, por isso, as denúncias de crimes que ocorrem neste contexto também estão envoltas em sigilo. Não havendo Confissão Sacramental, não existe imposição de segredo; e, assim, fica desmascarada esta que talvez seja a mais cretina calúnia contra a Igreja que já tive a oportunidade de analisar aqui no Deus lo Vult!. Agradeço à UNA pela oportunidade.

Por último, e já esclarecida a questão principal e mais importante sobre a falsa “imposição de silêncio” da Igreja às vítimas de pedofilia, resta uma questão de somenos importância sobre se a Crimen Sollicitationis ainda está em vigor ou não. O cân. 6, logo na segunda página do CIC, diz o que segue:

Cân. 6 – §1. Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados:

[…]

3º Quaisquer leis penais, universais ou particulares, dadas pela Sé Apostólica, a não ser que sejam acolhidas neste Código;

[Código de Direito Canônico]

Sempre soube que, com a entrada em vigor do Código de 1983, ficaram ab-rogadas as leis penais – incluindo, portanto, as excomunhões – promulgadas anteriormente. Na verdade, todo católico sabe (aliás, eu já disse aqui mais de uma vez) que só existem oito excomunhões automáticas, que são (1) revelação de sigilo sacramental, (2) absolvição de cúmplice em pecado contra o Sexto Mandamento, (3) agressão física contra o Romano Pontífice, (4) profanação eucarística, (5) heresia, apostasia ou cisma, (6) sagração episcopal sem mandato pontifício, (7) aborto provocado e (8) tentativa de ordenação feminina [esta, é recente]. Não existe nenhuma excomunhão automática para quem “revela Segredo do Santo Ofício”, desde a promulgação do Código vigente.

No entanto, o documento usado pela UNA para “provar” que a Crimen Sollicitationis continua em vigor é a Graviora Delicta. Esta Carta Apostólica não “evoca e confirma” a instrução de 1962 como disseram os ateus – ela apenas cita a instrução dizendo que até o momento estava em vigor. Na minha opinião, ela foi substituída pela própria Graviora Delicta, por força do motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela; por falta de competência, deixo no entanto esta questão para os canonistas, porque ela não faz muita diferença, já que a instrução de 2001 também fala em segredo pontifício para todas as coisas que nela são tratadas: Huiusmodi causae secreto pontificio subiectae sunt.

Demonstrado está, portanto, que a Igreja nunca impôs silêncio às vítimas de pedofilia, nem nos dias de hoje e nem à época da Crimen Sollicitationis. O Segredo Pontifício, antigo “Segredo do Santo Ofício”, decorre – no caso em pauta – do sigilo sacramental e não de uma tentativa da Igreja de “encobrir” os crimes dos Seus pastores; e este segredo, contudo, não se aplica aos casos de pedofilia, ao contrário do que o artigo da UNA se esforçou para provar.

¿Dios existe?

[Texto original: Humanitas
Tradução: Wagner Marchiori
]

DEUS EXISTE?

Por P. Rodrigo Polanco
Secretário Acadêmico da Faculdade de Teologia da PUC – Chile

O livro que apresentamos é fundamentalmente uma transcrição literal de um debate sobre a pergunta que dá título a esta obra: Deus existe?, cujos protagonistas foram o então Cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo Paolo Flores d’Arcais. O diálogo ocorreu no teatro Quirino, em Roma, em 21 de fevereiro de 2000, dentro do contexto do Jubileu convocado por João Paulo II pela ocasião do segundo milênio da encarnação do Verbo de Deus.

O debate, como era de se esperar, suscitou muito interesse antes mesmo de sua realização: o teatro estava repleto de público e ficaram mais de duas mil pessoas do lado de fora que conseguiram acompanhar o diálogo com a ajuda de um amplificador improvisado.

O motivo do interesse? Em primeiro lugar os debatedores: o Cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Conhecido por sua competência em temas filosóficos e teológicos e, particularmente, porque um de seus maiores interesses foi precisamente poder penetrar e compreender melhor a cultura atual e suas dificuldades em aceitar a mensagem cristã; e, mais especificamente, são conhecidos seus numerosos trabalhos acerca da possibilidade e necessidade da fé em um Deus pessoal que possa fundamentar a cultura e a ética no mundo contemporâneo. Hoje é nosso Santo Padre Bento XVI, cujo magistério se viu claramente influenciado por estas preocupações. Esperavam-se, então, de suas reflexões bons aportes ao debate atual.

O outro debatedor era Paolo Flores d’Arcais, filósofo e jornalista, nascido em Udine, Itália, em 1944. Ele se reconhece como ateu e é, na atualidade, uma referência intelectual no âmbito da cultura européia contemporânea. É, além disso, fundador e diretor da revista “Micromega”, que publicou este diálogo (foi publicado também na França pela editora Payot et Rivage e, na Alemanha, pela Wagenbach Verlag). Flores d’Arcais é um decisivo impulsionador dos valores cívicos da democracia e da igualdade. Seu ateísmo significa, para ele, “simplesmente considerar que tudo se passa aqui, em nossa existência, finita e incerta. E, portanto, são importantes os valores que se elegem e a própria conduta” (pg 30). Pode-se perceber, de imediato, que entre esses dois expoentes há pontos em comum apesar de uma diferença fundamental, o que augurava um debate que não decepcionaria.

O diálogo – e esta é a segunda razão do interesse do livro – que foi muito bem moderado por Gard Lerner (um jornalista italiano judeu), se desenvolveu de maneira intensa, muito honesta, às vezes de forma incisiva, mas sempre com respeito à opinião do outro e em sincera busca pela verdade. Ao longo do debate foram saindo os clássicos argumentos contra a existência de Deus e que foram permitindo ao Cardeal Ratzinger colocar com muita claridade, não somente a realidade da existência de Deus, mas, também, o porquê é hoje necessário e, sobretudo, racional (isto é, adequado a uma razão moderna) crer em Deus.

O diálogo – transcrito integralmente no livro – é aberto, fundamentalmente, com uma colocação de Flores d’Arcais que se tornará o fio condutor do debate, pois é justamente o núcleo da discussão sobre a existência de Deus. Afirma Flores d’Arcais que a fé deve aceitar – seguindo a São Paulo em seu “escândalo para a razão” e àquilo que se atribui a Tertuliano, “credo ut absurdum” (creio porque é absurdo (o que creio)) – que é digna de respeito, tem direito a uma cidadania, mas não é exigível nem pode ter a pretensão de ser aceita pela razão, já que “suas verdades” não podem ser demonstradas pela razão e que, inclusive, isso não foi pretensão do cristianismo primitivo que se considerava uma religião à margem da razão. Esta é uma afirmação que talvez muitos cristãos, à primeira vista, subscreveriam.

Pois bem, a partir dessa mesma observação, o Cardeal Ratzinger começa sua exposição demonstrando, com dados históricos, exatamente o contrário. O cristianismo desde suas origens considerou-se como uma religião e uma fé que certamente não era absurda e que, além disso, devia dar “razão de sua esperança”. A primeira carta de São Pedro diz precisamente “estais sempre dispostos a todos os que vos pedem dar razão de vossa esperança” (1Pe 3,15). Os cristãos devem, então, estar em condições de demonstrar o sentido profundamente racional de suas convicções. De fato, o cristianismo primitivo triunfou sobre as religiões pagãs de seu entorno justamente por sua reivindicação de racionalidade. Apresentou-se, inclusive, como filosofia, isto é, como resposta à busca da verdade, do ‘logos’ do mundo. Já no ano 150, Justino, filósofo e mártir cristão, fundava em Roma uma escola de formação cristã, aonde se podia aprender a refletir a fé entendida como filosofia verdadeira. Sua conversão, longe de afastá-lo da filosofia, o fez verdadeiramente filósofo. Certamente, ao entender o cristianismo como a filosofia perfeita, a filosofia que leva à verdade, “não se entendia, então, como uma disciplina acadêmica puramente teórica, mas também, e antes de tudo, desde uma perspectiva prática, como a arte de viver e morrer retamente à qual só se pode chegar à luz da verdade”. Além disso, a pergunta pela verdade, pelo ‘logos’ das coisas, era a pergunta da filosofia e não das religiões pagãs da época.

A convicção básica da Antiguidade – e creio que também nossa – era que no mundo existe uma racionalidade sobre a irracionalidade – o mundo, a vida, cada um de nós mesmos não somos um absurdo – e, por isso, uma religião, qualquer que seja, mostrar-se-á adequada e verdadeira na medida em que se apresente como “vera religio”, isto é, como verdade universal e fundante. E dessa verdade se deduz também a natureza do homem e, portanto, seu dever moral. De fato, “o que a lei supõe realmente, as exigências que o Deus único coloca para a vida do homem e que a fé cristã traz à luz, coincide com o que o homem, todo homem, leva escrito no coração, de maneira que o considera bom quando aparece diante dele. Coincide com o que é ‘bom por natureza’ (Rom 2,14)” (pág. 16-17). Na base dos direitos humanos universais – nascidos em contexto cristão e desde o cristianismo – está precisamente a convicção de uma verdade comum – o homem – e um fundamento último: Deus. Essa foi sempre a pretensão do cristianismo, que nasce não tão somente da Revelação, mas também da racionalidade das coisas que existem.

E o debate continua se desenvolvendo, sempre em forma de diálogo e com oportunas reflexões de Paolo Flores d’Arcais em que apresenta suas considerações, sejam factuais ou filosóficos, para não aceitar as verdades e a pretensão do cristianismo. Por exemplo: sendo Deus o “Totalmente Outro”, pode alguém pretender realmente conhece-Lo?  Não são todas as religiões aproximações igualmente válidas, já que não se pode nem sequer se aproximar por analogia àquilo que Deus é? Porque é necessário que haja “um” sentido para a vida? Não bastaria que cada um encontrasse um sentido particular para sua vida, ainda que seja absurdo para outro? Por que deve haver um único sentido?

Neste ponto do diálogo aparece um elemento crucial na exposição de Flores d’Arcais: se o cristianismo – diz ele – se visse a si mesmo como uma religião que é escândalo para a razão (ou seja, não racional), não haveria problemas, porque uma fé assim somente pediria à sociedade que a respeitasse e não tentaria se impor na sociedade, isto é, não seria missionária. O problema para Flores é se – ao contrário – a “fé católica pretende ser o sumário e o cume da razão, ser o sumário e o cume de tudo aquilo que é mais característico do homem”, ou em palavras do Concílio Vaticano II se “o mistério do homem somente se esclarece no mistério do Verbo Encarnado” (GS 22), então é essencial (ao cristianismo) seu interesse em propagar esta “Boa Nova” (já que o bem é difusivo por si próprio), mas, ao mesmo tempo, é inevitável o risco de que mais tarde caia na tentação de se impor. O Cardeal Ratzinger está, evidentemente, totalmente de acordo em que é preciso evitar o perigo de tentar se impor. A fé apela sempre à consciência e à razão, o ato de fé é necessariamente um ato que nasce da liberdade e de haver reconhecido a Deus que se revela e oferece a salvação, mas sempre é oferecimento livre.

Mas o motivo da missão e da evangelização, isto é, este elemento essencial da fé católica, “nasce do fato que nós, os crentes, cremos que temos algo que dizer ao mundo, a todos, que a questão de Deus não é uma questão privada…, pelo contrário, estamos convencidos de que o homem necessita conhecer a Deus, estamos convencidos de que em Jesus apareceu a verdade e a verdade não é propriedade privada de alguém, mas que tem de ser compartilhada, tem de ser conhecida”. Novamente o tema da verdade e da razão.

À continuação o tema se desenvolve em diversos matizes e se chega assim a um novo passo na reflexão de nosso atual Santo Padre. Havia dito que a fé católica é racional e que, como verdade, é necessário que todos a conheçam; passa, agora, a discutir com Flores a “novidade cristã de Deus”. A Bíblia nos apresenta um Deus que está além do Deus da filosofia, isto é, um Deus pessoal que é amor. O mundo vem da razão – logos – mas esta razão é pessoa, é amor – isto é o que o característico e próprio do cristianismo. Isso também não é absurdo, mas supera o alcance da razão por si mesma. Com esta afirmação – segundo o Cardeal Ratzinger quando ainda era um professor universitário – aparece o conceito de criação, tão próprio do cristianismo. O mundo é positivo, é bom e é fruto do amor. É, então, bom viver nele. Portanto, o mundo tem uma direção e medida porque é fruto do Criador que se expressa nele. E, se é fruto do amor, está transpassado pelo amor e a liberdade de acolher esse mesmo amor (cf. J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo). E de onde concluímos isso? Simplesmente de que Deus é como se manifesta. Deus não pode se manifestar como não é. Em termos filosóficos, estamos falando de ‘analogia entis’ e, mais em particular, da ‘analogia amoris’.

O que é a fé, então?  Não é simplesmente um saber, mas uma forma de se situar frente ao mundo, frente a toda a realidade, é a orientação de toda a vida humana, o que é somente possível em virtude de um sentido que a sustente. E esse sentido “não se pode construir, somente se pode receber” (ibid). Isso é a fé: aceitar o dom da revelação que fundamenta gratuitamente nossa vida, é o compreender a existência como resposta ao Logos que tudo sustenta. É aceitá-Lo e n’Ele confiar. E isso é totalmente contrário ao “irracional”. Efetivamente, é aproximar-se ao fundamento, ao sentido da vida e esse fundamento não pode ser – para o homem – outra coisa que não a verdade. Um sentido que não fosse verdade seria um sem-sentido. A fé, no fundo, nos faz compreender autenticamente o mundo, isto é, entendê-lo e fazê-lo próprio.

Mas esse compreender – e isso é essencial para o conceito de fé – é fundamentalmente um encontro com Deus-amor, é uma relação pessoal, é uma aceitação livre de Deus como Deus, é deixar a Deus ser Deus. A fé sustenta não somente que Deus é Logos, mas que, além disso, esse Logos, essa Razão, é liberdade, é amor criador e pessoa. E, portanto, “o supremo não é o mais geral, mas o particular; por isso a fé cristã é, antes de tudo, opção pelo homem como ser irredutível que aponta à infinitude” (ibid). Deus não só conhece, mas que também ama, é criador porque é amor. É um Deus para o qual nada é demasiadamente pequeno e, portanto, um Deus que entra em relação com todo ser humano de modo pessoal.

Neste ponto as posições se aproximam. Para Flores d’Arcais, o ser humano, ainda na opção “desde o desencanto” – que é a opção do pensamento ateu (em contraposição à opção ‘desde a fé’) (*) – deve igualmente escolher entre uma vida com a primazia do EU – solitário – ou do TU – do encontro que soma – para orientar toda sua vida, ainda que seja sua efêmera vida. E aí, no amor ao próximo, há a possibilidade do encontro entre crentes e ateus. E isso é o que permite, desde a Antiguidade, a convivência pacífica na mesma ‘polis’ entre os que pensam diferente.

O diálogo não pode seguir além de duas horas e meia que já dura, mesmo ainda tendo deixado muitos temas e perguntas sem tratamento e, mais ainda, havendo deixado muitas questões colocadas no meio do debate que suscitaram novas perguntas e dão incentivos para pensar e aprofundar nas próprias convicções. Com que gosto haveríamos seguido escutando – ou lendo – este diálogo elevado! De qualquer maneira, o livro ainda nos agrega dois textos complementares ao debate e em torno dos mesmos temas. Um, do Cardeal Ratzinger, intitulado “A pretensão da verdade colocada em dúvida”. E outro, de Paolo Flores d’Arcais, chamado “Ateísmo e verdade”. Como se pode apreciar a partir destes títulos, o tema Deus é, no fundo, um tema sobre a verdade e, finalmente, um tema religioso, mas, ao mesmo tempo, metafísico. E religioso porque metafísico.

Em síntese, um interessante livro sobre um tema extremamente atual que mostra, uma vez mais, o amor à verdade de nosso Santo Padre Bento XVI, sua confiança no diálogo com o outro que pensa diferente e, também, seu respeito pelas opiniões contrárias; assim como sua amplíssima cultura e profundidade para tratar temas atuais. Por outro lado, Paolo Flores d’Arcais deixa uma grata impressão de homem inteligente, aberto e que advoga, de maneira muito aguda, as características e perguntas do ateísmo contemporâneo. Um livro que ajuda a pensar e a pensar também a própria fé, porque “todo o que crê, pensa; pensa crendo e crê pensando (…). Porque se o que se crê não se pensa, a fé é nula” (Sto Agostinho, “De praedestinatione sanctorum” 2, 5 em ‘Fides et Ratio’ 79).

(*) Para Flores d’Arcais a postura atéia considera que “tudo se joga aqui, em nossa existência, finita e incerta”, isto é, ser ateu consiste em ser o homem do desencanto e do finito. (N. T.)

“A Europa na crise das culturas” – por Joseph Ratzinger

Tradução: Wagner Marchiori
Original: ZENIT (em castelhano)
Grifos e destaques do tradutor

A EUROPA NA CRISE DAS CULTURAS

Pronunciada pelo Cardeal Ratzinger no Mosteiro de Subíaco em 01 de abril de 2005.

Vivemos em um momento de grandes perigos e de grandes oportunidades para o homem e para o mundo; um momento que é também de grande responsabilidade para todos nós. Durante o século passado as possibilidades do homem e seu domínio sobre a matéria aumentaram de forma verdadeiramente impensável. No entanto, seu poder de dispor do mundo permitiu que sua capacidade de destruição alcançasse dimensões que, às vezes, nos horrorizam. Por isso, é espontâneo pensar na ameaça do terrorismo, esta nova guerra sem confins e sem fronteiras. O temor de que o Terror possa se apoderar de armas nucleares ou biológicas não é infundado e permitiu que, dentro dos Estados de direito, se acudisse a sistemas de segurança semelhantes aos que antes existiam somente nas ditaduras; mas, de todo modo, permanece a sensação de que todas estas precauções podem ser insuficientes, pois não é possível e nem desejável um controle global. Menos visíveis, mas nem por isso menos inquietantes, são as possibilidades que o homem adquiriu de manipular a si próprio. Ele (o Homem) mediu as profundidades do ser, decifrou os componentes do ser humano e, agora, é capaz, por assim dizer, de construir por si mesmo o homem, que já não vem ao mundo como dom do Criador, mas como um produto de nosso atuar, produto que, portanto, pode inclusive ser selecionado segundo as exigências por nós mesmos definidas. Assim, já não brilha sobre o homem o esplendor de ser ‘imagem de Deus’, que é o que confere sua dignidade e inviolabilidade, mas somente o poder das capacidades humanas. Não é mais do que a ‘imagem do homem’, mas, de que homem?

A isso tudo se acrescenta os grandes problemas planetários: a desigualdade na repartição dos bens da terra; a pobreza crescente; o esgotamento da Terra e de seus recursos; a fome; as enfermidades que ameaçam o mundo todo e o choque de culturas. Tudo isso nos mostra que o aumento de nossas possibilidades não teve como correspondência um desenvolvimento equivalente de nossa energia moral. A força moral não cresceu na mesma medida que o desenvolvimento da ciência, mas antes, diminuiu, porque a mentalidade técnica encerra a moral no âmbito subjetivo e, pelo contrário, necessitamos de uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que estão sobre a existência de todos nós.

O verdadeiro e maior perigo deste momento está justamente neste desequilíbrio entre as possibilidades técnicas e a energia moral. A segurança que precisamos como pressuposto de nossa liberdade e dignidade não pode vir de sistemas técnicos de controle, mas que somente pode surgir da força moral do homem: aonde esta força faltar ou não for suficiente o poder que o homem tem se transformará cada vez mais em poder de destruição.

É certo que existe hoje um novo moralismo cujas palavras chaves são ‘justiça, paz, conservação da criação’, palavras que reclamam valores essenciais e necessários para nós. No entanto, tal moralismo resulta vago e cai, assim, quase que inevitavelmente, na esfera político-partidário. É sobretudo uma pretensão dirigida aos demais e não um dever de nossa vida cotidiana. De fato, o que significa justiça? Quem a define? O que pode produzir a paz? Vimos nas últimas décadas em nossas ruas e em nossas praças como um pacifismo pode se desviar em direção a um anarquismo destrutivo e ao terrorismo. O moralismo político dos anos 70, cujas raízes certamente não estão mortas, foi um moralismo com uma direção errada, pois estava privado de racionalidade serena e, em última instância, colocava a utopia política acima da dignidade do indivíduo, mostrando que podia chegar a desprezar o homem em nome de grandes objetivos.

O moralismo político, tal como o vivemos e ainda hoje estamos vivendo, não só não abre caminho a uma regeneração, mas que a bloqueia. E o mesmo se pode dizer de um cristianismo e de uma teologia que reduzem o cerne da mensagem de Jesus – o “Reino de Deus” – aos “valores do Reino”, identificando esses valores com as grandes palavras-chave do moralismo político, e proclamando-as, ao mesmo tempo, como síntese das religiões. Logo, esquece-se, assim, de Deus, apesar de ser Ele o sujeito e a causa do Reino de Deus. Em seu lugar ficam grandes palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de abuso.

Este breve olhar sobre a situação do mundo nos leva a refletir sobre a realidade atual do cristianismo e, portanto, sobre as bases da Europa; essa Europa que antes, poderíamos dizer, foi um continente cristão, mas que foi, também, o ponto de partida dessa nova racionalidade científica que nos possibilitou grandes possibilidades e, ao mesmo tempo, grandes ameaças. Certamente o cristianismo não surgiu na Europa e, portanto, não pode ser classificado como religião européia ou a religião do âmbito cultural europeu. Mas, historicamente foi na Europa que recebeu sua ‘marca’ cultural e intelectual mais eficaz e, por isso, fica unido de maneira especial à Europa. Por outro lado, é igualmente certo que foi na Europa, desde os tempos do Renascimento e de maneira mais plena desde os tempos da ‘ilustração’ (1), que se desenvolveu essa racionalidade científica que não somente levou a uma unidade geográfica do mundo na época dos descobrimentos (ao encontro dos continentes e das culturas), mas que, agora, muito mais profundamente, graças à cultura técnica possibilitada pela ciência, imprime seu selo a todo o mundo, ou ainda, em certo sentido o uniformiza.

(1) Considera-se nessa tradução os termos Ilustração/Ilustrada e Iluminismo/Iluminista como conceitos equivalentes (Nota do Tradutor)

E atrás dessas pegadas desta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, de uma maneira desconhecida antes pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, seja negando-O totalmente, seja julgando que Sua existência não é demonstrável (é incerta) e, portanto, pertencente ao âmbito das decisões subjetivas, algo, no mínimo, irrelevante para a vida pública. Esta racionalidade puramente funcional, por assim dizer, resultou numa desordem da consciência moral também nova para as culturas que até então existiram, pois considera que racional é só aquilo que se pode provar com experimentos. Dado que a moral pertence a uma esfera totalmente diferente desaparece como categoria e tem que ser identificada de outro modo, pois há que se admitir que a moral é necessária. Em um mundo baseado no cálculo, é o cálculo das conseqüências que determina o que se deve considerar como moral ou não moral. E assim a categoria de bem, como foi exposta claramente por Kant, desaparece. Nada em si é bom ou mal, tudo depende das conseqüências que uma ação permite prever.

Se o cristianismo, por um lado, encontrou sua forma mais eficaz na Europa, é necessário, por outro lado, dizer que também na Europa se desenvolveu uma cultura que constitui a contradição absoluta mais radical não só do cristianismo, mas, também, das tradições religiosas e morais da humanidade. Por isso, compreende-se que a Europa está experimentando uma autêntica “prova de tensão”; por isso se entende também a radicalidade das tensões que nosso continente deve enfrentar. Mas, daqui emerge ainda, e sobretudo, a responsabilidade que nós, os europeus, devemos assumir neste momento histórico: no debate sobre a definição da Europa, sobre sua forma política, não se está apenas em jogo uma batalha nostálgica de “retaguarda” da história, mas, antes, uma grande responsabilidade para a humanidade atual.

Olhemos com mais precisão esta contraposição entre duas culturas que marcaram a Europa. No debate sobre o preâmbulo da Constituição Européia tal contraposição se mostrou em dois pontos controversos: a questão da referência a Deus na Constituição e a menção das raízes cristãs da Europa. Dado que no artigo 52 das Constituição se garantiu os direitos institucionais das Igrejas, podemos, diz-se, estar tranqüilos. Mas, isto significa que as igrejas, na vida da Europa, encontram lugar no âmbito do compromisso político, enquanto que, nos fundamentos da Europa não há espaço para as pegadas de seu conteúdo.

As razões que se oferecem no debate público para esta conclusão NÃO são superficiais e é evidente que mais que esclarecer as verdadeiras motivações, as escondem. A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa fere os sentimentos de muitos não cristãos que vivem nela é pouco convincente, já que se trata, além de tudo, de um fato histórico que ninguém pode seriamente negar.

Naturalmente esta menção histórica contém uma referência ao presente, pois, ao mencionar as raízes, indicam-se as fontes originais de orientação moral, isto é, um fator de identidade da Europa. A quem, então, se ofenderia? A identidade de quem ficaria ameaçada? Os muçulmanos, a quem freqüentemente se alude nessa questão, não se sentem ameaçados por nossos fundamentos morais cristãos, mas, sim, pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega seus próprios fundamentos. E tampouco se ofendem nossos concidadãos judeus pela referência às raízes cristãs da Europa já que essas raízes remontam ao monte Sinai: levam a marca da voz que se fez ouvir sobre o monte de Deus e nos unem nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo legou à humanidade. O mesmo se pode dizer da referência a Deus: a menção a Deus não ofende os pertencentes a outras religiões. O que lhes ofende é, antes, a tentativa de construir a comunidade humana sem Deus.

As motivações dessa negativa à referência a Deus e às raízes cristãs NÃO são mais profundas do que permitem intuir os argumentos que nos oferecem. Pressupõem a idéia de que SOMENTE A CULTURA ILUSTRADA RADICAL, que alcançou seu pleno desenvolvimento em nosso tempo, poderia constituir a identidade européia. Junto a ela podem, portanto, coexistir diferentes culturas religiosas com seus respectivos direitos, DESDE QUE E NA MEDIDA EM QUE RESPEITEM OS CRITÉRIOS DA CULTURA ILUSTRADA E A ELA SE SUBORDINEM.

Esta cultura ilustrada fica substancialmente definida pelos direitos “de liberdade”. Baseia-se na liberdade como um valor fundamental que tudo mede: a liberdade de escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a liberdade para expressar a própria opinião, com a condição de que não se coloque em dúvida este cânone; o ordenamento democrático do Estado, isto é, o controle parlamentar sobre os organismos estatais; a formação livre de partidos; a independência da Justiça; e, finalmente, a tutela dos direitos do homem e a proibição de discriminações. Neste caso, o cânone está ainda em formação, já que também há direitos humanos que são contrastantes, como, por exemplo, no caso do conflito entre o desejo de liberdade da mulher e o direito de viver do que está para nascer.

O conceito de discriminação se amplia cada vez mais e, assim, a proibição da discriminação pode se transformar progressivamente em uma limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa. Logo não se poderá afirmar que a HOMOSSEXUALIDADE, como ensina a Igreja Católica, constitui uma desordem objetiva na estruturação da existência humana. E o fato de que a Igreja está convencida de que não tem o direito de conferir a ORDENAÇÃO SACERDOTAL ÀS MULHERES é considerado, por alguns, como algo inconciliável com o espírito da Constituição européia.

É evidente que este cânone da cultura ilustrada, que longe está de ser algo definitivo, contêm valores importantes dos quais, precisamente como cristãos, não queremos e nem podemos renunciar; no entanto, é evidente também que a concepção mal definida (ou não definida) de liberdade, que está na base dessa cultura, inevitavelmente implica em contradições; e é evidente que precisamente por causa de seu uso (um uso que parece radical) implica em limitações da liberdade que há apenas uma geração eram inimagináveis. Uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está revelando cada vez mais hostil para a liberdade.

Sem dúvida, devemos voltar a falar do problema das contradições internas da forma atual da cultura ilustrada. Mas, antes, temos de terminar de descrevê-la. Pertence à sua natureza, enquanto cultura de uma razão que tem finalmente consciência completa de si mesma, o fato de assomar-se de uma ambição universal e conceber-se como completa em si mesma, sem necessidade de ser complementada por outros fatores culturais.

Vêem-se claramente ambas características quando se propõe o tema de quem pode chegar a ser membro da Comunidade européia e, sobretudo, no debate sobre o ingresso da Turquia nela. Trata-se de um Estado, ou talvez melhor, de um âmbito cultural, que não tem raízes cristãs, mas que recebeu a influência da cultura islâmica. Atartuk pretendeu transformar a Turquia em um Estado laicista, tentando implantar o laicismo – amadurecido no mundo cristão da Europa – em um terreno muçulmano.

Podemos nos perguntar se isso é possível: segundo a tese da cultura ilustrada e laicista da Europa, somente as normas e conteúdos da cultura ilustrada podem determinar a identidade da Europa e, conseqüentemente, todo Estado que faz seus esses critérios pode pertencer à Europa. Não importa, ao final, a trama de raízes no qual se implanta esta cultura da liberdade e da democracia. E precisamente por isso se afirma que as raízes não podem entrar na definição dos fundamentos da Europa, tratando-se de raízes mortas que não formam parte da identidade atual. Como conseqüência, esta nova identidade, determinada exclusivamente pela cultura ilustrada, comporta também que Deus não tem nada a ver com a vida pública e com os fundamentos do Estado.

Deste modo, em certo sentido, tudo se torna lógico e plausível. De fato, poderíamos desejar algo melhor que o respeito à democracia aos direitos humanos? Mas, de qualquer maneira, é inevitável a pergunta se esta cultura ilustrada laicista é realmente a cultura, descoberta finalmente como universal, capaz de dar uma razão comum a todos os homens; uma cultura à qual se deveria ter – qualquer um e em qualquer lugar – acesso, ainda que sobre um húmus histórica e culturalmente diferenciado. E nos perguntamos, por fim, se é verdadeiramente completa em si mesma, de modo que não tem necessidade alguma de raízes fora de si.

SIGNIFICADO E LIMITES DA CULTURAL RACIONALISTA ATUAL

Encaremos, agora, estas duas últimas perguntas. À primeira, isto é, à pergunta de se se alcançou a filosofia universalmente válida e totalmente científica na qual se expressaria a razão comum de todos os homens, é necessário responder que, indubitavelmente, alcançou-se conquistas importantes que podem pretender ter uma validade geral: a conquista de que a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas que somente pode ser acolhida na liberdade; o respeito dos direitos fundamentais do homem e iguais para todos; a separação dos poderes e o controle do poder.

De todo modo, não se pode pensar que estes valores fundamentais, reconhecidos por nós como geralmente válidos, possam se realizar do mesmo modo em qualquer contexto histórico. Não se dão em todas as sociedades os mesmos pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos como acontece no Ocidente; de modo que a total neutralidade religiosa do Estado, na maior parte dos contextos históricos, pode se considerar como uma mera ilusão.

E assim chegamos aos problemas mencionados na segunda pergunta. Mas esclareçamos antes a questão se as filosofias modernas ilustradas, consideradas em seu conjunto, podem ser consideradas como a última palavra da razão comum de todos os homens. Estas filosofias se caracterizam pelo fato de serem positivistas e, portanto, anti-metafísicas, de maneira que, ao final, Deus não pode ter nelas nenhum lugar. Estão baseadas em uma auto-limitação da razão positiva que é adequada no âmbito técnico, mas que quando se generaliza provoca uma mutilação do homem. Como conseqüência, o homem deixa de admitir toda instância moral fora de seus cálculos e – como já vimos – o conceito de liberdade, que num primeiro olhar poderia parecer estender-se de forma ilimitada, acaba levando à auto-destruição da liberdade.

Indubitavelmente as filosofias positivistas contêm elementos importantes de verdade. Porém, esses se baseiam em uma auto-limitação da razão, típica de uma situação cultural – a do Ocidente moderno – e, por isso, não podem ser a última palavra da razão. Ainda que pareçam totalmente racionais, não são a voz da razão mesma, pois também estão vinculadas culturalmente, ou seja, estão vinculadas à situação do Ocidente atual.

Por este motivo não são, absolutamente, as filosofias que, em algum momento, serão válidas em todo o mundo. Mas, sobretudo, deve-se dizer que esta filosofia ilustrada e sua respectiva cultura são incompletas. Corta conscientemente suas próprias raízes históricas privando-se, assim, das forças regeneradoras das quais ela própria surgiu – essa memória fundamental da humanidade sem a qual a razão perde sua orientação.

De fato, considera-se agora válido o princípio segundo o qual a capacidade do homem consiste em sua capacidade de ação. AQUILO QUE SE SABE FAZER, PODE-SE FAZER. Já não existe um “saber fazer” separado do “poder fazer”, porque atentaria contra a liberdade, que é o valor supremo. Mas, o homem sabe fazer muitas coisas e sabe fazer cada vez mais coisas; e se este “saber fazer” não encontra sua medida em uma norma moral, converte-se, como já podemos observar, em poder de destruição.

O homem sabe clonar homens e, por isso, o faz. O homem sabe usar homens como “armazém” de órgãos para outros homens e, por isso, o faz. E o faz porque parece ser exigência de sua liberdade. O homem sabe construir bombas atômicas e, por isso, as faz, estando pela mesma linha de princípios, também disposto a usá-las. No final, até o terrorismo se baseia nessa modalidade de “auto-autorização” do homem e não nos ensinamentos do Corão.

A radical separação da filosofia ilustrada de suas raízes acaba desprezando o próprio homem. O homem, no fundo, não tem nenhuma liberdade – dizem-nos os porta-vozes das ciências naturais – em total contradição com o ponto de partida de toda essa questão. Não se deve acreditar que é (o homem) algo diferente de todos os demais seres vivente e, portanto, também deveria ser tratado como eles – dizem-nos os porta-vozes mais avançados de uma filosofia definitivamente separada das raízes da memória histórica da humanidade.

Havíamos proposto duas perguntas: se a filosofia racionalista (positivista) é estritamente racional e, por conseguinte, universalmente válida, e se é completa. É auto-suficiente? Pode – ou inclusive deve – relegar suas raízes históricas no âmbito do passado e, portanto, no âmbito do que só pode ser válido subjetivamente? Devemos responde a ambas perguntas com um claro NÃO. Esta filosofia não expressa a razão completa do homem, mas, somente uma parte dela e, por causa desta mutilação da razão, não pode ser considerada racional. Logo, é também incompleta e somente pode “se curar” se restabelecer de novo o contato com suas raízes. Uma árvore sem raízes simplesmente seca…

Ao se afirmar isto não se nega tudo que há de positivo e importante nesta filosofia, mas que se afirma, sim, a sua necessidade de ser completada e sua profunda deficiência. E, deste, modo, voltamos a falar dos dois pontos controvertidos do preâmbulo da Constituição européia. O confinamento das raízes cristãs não se revela como a expressão de uma tolerância ‘superior’ que respeita por igual todas as culturas ao não privilegiar nenhuma, mas, antes, como a absolutização de um pensamento e de um estilo de vida que se contrapõe radicalmente às demais culturas históricas da humanidade.

A AUTÊNTICA CONTRAPOSIÇÃO QUE CARACTERIZA O MUNDO DE HOJE NÃO É A QUE SE PRODUZ ENTRE AS DIFERENTES CULTURAS RELIGIOSAS, MAS ENTRE A RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM DE DEUS, DAS RAÍZES DA VIDA, DE UM LADO; E, DE OUTRO LADO, AS GRANDES CULTURAS RELIGIOSAS. SE CHEGARMOS A UM CHOQUE DE CULTURAS, NÃO SERÁ PELO CHOQUE ENTRE AS GRANDES RELIGIÕES – que sempre lutaram uma contra a outra, mas que também sempre souberam conviver juntas – MAS, SIM, POR CAUSA DO CHOQUE ENTRE ESTA RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM E AS GRANDES CULTURAS HISTÓRICAS.

Deste modo, o rechaço à referência a Deus não é expressão de uma tolerância que quer proteger as religiões que não são teístas e a dignidade dos ateus e agnósticos, mas, antes, a expressão de uma consciência que quer ver Deus definitivamente cancelado da vida pública da humanidade, encerrado no âmbito subjetivo de culturas residuais do passado. O RELATIVISMO, que constitui o ponto de partida de tudo isto, converte-se em um dogmatismo que se crê na posse do conhecimento definitivo da razão e com o direito a considerar todo o resto unicamente como uma etapa da humanidade, no fundo já superada, e que pode ser relativizada adequadamente. Na realidade, tudo isso significa que necessitamos raízes para sobreviver e que não devemos perder a Deus de vista se queremos que a dignidade humana não desapareça.

O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ

Estou propondo um rechaço do Iluminismo e da Modernidade? Absolutamente não. O cristianismo, desde o princípio, compreendeu a si próprio como a religião do “logos”, como a religião segundo a razão. Não encontrou seus percussores entre as outras religiões, mas nessa ilustração filosófica que ‘limpou’ o caminho das tradições para sair em busca da verdade e do bem, do único Deus que está além de todos os deuses.

Enquanto religião dos perseguidos, enquanto religião universal, além dos diversos Estados e povos, negou ao Estado o direito de considerar a religião como parte do ordenamento estatal, postulando, assim, a liberdade da fé. Sempre definiu os homens – todos os homens sem distinção – como criaturas de Deus e imagem de Deus, proclamando como princípio, ainda que nos limites imprescindíveis dos ordenamentos sociais, a mesma dignidade a todos.

Neste sentido a Ilustração é de origem cristã e não é por acaso que tenha nascido única e exclusivamente no âmbito da fé cristã, ali onde o cristianismo – por desgraça – converteu-se tradição e religião do Estado. Ainda que a filosofia, enquanto busca de racionalidade – também de nossa fé – tenha sido sempre uma prerrogativa do cristianismo, havia-se domesticado em demasia a voz da razão.

Foi e é mérito da Ilustração haver recolocado em questão estes valores originais do cristianismo e o haver devolvido à razão sua própria voz. O Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, sublinhou novamente esta profunda correspondência entre cristianismo e Ilustração, buscando chegar a uma verdadeira conciliação entre a Igreja e a modernidade, que é o grande patrimônio que ambas as partes devem tutelar.

Ora bem, faz-se necessário que ambas partes reflitam sobre si mesmas e estejam dispostas a se corrigirem. O cristianismo deve se lembrar sempre de é a religião do “logos”. É fé no “Creatur Spiritus”, no Espírito criador, do Qual procede tudo o que existe. Esta deveria ser precisamente hoje sua força filosófica, pois o problema se funda SE O MUNDO VEM DO IRRACIONAL – e sua razão não é senão um subproduto, talvez até prejudicial, de seu desenvolvimento – OU SE O MUNDO PROVEM DA RAZÃO – e é, conseqüentemente, seu critério e sua meta.

A fé cristã se inclina por essa segunda tese, tendo, assim, desde o ponto de vista puramente filosófico, realmente ‘boas cartas para jogar’, apesar de que muitos hoje consideram somente a primeira tese como moderna e racional por antonomásia. No entanto, uma razão surgida do irracional – e que é, em última instância, ela própria irracional – não constitui uma solução para nossos problemas. Somente a razão criadora, e que se manifestou no Deus crucificado como Amor, pode verdadeiramente nos mostrar o caminho.

No diálogo tão necessário entre laicistas e católicos, os cristãos devem estar muito atentos para se manterem fiéis a esta linha de fundo: viver uma fé que provem do “logos”, da razão criadora, e que, portanto, está também aberta a tudo o que é verdadeiramente racional.

Ao chegar a esse momento queria, em minha qualidade de crente, fazer uma proposta aos laicistas. Na época da Ilustração se tentou entender e definir as normas morais essenciais dizendo-se que seriam válidas ‘ etsi Deus non daretur’, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição das confissões religiosas e na crise da imagem de Deus, tentaram-se manter os valores essenciais da moral por cima das contradições e buscar uma evidência que os fizessem independentes das múltiplas divisões e incertezas das diferentes filosofias e confissões. Deste modo, quiseram assegurar os fundamentos da convivência e, em geral, os fundamentos da humanidade. Naquele momento da história, pareceu que era possível, pois as grandes convicções de fundo surgidas no cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis. Mas agora já não é assim.

A busca de uma certeza tranqüilizadora, que ninguém pudesse contestar independentemente de todas as diferenças, falhou. Nem sequer o esforço, realmente grandioso, de Kant foi capaz de criar a necessária certeza compartilhada por todos. Kant negou que se pudesse conhecer a Deus no âmbito da razão pura, mas, ao mesmo tempo, colocou Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, não era possível, para ele, a ação moral.

A situação atual do mundo não nos leva a pensar que talvez tivessem razão de novo? Digo-o com outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de considerar as coisas humanas menosprezando completamente Deus nos leva cada vez mais ao abismo, ao encerramento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos Ilustrados e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não crêem. Deste modo, ninguém fica limitado em sua liberdade e nossa vida encontra um novo sustentáculo e um critério cuja necessidade é urgente.

O que mais necessitamos nesse momento da história são homens que, através de uma fé iluminada e vivida, façam que Deus seja crível nesse mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus e viviam de costas a Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade. Necessitamos de homens que tenham o olhar fixo em Deus, aprendendo n’Ele a verdadeira humanidade.

Necessitamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e a quem Deus abra o coração, de maneira que seu intelecto possa falar ao intelecto dos demais e seu coração possa abrir o coração dos demais.

Somente através de homens que tenham sido tocados por Deus é que Deus voltará entre os homens. Necessitamos de homens como Bento de Nursia, que em um tempo de dissipação e decadência, penetrou na solidão mais profunda conseguindo, depois de todas as purificações que sofreu, levantar-se até a Luz, regressar e fundar Montecasino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, reuniu as forças das quais se formou um mundo novo.

Deste modo, Bento, como Abraão, chegou a ser pai de muitos povos. As recomendações a seus monges apresentadas no final de sua “Regra” são indicações que nos mostram o caminho que conduz para o alto, a sair da crise e dos escombros. “Assim como há um mau zelo de amargura que separa de Deus e leva ao inferno, há, também, um zelo bom que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Pratiquem, pois, os monges este zelo com a mais ardente caridade, isto é, ‘adiantando-se para honrar uns aos outros’; tolerem com suma paciência suas debilidades, tanto corporais como morais […] pratiquem a caridade fraterna castamente; temam a Deus com amor; […] e absolutamente nada anteponham a Cristo, que nos leve a todos à vida eterna” (capítulo 72).

As palavras do cardeal Ratzinger

Às vezes eu me surpreendo com o que encontro na Montfort. Numa curta resposta a uma carta de um leitor, datada do dia 24 de setembro, o sr. Orlando Fedeli publica duas inverdades.

A primeira inverdade – e a mais gritante – está no próprio título da carta: Card. Ratzinger: “A Missa nova foi uma ruptura com a liturgia da Igreja”. A frase, citada entre aspas, indica que ela consiste em palavras literais do então Cardeal Ratzinger, porque é exatamente para isso que servem as aspas nas citações. No entanto, a citação do cardeal dada pela própria Montfort no corpo da resposta à carta não tem nada a ver com o que está no título:

“Fiquei estarrecido pela proibição do Missal antigo, pelo fato de que uma coisa como essa jamais se verificara na história da Liturgia.(…) A promulgação da proibição do Missal que se tinha desenvolvido no curso dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da Antiga Igreja, comportou uma ruptura na história da Liturgia”  (Joseph Ratzinger, A Minha Vida, p. 115, apud Antonio Socci, Il Quarto Segretto di Fatima, Rizzoli, Milano, 2006, p. 212, nota 361)

Em primeiro lugar, a frase colocada entre aspas não existe. Isso já basta para caracterizar a inverdade. Em segundo lugar – e muito mais importante -, a frase do título não apenas não é literal, como também deforma as palavras do card. Ratzinger. De acordo com a citação (a correta, que está no corpo da carta, e não a que está no título), para quem tem uma mínima noção de interpretação de texto e não esqueceu as aulas de análise sintática do colegial, o sujeito de “comportou uma ruptura na história da Liturgia” é “[a] promulgação da proibição do Missal [antigo]”, e não “a Missa Nova”! Após a própria Montfort já ter publicado um artigo no qual expunha detalhadamente as regras de citações, é de causar espanto que ela incorra nos mesmos erros que repudiou com tanta veemência outrora!

A “proibição do Missal” não é a mesma coisa que “[a] Missa Nova”, isto é evidente. Caberia perguntar à qual “promulgação da proibição” do missal antigo o então Card. Ratzinger está se referindo (já que tal proibição não consta na Missale Romanum), mas, independente disso, permanece cristalino que coisas distintas são distintas e, portanto, não podem ser indistintamente intercambiadas – muito menos numa citação de outra pessoa.

A segunda inverdade, mais sutil, refere-se a outra citação também falseada. Segundo Orlando Fedeli, “o Papa Bento XVI (…) considerava a Nova Liturgia como, em grande parte, a causadora da crise da Igreja”. A “Nova Liturgia” é, evidentemente, a Reforma Litúrgica. Só que a citação do então Cardeal, também publicada na Montfort, é a seguinte:

“Estou convencido que a crise eclesial em que nos encontramos hoje depende em grande parte do desmoronamento da liturgia, que por vezes vem concebida diretamente como se Deus não existisse – “etsi Deus non daretur” – como se nela não mais importasse se Deus existe, se nos fala e se nos ouve (…)”.

E o professor Orlando se esquece de que o Papa não chama e nem nunca chamou a Reforma Litúrgica de “desmoronamento da liturgia”. Quem deve dizer isso é o próprio sr. Fedeli. É universalmente reconhecido que existem abusos litúrgicos os mais diversos; e a Santa Sé, embora os tenha repetidas vezes condenado vigorosamente, nunca os atribuiu à Reforma da Liturgia em si.

Se o professor, portanto, afirma que o Papa considerava a Reforma Litúrgica como sendo uma causa da crise da Igreja, que apresente textos nos quais o Papa afirme que a Reforma Litúrgica é uma causa da crise da Igreja. Nada indica, no texto que foi citado, que o “desmoronamento da Liturgia” seja a mesma coisa que “a Reforma Litúrgica”. Trocando (mais uma vez) expressões que não são equivalentes, a Montfort apresenta inverdades aos seus leitores.

Se o cardeal Ratzinger disse o que o prof. Fedeli afirma ter dito, não o fez nos textos citados pela Montfort. A despeito de ser tentador, não importa perguntar se erros tão grosseiros são frutos de descuido, de cegueira ou de má fé; independente disso, o fato objetivo é que “argumentos” deste nível são indignos de qualquer debate que se pretenda minimamente honesto. Infelizmente, o resultado desta campanha que tenciona – per fas et per nefas – jogar lama na Liturgia atual da Igreja e num Concílio Ecumênico Legítimo é a confusão dos fiéis, na qual muitas almas são perdidas, e a solução da crise pela qual atravessa a Igreja de Cristo é postergada. É de se lamentar profundamente!

Herr Professor

Saiu no Le Monde (disponível para compra) e saiu uma tradução na mídia brasileira (só para assinantes), que eu recebi por email e reproduzo abaixo. A matéria é da autoria de Henri Tincq, que é um jornalista francês especialista em religião. Não o conhecia.

O google me mostrou outras coisas dele:

Henri Tincq’s Portrait of Josef Ratzinger (part I e part II), de 2005, em inglês.

Qui est Josef Ratzinger?, no Le Monde de abril de 2005, em francês.

Na minha opinião, o texto abaixo tem o seu valor principalmente pela – digamos – “consideração não-religiosa” da importância do papado de Bento XVI, bem como pela sóbria biografia do Santo Padre. E – eu não poderia deixar de salientar – pela citação a respeito da Liturgia, que é preciosa (grifos meus):

A liturgia não foi reformada, diz ele [o então padre Ratzinger], “para aumentar o número de pessoas que vão à missa”, mas sim para colocá-las “diante do gládio cortante da Palavra de Deus”. Ou seja, em outras palavras, a convicção teológica passa antes da conveniência pastoral. Mesmo que correndo riscos de passar por um nostálgico da antiga liturgia e por um aliado dos tradicionalistas, o papa jamais renegará este dogma.

A Igreja tem muito o que ensinar a todos os homens. Bom seria se o Papa fosse considerado (ao menos!) como um professor por aqueles que não professam a Fé Católica e Apostólica. Eis o sadio “diálogo com o mundo” que seria tão salutar!

* * *

Quando chamam o papa de “Herr Professor”

Henri Tincq

Este homem de 81 anos escreveu muitos livros, inclusive a respeito dele mesmo, e com pudor. Contudo, este autor prolífico, este universitário que dedicou cerca da metade da sua vida à sua função de docente antes de passar a ocupar os mais expostos entre os cargos da Igreja, permanece um enigma. Não se pode compreender sua visão trágica da história, seu combate contra o “relativismo” moral, sua fidelidade para com a antiga liturgia, sem antes reexaminar de perto o itinerário deste intelectual que revela ser muito mais atormentado do que sugerem as caricaturas que fazem dele.

Enquanto João Paulo 2º tinha a Polônia, Bento 16 tem a Bavária. Ou seja, dois pólos situados nessa Mitteleuropa – a “Europa do Meio”, cujas capitais são Cracóvia e Munique – onde os campanários dotados de um bulbo e a arte barroca esculpiram um catolicismo da Contra-Reforma; onde a liturgia, os ornamentos e os cânticos se fundem na paisagem rural, na vida familiar, nas festas, na cultura, no movimento das idéias e na música. Para Joseph Ratzinger, a Bavária não representa apenas um berço, como é também um santuário onde ele se alimenta da sua combinação de suavidade com perseverança. De um catolicismo bávaro encantado, ele herdou um gosto imoderado pela tradição, pela solenidade litúrgica, uma veneração pela música de Bach e de Mozart, além de um respeito repleto de melindres pelos ritos e os ofícios.

Da mesma forma que Karol Wojtyla, ele sofreu o ascendente de um pai militar que, ao sabor das transferências, deslocou sua família para cima e para baixo, entre o Inn e a Salzach – Joseph Ratzinger nasceu em 17 de abril de 1927 em Marktl-am-Inn -, nessa Baixa Bavária mais próxima da Áustria católica do que da Prússia protestante. Dentre os dois patriotismos bávaros do século 19 – o primeiro voltado para o Reich alemão, e o segundo, para o império austríaco, católico e grande admirador da França -, é neste último que se inscrevem os seus genes familiares. Contudo, o patriotismo da família Ratzinger é intenso, porém nem um pouco exaltado. Ao lado da sua irmã Maria e do seu irmão Georg, o futuro papa, que já se mostra tímido, solitário, introvertido, cresce em meio a um ambiente estudioso, pio, tranqüilo.

Esse mundo acaba desmoronando com a guerra. Tanto o alemão Ratzinger quanto o polonês Wojtyla passam a serem tragados muito cedo por dramas que iriam alimentar, neles, uma visão trágica da história, na qual estão vinculados a insensatez, a morte de Deus e o aniquilamento do homem. Na época, Joseph Ratzinger ainda é novo demais para assistir ao crescimento do nazismo, que ele descobre apenas através das explicações oferecidas pelo seu pai. “O 3º Reich o repugnava terrivelmente”, confessaria o futuro papa em sua autobiografia. Assim como todos os adolescentes, ele é alistado por meio da força para servir na Hitlerjugend (as Juventudes hitlerianas). Quando já era seminarista, ele foi mobilizado em Munique para participar da defesa antiaérea. Após ser internado num campo americano, ele foi libertado em junho de 1945.

Ratzinger nunca se mostrará muito loquaz em relação a este período. Em Auschwitz, em maio de 2006, Bento 16 chegará até mesmo a chocar a platéia no discurso em que ele apresenta sua análise a respeito do nazismo, o qual ele reduziu a um crime perpetrado “por um bando de criminosos”. Na opinião de Claude Dagens, um bispo e acadêmico, ele pertence “àquela geração de alemães que carregou nas costas todo o peso da culpabilidade”. Por serem raras, as suas declarações a respeito dessa questão são tanto mais valiosas. Em 2001, durante uma conferência na igreja Notre-Dame de Paris; e depois, em 6 de junho de 2004 em Caen (na Normandia), por ocasião do 60º aniversário do Desembarque dos Aliados, aquele que ainda não se tornou o cardeal Ratzinger identifica todas as barbáries – Auschwitz; o gulag; os genocídios no Camboja e em Ruanda – com ideologias fundamentadas na ruptura com Deus (“O inferno é viver na ausência de Deus”) e com a Razão, que se tornou cínica e enlouqueceu.

No seminário de Freysing, na Bavária, o jovem Ratzinger devora todos os livros, sejam eles de autoria de escritores contemporâneos alemães (Gertrud von Le Fort, Ernst Wiechert), ou estrangeiros (Dostoievski, Péguy, Claudel, Bernanos, Mounier, Mauriac). Ele descobre as idéias dos filósofos Heidegger e Jaspers, além de “testemunhas eminentes” como Thomas More, o cardeal Newman e Dietrich Bonhoeffer, que “fizeram prevalecer sua consciência acima do consenso geral”. Em teologia, ele lê Romano Guardini, Henri de Lubac e os mestres alemães: Luther (Martin Luther, 1483-1546, o pai do protestantismo), de quem ele conhece as idéias de cor e salteado e de quem ele admira o gênio espiritual, mais do que as realizações da Reforma; Rudolf Bultmann, o exegeta modernista, ou Karl Barth, o protestante que prega a primazia absoluta da palavra de Deus.

Contudo, nenhum destes, em sua opinião, é superior a Santo Agostinho (354-430). Uma alma atormentada, Agostinho carrega o peso do Mal e do pecado, os quais, segundo ele, são redimidos pela “graça”. Na qualidade de bispo, ele é uma testemunha da esperança cristã, num Império romano que está desmoronando. Ele encarnará a culpabilidade ocidental, até o advento de Luther e do jansenismo (nos séculos 17 e 18). Ou seja, uma visão do mundo insuperável no entender do jovem Ratzinger que, além da experiência da guerra, também preza em Agostinho a sua visão de um mundo “niilista”. Portanto, é a este Pai da Igreja que ele dedica a sua tese de doutorando em teologia (1953). Além disso, será por ocasião de um congresso “agostiniano” que ele virá pela primeira vez a Paris, em 1954.

Ratzinger não é um filósofo nem um moralista, diferentemente de João Paulo 2º, cujos estudos haviam sido impregnados pela fenomenologia (Max Scheler, Husserl), e que freqüentava os filósofos franceses Ricoeur e Levinas. Ratzinger é em primeiro lugar um teólogo, convencido de que a sua disciplina está acima da filosofia. As suas categorias se alimentam das obras dos Pais da Igreja (Agostinho, Gregório o Grande, Santo Máximo o Confessor), os quais ele costuma citar até hoje em abundância, e principalmente desde que se tornou papa, em seus escritos. A sua teologia ambiciona ser uma meditação, a partir das santas Escrituras, a respeito da história humana. Este posicionamento comportava certos riscos para a sua carreira universitária, diante dos seus “mestres” alemães ainda marcados pelas categorias petrificadas do néo-tomismo (movimento iniciado no final do século19, baseado numa revisão das idéias de São Tomás de Aquino -1225-1274) e da escolástica. Num primeiro momento, a sua tese sobre a teologia da história na obra de São Boaventura (1221-1274) não obtém uma nota suficiente.

Mas ele poderá saborear sua revanche durante o concílio Vaticano II (1962-1965) durante o qual, aos 35 anos, quando ainda era um jovem universitário em Bonn, ele atuaria como especialista a serviço do cardeal Joseph Frings, uma proeminente figura reformadora do concílio. “Ratzinger vivenciou este evento sem euforia”, comenta Claude Dagens. “Ele é antes um intelectual que não se deixar envolver pela exaltação do momento”. Na presença de sumidades tais como Karl Rahner, Hans Küng, Yves Congar ou Henri de Lubac, ele enxerga no concílio uma chance para o renascimento do pensamento teológico, por meio da reavaliação das santas Escrituras, dos escritos dos Pais da Igreja e de um diálogo com a cultura contemporânea. Em sua opinião, o ponto fundamental é a Revelação de Deus atualizada na história dos homens. Conforme ele havia desejado, o concílio aprova por meio de uma votação um documento de grande importância, a respeito das “duas fontes” da Revelação, as Escrituras compensando o peso da tradição.

Ratzinger chegou ao concílio como um inovador. Mas, dele saiu com a imagem de um conservador. Há mais de quarenta anos que corre esta lenda. O mal-entendido provém da reforma da liturgia, que foi implementada de uma maneira que ele considerava excessivamente radical. Logo, no discurso que ele pronuncia no Katholikentag de Bamberg, em 1966, o professor Ratzinger condena o arcaísmo litúrgico e a modernização desmedida. A liturgia não foi reformada, diz ele, “para aumentar o número de pessoas que vão à missa”, mas sim para colocá-las “diante do gládio cortante da Palavra de Deus”. Ou seja, em outras palavras, a convicção teológica passa antes da conveniência pastoral. Mesmo que correndo riscos de passar por um nostálgico da antiga liturgia e por um aliado dos tradicionalistas, o papa jamais renegará este dogma.

O mal-entendido agrava-se com a revolta estudantil. No final da década, Ratzinger passa a ensinar na universidade de Tübingen. Em 1969, ele enfrenta anfiteatros agitados. Na França, muitos são aqueles que não conseguem compreender – num país onde ela não é ensinada na universidade pública – que a teologia possa se transformar num campo de batalha. Em Tübingen, ela torna-se uma “ideologia revolucionária” no quadro da qual a referência ao Cristo se torna secundária, analisa Ratzinger, ferido por esta “traição”, e que prefere então voltar a ensinar na Bavária (em Ratisbon), rompendo também com a revista progressista “Concilium” para fundar uma outra publicação, a “Communio”, em parceria com Hans Urs von Balthazar. No decorrer dos desentendimentos que o cardeal vivenciará mais tarde, em Roma, com Hans Küng, o seu antigo colega em Tübingen, ou ainda com os teólogos da libertação, esta experiência terá uma influência decisiva.

Este alemão é acima de tudo um filho da Aufklärung, uma corrente de pensamento identificada com as Luzes, da qual ele não é tão radicalmente crítico quanto dizem. Enquanto, para ele, a Fé, sem a Razão, está ameaçada pelo “iluminismo”, a Razão, sem a Fé, está ameaçada pelo “positivismo”, que não atribui à ciência outra lei senão aquela do seu próprio desenvolvimento, sem qualquer preocupação com a ética. Mas, no entender de Ratzinger, as Luzes também criaram as condições políticas necessárias para a liberdade dos crentes. No diálogo que ele manteve, em janeiro de 2004, na Academia da Bavária, com o filósofo agnóstico Jürgen Habermas, o cardeal Ratzinger sublinhou a legitimidade da razão secular, quando o seu interlocutor admitiu que a razão moderna não pode prescindir do “potencial de sentido” da religião, sobre o qual está fundamentada a substância ética dos Estados de direito e das sociedades democráticas.

A grande obsessão do professor Ratzinger é mesmo aquela da “crise da Verdade”. Na Sorbonne, em 1999, ele declarou: “A Verdade, que era uma promessa confiável, atualmente não passa de uma expressão cultural da sensibilidade religiosa geral”. Será o caso de fazer deste papa o artesão de uma reafirmação identitária do catolicismo? A articulação entre a Revelação bíblica e a Razão grega é determinante em todos os seus ensinamentos. É nela que se inspira a encíclica “Fides et Ratio”, de João Paulo 2º (1998), e ainda o famoso discurso de Bento 16 em Ratisbon (2006), que será relembrado apenas por conta da citação histórica que inclui uma crítica contundente do Islã. Este papa emite um alerta ao homem contra toda subserviência da fé à razão de Estado, e contra toda subserviência da razão de Estado a uma fé. Neste sentido, ele está decidido a premunir o mundo contra toda forma de extremismo.

Tradução: Jean-Yves de Neufville