[Nota: este artigo desapareceu do site do Centro de Informática onde eu o tinha hospedado originalmente (provavelmente porque já concluí o curso há dois anos…), e é precioso demais para ficar indisponível. Consegui recuperá-lo e publico-o aqui, para honrar a memória do Santo Padre Pio XII que, no próximo mês, completa 50 anos de falecimento.]
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Artigo do rabino David G. Dalin (1)
A polêmica em torno de Pio XII e seu suposto silêncio diante do Holocausto, é bem posterior à Segunda Guerra mundial. Começa em 1963 com a peça O vigário, do dramaturgo alemão Rolf Hochhut. Naquela década, muito se escreveu a favor e contra Pio XII. Nestes últimos quatro anos, o debate ressurge. Um documento do Vaticano é lançado, e vários livros são publicados. O mais polêmico é o do inglês John Cornwell, intitulado O papa de Hitler. No início deste ano, o cineasta grego Costa-Gavras lança na Europa uma adaptação de O vigário, o filme Amen, com ampla repercussão.
O rabino David G. Dalin é norte-americano e historiador, especialista nas relações cristão-judaicas. Neste artigo publicado originalmente na revista The Weekly Standard(2) , em 26 de fevereiro de 2001, ele faz um resumo da questão, comentando as obras recentes. De um ponto de vista judaico, Dalin defende a credibilidade do testemunho dos sobreviventes do Holocausto e de seus contemporâneos, e reprova a manipulação da tragédia do seu povo com fins ideológicos(3) .
Mesmo antes da morte de Pio XII em 1958, a acusação de que o seu pontificado teve simpatia pelos nazistas circulou pela Europa, alimentada pela propaganda comunista anti-ocidental. Depois do falecimento do papa, as críticas cessaram por alguns anos sob o rio de homenagens que lhe foram prestadas por judeus e não-judeus; e ressurgem com a estréia da peça O vigário, do autor alemão de esquerda Rolf Hochhuth (antigo membro da Juventude Hitlerista). O vigário era uma ficção altamente polêmica, onde um Pio XII absorvido pelas finanças do Vaticano se tornou indiferente à destruição dos judeus da Europa. A peça de Hochhuth de sete horas teve, entretanto, grande repercussão, desencadeando uma polêmica que durou até o fim dos anos 60. E agora, trinta anos depois, a polêmica ressurge de repente por razões não evidentes.
Na realidade, “ressurgir” é pouco para descrever a verdadeira torrente. Nos últimos dezoito meses, nove livros que tratam de Pio XII apareceram: O papa de Hitler de John Cornwell(4) , Pio XII e a Segunda Guerra Mundial de Pierre Blet(5), Papal sin de Garry Wills, Pope Pius XII de Margherita Marchione, Hitler, the war and the pope de Ronald J. Rychlak’s, The Catholic Chuch and the Holocaust 1930-1965 de Michael Phayer, Under his very windows de Susan Zuccotti, The defamation of Pius XII de Ralph McInerny’s, e o mais recente, A espada de Constantino de James Carroll(6).
Os ataques contra o papa
Quatro destes autores, Blet, Marchione, Rychlad e McInerny, defendem o papa. Wills e Carroll tratam o papa num contexto maior de um ataque contra o catolicismo. O quadro tem um certo equilíbrio. Mas, de fato, ler os nove livros é concluir que os defensores de Pio XII são mais esclarecidos, sobretudo Hitler, the war and the pope de Rychlak, o melhor e mais cuidadoso entre eles, obra elegante ao mesmo tempo séria e erudita. Todavia, são os livros que atacam o papa que chamam mais a atenção, especialmente O papa de Hitler, uma obra bastante difundida afirmando que Pio XII foi “o eclesiástico mais perigoso da história moderna”, sem o qual “Hitler jamais teria atingido seu objetivo”. O “silêncio” do papa penetrou na mídia norte-americana: “Pio XII ter colocado os interesses do catolicismo acima da consciência católica, é um dos pontos mais sombrios da história moderna da Igreja”, afirma o New York Times, de passagem, numa resenha de A espada de Constantino de Carroll no mês passado.
Curiosamente, quase todos os que seguem esta linha – dos ex-seminaristas John Cornwell e Garry Wills ao ex-padre James Carroll – são católicos afastados ou revoltados. Para os líderes judeus da geração anterior, a campanha contra Pio XII teria provocado um choque. Durante a guerra e depois, muitos judeus bem conhecidos manifestaram publicamente sua gratidão pelo papa: Albert Einstein, Golda Meir, Moshe Sharett, rabino Isaac Herzog e muitos outros. O diplomata Pinchas Lapide (que foi cônsul de Israel em Milão e entrevistou italianos sobreviventes do Holocausto), em seu livro Três papas e os judeus de 1967, afirmou que Pio XII “salvou pelo menos 700.000 judeus da morte certa pelas mãos nazistas, e provavelmente 860.000”.
Não vamos dizer que Eugênio Pacelli – poderoso eclesiástico que foi núncio apostólico na Baviera e na Alemanha de 1917 a 1929, depois secretário de Estado do Vaticano de 1930 a 1939, até se tornar papa seis meses antes da Segunda Guerra – era tão amigo dos judeus como João Paulo II. Nem vamos dizer que ele foi bem sucedido ao defender os judeus. Apesar de seus esforços desesperados em manter a paz, a guerra veio; apesar de seus protestos contra as atrocidades germânicas, o horror do Holocausto aconteceu. Mesmo sem ser exaustivo, um estudo atencioso mostra que a Igreja Católica perdeu oportunidades de influenciar o curso dos acontecimentos, não deu a devida importância às intenções dos nazistas, e alguns de seus membros estavam contaminados por um anti-semitismo que veio encorajar, e em alguns casos lamentáveis, sustentar a ideologia nazista.
Todavia, fazer de Pio XII o alvo de nossa indignação moral contra o nazismo, e colocar o catolicismo entre as instituições que perderam sua legitimidade por causa dos horrores do nazismo, é um fiasco na compreensão da história.
O debate sobre o futuro do papado
Quase nenhum dos livros recentes sobre Pio XII e o Holocausto trata de fato destes dois temas. O objeto deles é o debate católico interno sobre os rumos da Igreja hoje, onde o Holocausto é simplesmente o maior argumento disponível dos católicos liberais contra os mais tradicionais.
O debate teológico sobre o futuro do papado evidentemente é algo que os não-católicos não deveriam se envolver muito. No entanto, quaisquer que sejam seus sentimentos em relação à Igreja Católica, os judeus têm o dever de reprovar qualquer tentativa de usurpar o Holocausto e de utilizá-lo com propósitos partidários, principalmente quando estas tentativas desacreditam o testemunho dos sobreviventes e estendem a pessoas que não merecem a condenação devida a Hitler e aos nazistas.
Os recentes ataques contra Pio XII têm uma técnica simples. Basta considerar da pior maneira possível e com rigor excessivo, o que for a seu favor; e considerar da melhor maneira possível e sem rigor, o que for contra.
Por exemplo, quando Cornwell decide provar em O papa de Hitler que o papa era anti-semita (uma acusação raramente feita pelos oponentes do pontífice), ele faz muitas referências ao “culto judaico” de uma carta de 1917, como se para um prelado católico italiano nascido em 1876 a palavra “culto” tivesse a mesma conotação no inglês hoje. Não é por acaso se Cornwell fala do culto católico da Assunção e no culto da Virgem Maria. Uma das melhores partes de Hitler, the war and the pope é o epílogo em que Rychlak demole este tipo de argumento em O papa de Hitler.
O mesmo modelo é usado por Susan Zuccotti em Under his very windows. Por exemplo: há um testemunho de um sacerdote bom samaritano sobre o bispo de Assis, Giuseppe Nicolini, com uma carta em punho, afirmando que o papa lhe escreveu pedindo para ajudar os judeus durante a deportação pelos alemães em 1943. Como o bispo não leu a carta, Zuccotti imagina que o sacerdote ficou decepcionado – e o seu testemunho é rejeitado.
Veja-se a abordagem cética dos fatos e o modo de tratá-los, por exemplo, numa entrevista do diplomata alemão Eitel F. Molhausen dizendo ter enviado informações ao embaixador nazista no Vaticano, Ernst von Weizsäcker; admitindo que Weizsäcker as transmitiu às autoridades eclesiástica. Zuccotti toma isto como prova inquestionável de que o papa tinha conhecimento direto da deportação alemã. Uma interpretação razoável sugere que o papa tinha ouvido rumores e que interpelou os ocupantes nazistas. A princesa Enza Pignatelli Aragona relata que quando ela deu ao papa a notícia da deportação, na manhã de 16 de outubro de 1943, as primeiras palavras dele foram: “mas os alemães prometeram não tocar nos judeus”!
Com este tipo de argumentação, autores recentes não têm dificuldades em chegar a duas conclusões pré-estabelecidas. A primeira é que a Igreja Católica deve carregar a culpa do Holocausto, pois segundo Zuccotti, “Pio XII é o mais culpado”. A segunda é que a culpa do catolicismo se deve a aspectos da Igreja que João Paulo II representa hoje. De fato, na conclusão de O papa de Hitler e ao longo de Papal sin e A espada de Constantino, o paralelismo é claro: o conservadorismo de João Paulo II é da mesma natureza do suposto anti-semitismo de Pio XII; e a posição do Vaticano sobre a autoridade papal está na mesma linha da cumplicidade no extermínio dos judeus pelos nazistas. Como não reagir diante destas comparações monstruosas e de um tal abuso do holocausto?
É verdade que durante a polêmica em torno a O vigário e ao longo das longas audiências para sua canonização (já em andamento desde 1965), o papa teve detratores judeus. Em 1964, por exemplo, Guenter Lewy publicou The Catholic Church and nazi Germany, e, em 1966, Saul Friedländer publicou Pio XII and the Third Reich. Ambas os livros sustentam que o anticomunismo do papa o levou a apoiar Hitler para fazer barreira contra os russos.
Como surgiram informações mais precisas sobre as atrocidades soviéticas a partir de 1989, a obsessão contra o stalinismo é mais compreensível hoje do que em meados dos anos 60. Entretanto, as fontes mostram que o papa classificava as ameaças por ordem. Em 1942, por exemplo, ele disse a um visitante: “o perigo comunista existe, mas atualmente o perigo nazista é mais sério”. Ele interveio junto aos bispos americanos para assegurar as linhas de crédito aos soviéticos, e recusou explicitamente abençoar a invasão da Rússia pelos nazistas. Contudo, a acusação de anticomunismo resiste. Em A espada de Constantino, James Carroll ataca a concordata(7) assinada por Hitler perguntando: “é concebível que Pacelli tivesse negociado um tal acordo com os bolchevistas em Moscou?” Sem saber que, em meados dos anos 20, Pacelli tentou exatamente isto.
Neste caso, o papa teve seus defensores entre os judeus. Além de Três papas e os judeus de Lapide, há um opúsculo da Liga Anti-Difamação, em 1963, A question of judgment de Joseph Lichten, e uma crítica bastante severa a Friedländer feita por Livia Rotkirchen, especialista em história da comunidade judaica eslovaca no Yad Vashem(8) . Jeno Levai, grande historiador húngaro, ficou tão revoltado com as acusações do silêncio papal que escreveu Pio XII was not silent (publicado em inglês em 1968), com uma excelente introdução de Robert M. W. Kempner, procurador-chefe dos Estados Unidos no tribunal de Nuremberg.
O não-silêncio diante da tragédia judaica
Em resposta aos novos ataques contra o papa, muitos intelectuais judeus se manifestaram. Sir Martin Gilbert disse em entrevista que Pio XII não merece acusações mas agradecimentos. Michael Tagliacozzo, líder dos judeus romanos durante o Holocausto acrescenta: “eu tenho um dossier em Israel intitulado Calúnias contra Pio XII…sem ele, muitos dos nossos não estariam vivos”. Richard Breitman, o único historiador que teve acesso aos arquivos de espionagem dos Estados Unidos na Segunda Guerra, afirma haver documentos secretos provando que “Hitler desconfiava da Santa Sé por ela esconder judeus”.
De qualquer maneira, o livro de Lapide de 1967 continua sendo a obra mais influente dos judeus sobre o assunto, e nestes trinta e quatro anos desde a sua publicação, muitas novas fontes se tornaram disponíveis nos arquivos do Vaticano e em outros lugares. Novos centros de história oral produziram uma quantidade impressionante de entrevistas com sobreviventes do Holocausto, capelães militares e civis católicos. Devido às acusações recentes, chegou a hora de novas defesas pois, apesar de alegações contrárias, a evidência histórica confirma que Pio XII não se calou e que quase ninguém na época imaginou o contrário.
Em janeiro de 1940, por exemplo, o papa deu instruções à Rádio Vaticano para revelar “as terríveis crueldades da tirania bárbara” que os nazistas infligiam aos judeus e católicos poloneses. Comentando a emissão uma semana depois, o Jewish Advocate de Boston louva a “denúncia franca das atrocidades germânicas na Polônia ocupada pelos nazistas, declarando serem uma afronta à consciência moral da humanidade”. O New York Times afirma em editorial: “Agora o Vaticano falou com uma autoridade que não pode ser posta em dúvida, e confirmou as piores notícias de terror que vêm da Polônia mergulhada nas trevas”. E na Inglaterra, o Manchester Guardian saudou a Rádio Vaticano como “a mais poderosa defensora da Polônia torturada”.
Uma leitura exaustiva e minuciosa das fontes mostra que Pio XII foi um crítico persistente do nazismo. Eis alguns pontos importantes de sua oposição antes da guerra:
* Dos seus quarenta e quatro discursos como núncio apostólico na Alemanha, entre 1917 e 1929, quarenta denunciam algum aspecto da ideologia nazista emergente.
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* Em março de 1935, ele escreveu uma carta aberta ao bispo de Colônia chamando os nazistas de “falsos profetas, orgulhosos como Lúcifer”.
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* No mesmo ano, diante de uma enorme multidão de peregrinos em Lourdes, ele ataca as ideologias “possuídas pela superstição de raça e de sangue”. Dois anos depois, na Notre Dame em Paris, ele classifica a Alemanha como “nação nobre e poderosa que maus dirigentes desviam para a ideologia da raça”.
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* Os nazistas eram “diabólicos”, confidenciou a amigos. E à Irmã Pascoalina, sua secretária de muitos anos, diz que Hitler “é completamente obsecado. Tudo o que não lhe for útil, ele destrói;…este homem é capaz de pisotear cadáveres”. Ao encontrar o herói antinazista Dietrich von Hildebrand, ele afirma que “não pode haver reconciliação possível” entre o cristianismo e o racismo nazista, pois são como “fogo e água”.
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* Um ano depois da nomeação de Pacelli como secretário de Estado em 1930, a Rádio Vaticano começa a funcionar sob sua direção. O jornal do Vaticano L’Osservatore Romano, em situação precária, foi melhorando graças a Pacelli e fez uma ampla cobertura da Noite dos Cristais em 1938(9) . A Rádio foi muito ouvida com emissões controvertidas, como o pedindo aos ouvintes de orações pelos judeus perseguidos na Alemanha depois das leis de Nuremberg de 1935.
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* Foi quando Pacelli era o principal conselheiro de seu antecessor, que Pio XI fez a famoso pronunciamento a um grupo de peregrinos belgas em 1938: “o anti-semitismo é inadmissível; espiritualmente somos todos semitas”. E foi Pacelli que fez o rascunho da encíclica de seu antecessor Mit brennender Sorge (Com Ardente Preocupação), a mais veemente condenação da Alemanha nazista feita pela Santa Sé. A imprensa nazista, ao longo dos anos 30, o satiriza com virulência como o cardeal “pró-judeu” de Pio XI, pois ele enviou à Alemanha mais de cinquenta e cinco protestos como secretário de Estado do Vaticano.
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Ações de Pio XII
Tratamos agora de importantes ações de Pio XII durante a guerra:
* Sua primeira encíclica Summi pontificatus, publicada em 1939 na urgência de suplicar pela paz, é de certo modo uma declaração de que o papel do papa não é culpar uma ou outra das partes em conflito, mas de interceder junto a ambas. Entretanto, ele cita explicitamente São Paulo – “não há gentio nem judeu” – usando o termo “judeu” precisamente num contexto de rejeição da ideologia racial. O New York Times saudou a encíclica com manchete de primeira página, em 28 de outubro de 1939: “Papa condena os ditadores, os que violam os tratados e o racismo”. Os aviões aliados lançaram milhares de cópias da encíclica no solo alemão para despertar o sentimento antinazista.
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* Em 1939 e 1940, o papa atua como intermediário secreto entre os alemães que conspiravam contra Hitler e os britânicos. Ele corre risco igualmente avisando os aliados que a Alemanha estava prestes a invadir a Holanda, a Bélgica e a França.
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* Em março de 1940, o papa recebe Joachim von Ribbentrop, ministro do exterior alemão e a única alta autoridade nazista que se sujeita a visitar o Vaticano. O que os alemães pensavam da posição do papa ao menos está claro, pois Ribbentrop critica o papa por se colocar do lado dos aliados. Ao que Pio XII responde com uma longa lista de atrocidades germânicas. Em sua edição de 14 de março, O New York Times informa que o papa “falou com veemência diante de Herr Ribbentrop,…defendendo os judeus alemães e poloneses”.
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* Em 1942, quando os bispos franceses publicaram cartas pastorais atacando as deportações, o papa envia o seu núncio apostólico para protestar junto ao governo de Vichy(10) contra “as prisões desumanas e deportações dos judeus da zona ocupada francesa para a Silésia e para partes da Rússia.” A Rádio Vaticano comentou as cartas dos bispos durante seis dias, num tempo em que ouvir esta Rádio na Alemanha ou na Polônia era crime passível de pena de morte. Em 6 de agosto de 1942, o New York Times destaca: “Comenta-se que o papa intercede pelos judeus da França destinados à deportação.” Três semanas depois, o Times retoma: “Vichy prende os judeus; o papa é ignorado”. Em retaliação, no outono de 1942, o escritório de Goebbels distribui dez milhões de exemplares de um panfleto descrevendo Pio XII como “papa pró-judeu” e citando explicitamente sua intervenção na França.
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* No verão de 1944, depois da libertação de Roma e antes do final da guerra, ele disse a um grupo de judeus que veio lhe agradecer pela proteção recebida: “por século, os judeus foram maltratados e desprezados. É chegada a hora de que eles sejam tratados com justiça e humanidade. Deus quer e a Igreja quer. São Paulo nos diz que os judeus são nossos irmãos. Que eles sejam igualmente nossos amigos”.
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Como estes e centenas de outros exemplos são denegridos um por um nos livros que atacam Pio XII, o leitor perde de vista o seu conjunto, que não deixou ninguém em dúvida sobre a posição do papa, muito menos os nazistas.
Um exame mais detalhado revela o tipo de procedimento. Autores como Cornwell e Zuccotti vêem a mensagem de Natal do papa em 1941 como débil e obscura, mas para os seus contemporâneos ela foi clara e incisiva. No dia seguinte, o New York Times afirma em editorial: “a voz de Pio XII é a única voz no silêncio e nas trevas que cobrem a Europa neste Natal…Clamando por uma ‘verdadeira nova ordem’ baseada na ‘liberdade, justiça e amor’, …o papa se opõe totalmente ao hitlerismo”.
Na mensagem de Natal do ano seguinte ele expressa sua preocupação “pelas centenas de milhares de pessoas que, sem culpa nenhuma e muitas vezes só por motivo de nacionalidade ou raça, são destinadas à morte ou extinção progressiva”. A mensagem foi amplamente entendida como uma condenação pública do extermínio dos judeus pelos nazistas. De fato, os próprios nazistas entenderam assim, como consta num comunicado interno deles: “Seu discurso é um longo ataque a tudo o que nós defendemos…Ele fala claramente em favor dos judeus…Ele acusa o povo alemão de injustiça para com os judeus, e se faz porta-voz dos judeus criminosos de guerra”.
Esta preocupação dos nazistas poderia, além do mais, ter consequências dramáticas. Havia vários precedentes para que o papa temesse uma invasão. Em 1809, Pio VII teve que se entregar às tropas de Napoleão; Pio IX teve que fugir de Roma depois do assassinato de seu chanceler; e Leão XIII foi levado a exílio temporário no final do século 19.
Pio XII, por sua vez, preferia “ser deportado a um campo de concentração que contrariar sua consciência”, relata o chanceler de Mussolini. Hitler falou abertamente em invadir o Vaticano e “enfiar no saco essa cambada de putos desordeiros,(11)” e o papa sabia dos vários planos dos nazistas para prendê-lo. Ernst von Weizsäcker(12) escreveu que diversas vezes advertiu as autoridades do Vaticano sobre o risco de provocar Berlin. O embaixador nazista na Itália, Rudolf Rahn, descreve um desses planos de Hitler e os esforços dos diplomatas alemães para dissuadi-lo. O general Carlo Wolf afirma ter recebido ordens de Hitler em 1943 para “ocupar o Vaticano e a Cidade do Vaticano o mais rápido possível, assegurar os arquivos e tesouros artísticos, que tinham um valor inestimável, e transferir o papa e a cúria sob sua guarda, para que eles não caíssem nas mãos dos Aliados e exercessem influência política”. No início de dezembro de 1943, Wolff conseguiu convencer Hilter a voltar atrás.
E se ele tivesse sido mais explícito
Ao pensar na atitudes que Pio XII poderia ter tomado, muitos (e eu me incluo) gostariam que houvesse excomunhões. Os nazistas católicos de batismo incorriam em pena automática de excomunhão por diversos motivos, começando por não frequentar a missa até homicídios não confessados e repudiar publicamente o cristianismo. Hitler não se considerava mais católico, como mostram seus escritos e conversar. E bem antes de chegar ao poder, considerava-se mesmo um anticatólico. Mas uma declaração papal de excomunhão talvez tivesse feito bem.
E mesmo assim, talvez não. Don Luigi Sturzo, fundador do Movimento Democrata Cristão na Itália durante a guerra, observa que nas últimas vezes que “foi declarada uma excomunhão de um chefe de Estado”, nem a rainha Elizabeth I nem Napoleão mudaram de política. Há razões para acreditar, segundo Margherita Marchione, que provocações “teriam resultado em retaliação violenta, como a morte de muito mais judeus, especialmente os que estavam sob a proteção da Igreja, e na intensificação da perseguição contra os católicos”.
Sobreviventes do Holocausto como Marcus Melchior, rabino-chefe da Dinamarca, argumenta que “se o papa tivesse falado explicitamente, Hitler provavelmente teria massacrado mais do que seis milhões de judeus e cem milhões de católicos, se ele tivesse poder suficiente”. Quando um trecho do livro de Guenter Lewy foi publicado numa revista em 1964, Robert M. W. Kempner escreveu à seção dos leitores evocando sua experiência no tribunal de Nuremberg: “qualquer propaganda da Igreja Católica contra Hitler e o Terceiro Reich teria sido não só um puro ‘suicídio’, …mas também teria provocado a execução de ainda mais judeus e sacerdotes católicos.”
Trata-se de uma especulação muito difícil. Uma carta pastoral dos bispos holandeses condenando “o tratamento injusto e sem misericórdia reservado aos judeus” foi lida nos templos católicos da Holanda em julho de 1942. Esta carta bem-intencionada, que dizem ter sido inspirada por Pio XII, foi contraproducente. Como observa Pinchas Lapide: “a conclusão mais alarmante e desoladora é que na Holanda, onde o clero católico protestou com mais força, veemência e insistência contra a perseguição dos judeus – mais do que a hierarquia nos outros países ocupados pelos nazistas – mais judeus foram levados aos campos de extermínio: 110.000 ou 79 por cento do total.”
O bispo de Luxemburgo, Jean Bernard, prisioneiro em Dachau de 1941 a 1942, notificou o Vaticano que “cada vez que havia protestos, as condições dos prisioneiros pioravam imediatamente”. No final de 1942, o arcebispo de Cracóvia, Sapieha, e dois outros bispos poloneses que conheciam a brutalidade das represálias nazistas, pedem ao papa que não publique suas cartas sobre a situação na Polônia. Mesmo Susan Zuccotti admite que, no caso dos judeus de Roma, o papa “certamente agiu em função dos judeus escondidos e dos católicos que lhes protegiam”.
Os judeus da Itália
Pode-se perguntar se existe algo pior do que o assassinato em massa de seis milhões de judeus. A resposta é o massacre de centenas de milhares a mais. E foi para salvar estes que o Vaticano trabalhou. O destino dos judeus italianos se tornou o ponto principal dos críticos do papa. O fracasso do catolicismo em evitar a tragédia em sua própria casa, demonstraria a hipocrisia papal de querer ter autoridade moral hoje. Observe-se o título do livro de Zuccotti: Bem debaixo de sua janela(13). Mas o fato é que, enquanto 80 por cento dos judeus europeus pereceram durante a Segunda Guerra, 80 por cento dos judeus italianos foram salvos.
Nos meses em que Roma esteve sob ocupação alemã, Pio XII instruiu o clero italiano a salvar vidas por todos os meios. (Há ainda uma fonte que esquecemos de mencionar, as memórias do monsenhor J. Patrick Carroll-Abbing But for the Grace of God, que trabalhou sob ordens do papa para salvar pessoas.) No início de outubro de 1943, o papa pediu às igrejas e conventos espalhados pela Itália para abrigarem os judeus. Apesar de Mussolini e dos fascistas cederem às exigências de deportação vindas de Hitler, muitos católicos italianos desafiaram as ordens germânicas.
Em Roma, 155 conventos e mosteiros abrigaram cerca de cinco mil judeus. Pelo menos três mil se refugiaram na residência papal de verão de Castel Gandolfo. Sessenta judeus viveram por nove meses na Universidade Gregoriana, e muitos foram escondidos na dispensa do Pontifício Instituto Bíblico. Centenas se refugiaram no Vaticano mesmo. Seguindo as instruções do papa, sacerdotes, monges, freiras, cardeais e bispos italianos salvaram milhares de vidas. O cardeal Boetto, de Gênova, salvou pelo menos oitocentos. O bispo de Assis escondeu trezentos judeus por mais de dois anos. O bispo de Campagna e dois parentes seus salvaram 961 no Fiume.
O cardeal Pietro Palazzini, então vice-reitor do Seminário Romano, escondeu Michael Tagliacozzo e outros judeus italianos no seminário (propriedade do Vaticano) por muitos meses em 1943 e 1944. Em 1985, o Yad Vashem (memorial do Holocausto em Israel) homenageou o cardeal como justo entre as nações. Acolhendo a homenagem, Palazzini disse que “o mérito é todo de Pio XII, que nos mandou fazer todo o possível para salvar os judeus da perseguição”. Muito leigos ajudaram igualmente e sempre atribuíram a idéia ao papa.
Novamente o testemunho mais eloquente é dos próprios nazistas. Documentos fascistas publicados em 1998 (e resumidos por Marchione em Pope Pius XII) falam de um complô germânico chamado “Rabat-Fohn” a ser executado em janeiro de 1944. O plano era tomar São Pedro com oito divisões de cavalaria da SS disfarçados de italianos e “massacrar Pio XII e o Vaticano inteiro”. A razão é claramente expressa: “o protesto do papa em favor do judeus”.
Um opositor das idéias de Hitler
A Europa inteira está cheia desses testemunhos. É plausível argumentar que a Igreja Católica poderia ter feito mais. Há fatos irrefutáveis: Hitler bem que chegou ao poder, a Segunda Guerra Mundial aconteceu mesmo, e seis milhões de judeus morreram mesmo. Mas para início de conversa é preciso saber que as pessoas daquela época, nazistas e judeus igualmente, compreendiam que o papa era o opositor da ideologia nazista mais proeminente do mundo:
* Desde dezembro de 1940, em artigo no Time Magazine, Albert Einstein prestou homenagem ao papa: “Somente a Igreja enfrenta a campanha de Hitler para suprimir a verdade. Eu nunca tive nenhum interesse especial pela Igreja antes, mas agora eu tenho grande estima e admiração porque só ela teve a coragem e a persistência de lutar pela verdade intelectual e pela liberdade moral. Eu tenho que confessar: o que eu antes desprezava, eu louvo imensamente”.
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* Em 1943, Chaim Weizmann, que se tornaria o primeiro presidente de Israel, escreveu que “a Santa Sé está prestando uma ajuda inestimável onde é possível, a fim de melhorar a sorte dos meus correligionários perseguidos”.
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* Moshe Sharett, segundo primeiro-ministro de Israel, encontrou-se com o papa nos últimos dias da guerra: “disse a ele que minha primeira obrigação era agradecer ao papa e à Igreja Católica, em nome do povo judeu, por tudo o que fizeram em diversos países pela salvação dos judeus.
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* O rabino-chefe de Israel, Isaac Herzog, enviou uma mensagem em fevereiro de 1944 dizendo que “o povo de Israel nunca esquecera o que Sua Santidade e seus ilustres representantes, inspirados pelos princípios eternos da religião, que são os verdadeiros fundamentos da verdadeira civilização, estão fazendo pelos nossos irmãos e irmãs desafortunados no momento mais trágico da nossa história; o que é uma prova viva da Divina Providência neste mundo”.
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* Em 1945, Leon Kubowitzky, secretário geral do Congresso Judaico Mundial, agradeceu pessoalmente o papa pelas suas intervenções, e esta instituição doou $20.000 às obras de caridade do Vaticano “em reconhecimento pelo trabalho da Santa Sé na salvação de judeus das perseguições fascistas e nazistas.”
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* Em 1955, quando a Itália celebrou o décimo aniversário de sua libertação, a União da Comunidades Judaicas Italianas proclamou 17 de abril o “Dia da gratidão” pela ajuda do papa durante a guerra.
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* Em 26 de maio de 1955, a Orquestra Filarmônica de Israel se apresentou no Vaticano para executar a Sétima Sinfonia de Beethoven, expressando a eterna gratidão do Estado de Israel ao papa pela ajuda prestada ao povo judeu durante o Holocausto.
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Este último exemplo é bastante significativo. Por razões políticas, a filarmônica israelense nunca tocou música de Richard Wagner por causa de sua célebre reputação de “compositor de Hitler”, uma espécie santo padroeiro cultural do Terceiro Reich. Nos anos 50, centenas de milhares de israelenses eram sobreviventes do Holocausto e viam Wagner como um símbolo do regime nazista. É inconcebível o governo israelense ter pagado para a orquestra inteira ir a Roma homenagear o “Papa de Hitler”. Muito pelo contrário, o concerto sem precedentes da Filarmônica de Israel no Vaticano foi um gesto único de reconhecimento coletivo para com um grande amigo do povo judeu.
Não à usurpação do Holocausto
Centenas de outras homenagens poderiam ser citadas. Em sua conclusão, Susan Zuccotti as desqualifica, considerando como equivocados, mal-informados e deturpados os louvores que Pio XII recebeu dos líderes e intelectuais judeus, bem como as manifestações de gratidão de capelães judeus e sobreviventes do Holocausto, que testemunham pessoalmente a ajuda do Papa.
O que ela faz, atormenta. Negar a legitimidade da gratidão deles por Pio XII, equivale a negar a credibilidade do seu testemunho pessoal e do seu juízo sobre o Holocausto mesmo. Elio Toaff, judeu italiano que viveu o Holocausto e depois se tornou rabino-chefe de Roma, lembra: “nós tivemos a oportunidade de conhecer de perto a grande compaixão, bondade e magnanimidade do papa durante os anos infelizes de perseguição e terror, quando parecia que para nós não havia mais saída.”
Todavia Zuccotti não esta só. Há algo que perturba em quase todos os livros sobre Pio XII. Com exceção de Hitler, the war and the pope de Rychlak, nenhum dos livros recentes trata do Holocausto mesmo – de Hitler’s pope de Cornwell, um ataque odioso contra o papa, até The Defamation of Pius XII de McInerny, uma defesa acrítica. Todos utilizam os sofrimentos do povo judeu há cinquenta anos atrás para forçar mudanças na Igreja Católica hoje.
É um abuso do Holocausto que nós devemos condenar. Uma imagem verdadeira de Pio XII nos permitiria chegar à conclusão oposta à de Cornwell: Pio XII não foi o papa de Hitler; pelo contrário, foi a ajuda mais próxima que os judeus tiveram, o apoio papal no momento em mais necessitaram.
John S. Conway, a maior autoridade nos onze volumes das Atas e documentos da Santa Sé relativos à Segunda Guerra Mundial(14) , escreve na revista Yad Vashem Studies, em 1983: “um estudo profundo dos milhares de documentos publicados nestes volumes não sustenta a tese de que a autopreservação da Igreja guiou a ação dos diplomatas do Vaticano. Pelo contrário, pode-se ver um grupo de homens inteligentes e conscientes, buscando o caminho da paz e da justiça, num mundo de ‘guerra total’ onde estes ideais eram impiedosamente pisoteados.” Estes volumes negligenciados, resumidos no livro de Pierre Blet Pio XII e a Segunda Guerra Mundial, “vão revelar com mais clareza e convicção o quão profundamente Pio XII viveu a tragédia do povo judeu, e o quanto ele trabalhou duro e com afinco para ajudá-lo”, segundo as palavras de João Paulo II a um grupo de líderes judeus em Miami, em 1987.
O Talmud ensina que “quem salva uma vida, conta como se tivesse salvado o mundo todo”. Mais do que todos os líderes do século 20, Pio XII realizou este ensinamento, quando o destino dos judeus da Europa estava ameaçado. Nenhum outro papa foi tão homenageado pelos judeus, e eles não estavam enganados. Sua gratidão, como a de toda a geração de sobreviventes do Holocausto, testemunha que Pio XII foi um profundo e genuíno justo entre as nações.
David G. Dalin
A tradução do artigoo foi publicada na: “REB (Revista Eclesiástica Brasileira no. 247 (2002) pp 643-655”
R. Paiva, SJ
NOTAS
(1) Publicado na REB (Revista Eclesiástica Brasileira) no247 (2002) 643-655.
(2) Texto em inglês disponível em: http://www.stms.f2s.com/david_g_dalin.htm [e em http://www.columbia.edu/cu/augustine/arch/dalin.html]
(3) Introdução e tradução: Pe. Luís Corrêa Lima, S.J.
(4) Imago, 2000.
(5) São João do Estoril (Portugal), Principia, 2001.
(6) Manole, 2002.
(7) Acordo firmado em 1933 entre a Santa Sé e o Terceiro Reich, sobre as relações entre a Igreja Católica e o Estado na Alemanha, assinado pelos seus respectivos representantes, Eugênio Pacelli e Franz von Papen (nota do tradutor).
(8) Memorial do Holocausto em Jerusalém (nota do tradutor).
(9) Depredação anti-semita em massa ocorrida na Alemanha nos dias 7 e 8 de novembro, em que mais de mil sinagogas foram incendiadas, cerca de sete mil e quinhentas lojas atacadas e uns trinta mil judeus presos. O evento foi a maior tragédia infligida aos judeus alemães nos anos antes da guerra, e de certo modo, um prenúncio do pior que estava para acontecer (nota do tradutor).
(10) Cidade onde estava sediado o governo colaboracionista francês, dirigido pelo Marechal Pétain (nota do tradutor).
(11) No original inglês: “Pack up that whole whoring rabble” (nota do tradutor).
(12) Embaixador alemão junto à Santa Sé (nota do tradutor).
(13) No original: Under his very windows (nota do tradutor).
(14) Longa pesquisa e compilação dos Arquivos do Vaticano, feita por um grupo de historiadores jesuítas a pedido de Paulo VI. O primeiro volume foi publicado em 1965; e o último, no término dos trabalho, em 1981 (nota do tradutor).