Pela dignidade e autoridade confiada a meus ministros, retirei-os de qualquer sujeição aos poderes civis. A lei civil não tem poder legal para puni-los; somente o possui aquele que foi posto como senhor e ministro da lei divina.
[Santa Catarina de Sena, “O Diálogo”]
A Santa Inquisição foi instaurada por motivos vários, dentre os quais gostaria de mencionar um: para a punição dos maus religiosos que, por serem homens da Igreja, não podiam ser julgados senão por Ela. Quando na Idade Média os cátaros promoviam desordens e eram apanhados, as autoridades civis, ao verem a tonsura, ficavam “de mãos atadas” e não podiam levá-los aos tribunais civis, pois o distintivo de consagração à Igreja [no caso, a tonsura] concedia-lhes o privilégio do foro eclesiástico.
Assim, era natural que, quando do surgimento do catarismo, os criminosos apanhados que ostentassem sinais de pertencerem ao clero fossem entregues à Igreja Católica para que Ela os julgasse. A expressão “braço secular” designava os poderes civis que executavam as sentenças proferidas pelos tribunais eclesiásticos – aqueles apenas executavam a sentença que era proferida por estes. Como eu disse, há outros aspectos na Santa Inquisição; por enquanto, todavia, gostaria me dedicar à questão dos foros específicos para aqueles que eram membros do clero ou das ordens religiosas.
O Papa Pio IX condenou como um erro a seguinte proposição no Syllabus: “[o] foro eclesiástico para as coisas temporais dos clérigos, quer civis quer criminais, deve ser de todo suprimido, mesmo sem consultar-se a Sé Apostólica, e não obstante as suas reclamações”. Em outras palavras: a autoridade civil – como diz Santa Catarina de Sena – não tem poder para julgar e punir os ministros de Deus. Acredito que este possa até ser concedido pela Igreja, mas sempre como uma concessão, e não como um poder verdadeiro e próprio da autoridade civil.
Talvez uma comparação nos faça entender melhor. O princípio da subsidiariedade nos diz que as coisas devem ser tratadas pela menor instância responsável por elas; somente na medida em que estas instâncias se mostram incapazes de solucionar os problemas é que estes devem ser passados às instâncias superiores. Assim, por exemplo, os problemas internos de uma família se resolvem dentro da família, cabendo a intervenção estatal somente quando a família não é capaz – por qualquer motivo – de os resolver. Isto acontece porque a sociedade é uma instância superior à família (afinal, a sociedade civil é “composta” de pequenas sociedades familiares). Isto, no entanto, não acontece com a Igreja, porque o Estado não é uma instância superior à Igreja (como o é à Família) e, por conseguinte, não tem poder próprio de intervir diretamente nas questões eclesiásticas. A Igreja, como sociedade perfeita que é, tem poder de jurisdição para julgar os Seus membros, e este poder deve ser exercido primordial e preferencialmente por Ela própria. Eis, em linhas gerais, o que justifica a existência do foro eclesiástico (criminal inclusive) para o julgamento dos ministros de Deus.
A Igreja reserva este privilégios aos sacerdotes de Deus Altíssimo porque, pela dignidade intrínseca e ontológica que eles possuem – dignidade que os conforma a Jesus Cristo -, não convém que eles estejam sujeitos a uma autoridade inferior (a autoridade temporal). É degradante para a dignidade sacerdotal e injurioso à Igreja de Nosso Senhor quando um sacerdote é tratado pelos poderes civis como um criminoso comum. O poder temporal – como ensina a Igreja – existe para estar a Seu serviço: “As palavras do Evange[l]ho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual” (Papa Bonifácio VIII, Bula Unam Sanctam). Não existe autoridade civil com potestade para constranger a Igreja, nem poder temporal que possa de per si julgar e condenar os sacerdotes do Deus Altíssimo.
Sacerdotes são homens e estão – como todos – sujeitos a falhas, sem dúvida. Podem errar tanto em matéria doutrinal quanto civil ou criminal; em qualquer dos casos, no entanto, é a Igreja que detém verdadeira e propriamente o poder de jurisdição sobre eles. Afirmar a primazia da Igreja no julgamento dos Seus ministros não é de maneira alguma relativizar a gravidade das falhas dos sacerdotes ou fazer pouco caso da Justiça; ao contrário, é defender a dignidade intrínseca do sacerdócio e conferir aos ministro de Deus o tratamento que convém ao que eles são. Chesterton diz que um homem nunca age como um animal: ou age muito melhor do que um, quando se comporta como um homem, ou muito pior, quando, esquecendo-se daquilo que é, pratica atos que são próprios de animais irracionais. O mesmo vale para os sacerdotes: nunca agem como “homens comuns”. Se eles viverem realmente como sacerdotes, serão infinitamente superiores aos demais homens e, se esquecerem a sua dignidade e se comportarem como “qualquer um”, estarão se colocando profundamente abaixo deles. E o mesmo vale para os poderes civis: se estes, à revelia da Igreja, tratam os sacerdotes como se sacerdotes não fossem, estão a ofender o Deus Altíssimo, a zombar da dignidade sacerdotal, e a injuriar a Igreja de Deus.