A cidade está vazia e deserta porque é Natal. Passados mais de dois mil anos, a celebração do Nascimento de Cristo ainda impõe marcas profundas mesmo às feições de nossas sociedades dessacralizadas. O burburinho dos dias anteriores — os dias mais angustiantes do ano — arrefece, põe-se de lado e é substituído pelo barulho do interior dos lares, que contrasta com o deserto do exterior. O Natal é festa íntima, familiar, que se comemora com os consanguíneos (e, também, com os amigos mais próximos) em torno a uma mesa comum. A tradição se repete. Mas por quê?
Não é por acaso que o Natal é colocado no início do ano litúrgico; trata-se de acontecimento inaugural e não escatológico. É a ária que abre o espetáculo e não a apoteose. E, inserido no ritmo cíclico do temporal da Liturgia, repetindo-se ano após ano, assume os ares de um perpétuo recomeço, possibilitando a periódica experiência daquela excitação que precede as grandes aventuras.
Por que, afinal de contas, o que é o Natal? É o nascimento de Cristo. E a história nos dá conta de que, quando Cristo nasceu, tudo mudou e, ao mesmo tempo, não mudou nada.
Os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador; e, nos nossos presépios, nós até hoje representamos aqueles homens do campo que deixaram os seus rebanhos e saíram, em uma noite escura, em busca de um Recém-Nascido envolto em faixas. Encontraram o Menino e O adoraram; mas, embora a Bíblia não nos fale, é certo que, na noite seguinte, e ao longo de todas as noites seguintes, os mesmos pastores precisaram voltar aos mesmos campos para guardar os mesmos rebanhos. E os anjos não tornaram a aparecer.
Foi uma Noite única; mas o fulgor daquela noite, é certo, foi capaz de iluminar a vida inteira dos que A vivenciaram. É provável que, naqueles campos, anos depois, os velhos pastores conversassem ainda sobre aquela Noite, passado já tanto tempo!, em que os Céus se iluminaram para o nascimento de um Menino. É provável que então o gloria in excelsis não ressoasse mais por aquelas paragens; mas aquela pax prometida aos homens de boa vontade, esta é certo que ainda perdurava naquela terra, e os pastores a podiam ainda experimentar mesmo a tantos anos de distância.
Hoje a distância é ainda maior: mas a força do Natal atravessa os séculos e é sempre nova — como o Evangelho que ele inaugura. Ontem nós mais uma vez fomos à Missa; mais uma vez ouvimos o canto secular das Kalendas, mais uma vez escutamos o anúncio da grande alegria do nascimento do Salvador, que é Cristo Senhor. Mais uma vez nós paramos em frente ao Presépio, enfim completo, com o Deus-Menino envolto em faixas e repousando, sereno, sobre a manjedoura. Olhamos-Lhe como se O encontrássemos pela primeira vez na vida! E pedimos-Lhe paz para nós mesmos, para nossas famílias, para o mundo, para a Igreja: aquela paz anunciada pelos anjos no Natal primevo. E, ao mesmo tempo, pedimos a graça de trabalhar a nossa vontade, a fim de torná-la boa, para que possamos ser — um dia — contados entre os homens aos quais aquela paz foi prometida. E voltamos para casa.
O que importa perceber aqui é o seguinte: o Natal não tem o arroubo de um fim de mundo, de uma mudança radical de vida, da chegada a uma terra prometida onde tudo passa a ser diferente. Na verdade, o Natal mantém as coisas exatamente como estavam antes e é esta a sua força avassaladora. Na noite anterior, como na noite seguinte, os pastores estavam nos campos guardando os rebanhos. Os sábios do Oriente, que antes do Natal estavam viajando rumo a Belém, após o Natal estavam mais uma vez viajando, de volta para casa. Mesmo a Sagrada Família, que na véspera estava, de porta em porta, procurando abrigo para a noite, longe de casa, após o nascimento de Cristo estava também longe de casa, em terra estrangeira, no Egito, fugindo à sanha assassina de Herodes. O Natal não encerra ciclos. Ele irrompe em meio aos ciclos da vida, deixando-os intactos após si.
Intactos, mas não intocados. A vida segue após a ceia do Natal: as mesmas lutas, os mesmos problemas, os mesmos defeitos, tudo, tudo. Os mesmos rebanhos a pastorear por campos escuros. Mas fica algo de diferente justamente porque passou o Natal: mais uma vez nós nos encontramos com pessoas que nos são caras, mais uma vez nós nos permitimos esquecer os trabalhos e as dificuldades da vida — por uma noite que seja! — para simplesmente celebrar, mais uma vez nós trocamos votos de felicidades e expressamos os nossos sinceros desejos de que o futuro — o Ano-Novo que está às portas — seja melhor. E, por conta disso, os próximos dias serão iguais aos últimos, mas serão diferentes. Graças ao Natal. Graças ao Menino que hoje nos foi dado.