O Papa Francisco e o «Magistério das Entrevistas»

Curiosidades acerca da entrevista que o Papa Francisco concedeu ao fundador do La Repubblica: já no dia seguinte à publicação, o Andrea Tornielli manifestou dúvidas sobre a acurácia das palavras atribuídas ao Papa pelo Eugenio Scalfari.

As dúvidas não tinham nada a ver com os pontos mais “polêmicos” do texto (ou, melhor dizendo, os pontos em torno dos quais se concentrou a histeria dos inimigos da Igreja em geral), como o negócio de Deus não ser católico, o dever de se seguir a própria consciência ou a menção negativa ao «proselitismo». O ponto levantado pelo Tornielli (e que revela a sua extraordinária competência jornalística) era de uma desimportância excepcional: o Papa Francisco dissera no periódico que, antes de aceitar o Papado, perguntara aos cardeais se «poderia passar alguns minutos na sala contígua àquela com um balcão que dá para a praça».

Ora, o vaticanista observou que isso era impossível. Primeiro porque não existe nenhuma sala contígua ao balcão do anúncio do Habemus Papam e, segundo, porque mais de um cardeal eleitor já havia dito que o Papa aceitara imediatamente o pontificado ao ser eleito, sem se retirar para lugar algum. A inverossimilhança do relato do Scalfari, assim, ficava evidente.

O que fez a Santa Sé? Surpreendentemente, emitiu um comunicado dizendo que «Eugenio Scalfari não gravou a entrevista com o Papa Francisco nem tampouco fez anotações, por isso o texto [do La Repubblica] foi uma reconstrução posterior dos fatos» (!). Como é possível que um jornalista tarimbado vá para uma entrevista com um Papa sem gravá-la ou nem mesmo fazer anotações sobre ela é um mistério que paira muito acima do que a nossa vã perspicácia é capaz de perscrutar.

Mas o que nos interessa aqui é constatar isso que nós temos agora: uma espécie de “Magistério de segunda mão”. A reportagem do La Repubblica está no site do Vaticano, aparentemente em pé de igualdade com todos os outros pronunciamentos do Papa Francisco e dos seus predecessores. O que exatamente esta novidade inaudita significa?

Não se sabe. O Pe. Lombardi – no citado texto do Unisinos – dá uma dica:

Talvez o ponto mais perspicaz de todos veio do próprio Lombardi, que disse que estamos vendo a emergência de um gênero totalmente novo de discurso papal – informal, espontâneo e às vezes confiado a outros em termos da sua articulação final. Um novo gênero, sugeriu Lombardi, precisa de uma “nova hermenêutica”, em que não damos tanto valor às palavras individuais, mas sim ao sentido geral.

“Não é o Denzinger“, disse ele, referindo-se à famosa coleção alemã do ensino oficial da Igreja, “e não é o direito canônico”.

“O que o papa está fazendo é dando reflexões pastorais que não foram revisadas de antemão palavra por palavra por 20 teólogos, a fim de ser mais preciso sobre tudo”, disse Lombardi. “É preciso diferenciar de uma encíclica, por exemplo, ou de uma exortação apostólica pós-sinodal que são documentos magisteriais”.

Um discurso «informal, espontâneo e às vezes confiado a outros em termos da sua articulação final»! Como tratar essa nova modalidade de “Magistério”? A dificuldade já foi apontada por Sandro Magister. E ele parece já ter encontrado – ao menos em parte – a sua solução:

En el prólogo al primer tomo de su trilogía sobre Jesús, Joseph Ratzinger-Benedicto XVI había escrito:

“Este libro no es un acto magisterial, por eso cada uno es libre para contradecirme”.

El Papa Francisco no lo dice expresamente, pero se puede presumir que esta libertad es válida también respecto a él, pues adopta un formato expresivo típico de la controversia como es la entrevista.

O princípio é sem dúvidas válido. Documentos distintos obrigam em níveis diferentes. Não há que se inflar a infalibilidade pontifícia para abarcar qualquer coisa proferida pelo Vigário de Cristo. No entanto, o assunto há de ser bem entendido. A «infalibilidade» refere-se à obrigação de se aderir com Fé divina e católica a uma certa formulação dogmática proposta pelo Magistério da Igreja. Naquilo que não é propriamente «Magistério» – ou que só o é entre aspas – simplesmente não cabe falar em “infalibilidade”.

No entanto, permanece o dever de se acolher com submissão filial o que é falado por nossos superiores. Qualquer católico bem formado, mesmo leigo, é capaz de discorrer em público sobre assuntos relacionados à Fé sem incorrer em erro de Doutrina; ora, se é assim, por qual motivo deveríamos pensar que altos prelados (ou mesmo o Romano Pontífice!) estivessem sempre na iminência de cometer – e informalmente! – deslizes doutrinários de conseqüências funestas? Ninguém precisa ser «infalível» para falar informal e corretamente sobre a Fé Católica, e nem faz sentido algum viver à caça de supostos sentidos heréticos nos discursos de outrem sob a desculpa de que tais não são infalíveis e portanto não obrigam. Isto é simplesmente um nonsense.

Muito bebê já foi jogado fora junto com a água suja sob essa desculpa furada de que tal ou qual texto não é infalível; e neste sentido este texto do André Brandalise é bastante pertinente. Mais do que um reles dever legal, a submissão ao Romano Pontífice é um animus, uma certa disposição de benevolência e de abertura para com o Doce Cristo-na-Terra. O Papa é um Monarca a quem temos que obedecer, sem dúvidas, mas é também um Pai em quem devemos confiar e de quem devemos aprender. Esta dimensão do Papado não pode ficar obscurecida.

Voltando ao «Magistério das Entrevistas», arrisco-me a dar também a minha visão sobre a novidade: elas provavelmente não serão nunca compendiadas no Denzinger. Mas há sobre elas duas coisas que precisamos ter em mente. A primeira é que estamos ouvindo um católico sábio e experiente falar, e o esforço que devemos fazer diante de pessoas assim é o de compreendê-las, não o de procurar enquadrar excertos dos seus discursos em esquemas heterodoxos para as desacreditar. E a segunda é que existe uma «vontade» pontifícia manifesta mesmo informalmente, um certo direcionamento – mesmo tácito – que ele quer dar ao seu pontificado, e isso interessa também a nós. Pode ser que nos seja útil e proveitoso se o soubermos encarar na sua informalidade; e pode ser que estejamos desperdiçando graças para as nossas vidas por conta do hábito de colocar «cada frase ou cada anedota» do Sumo Pontífice sob um microscópio teológico para as analisar esmiuçadamente em todas em cada uma das suas possíveis implicações.

Papa Francisco põe a imprensa a serviço de Cristo

A carta que o Papa Francisco enviou recentemente ao Eugenio Scalfari já começa a dar frutos. Foi publicada na edição de hoje do La Repubblica (original aqui, em inglês aqui; em português só encontrei esta tradução do Fratres in Unum) uma entrevista «exclusiva» que o fundador do jornal realizou com o Vigário de Cristo.

Foi o próprio Papa quem o convidou: «mercoledì non posso, lunedì neppure, le andrebbe bene martedì?» “Sim”, respondeu o ateu, «va benissimo». E lá se foram os dois veneráveis anciãos conversar sobre a Fé e sobre os problemas do mundo atual.

Problemas cuja expressão máxima o Papa identifica, logo de saída, com a falta de transcendência do mundo moderno: «si può vivere schiacciati sul presente?» “É possível viver esmagado pelo presente”, sem passado e sem futuro? Aqui o «desemprego» da juventude é mais acídia do que questão trabalhista e, a «solidão» da velhice, mais desespero do que carência emocional. Uma vez que se elimina Deus do mundo, uma vez que o materialismo é erigido como norte da vida humana, os velhos estão encurralados diante de um abismo que conduz ao nada e os jovens não se sentem motivados a trilhar o caminho que conduz a este crepúsculo inglório que eles já hoje enxergam nos seus pais e avós. Os dois extremos são, assim, parte de um só e mesmo problema: se a vida caminha inexoravelmente para a velhice e esta não tem sentido, então o próprio «caminho» não tem sentido. A vida se transforma numa estrada estúpida que conduz a lugar nenhum: é natural que muitos não tenham portanto sequer vontade de a trilhar. Não têm as coisas que dão sentido à vida, «e il guaio è che non li cercano più». “E o problema é que sequer as procuram mais”, como disse o Papa Francisco.

Ele não quer fazer proselitismo: «[o] mundo é cruzado por vias que se aproximam e se separam, mas o importante é que elas levem ao Bem». Grifo: levem, verbo conjugado no subjuntivo, que expressa desejo, dever, e não levam, no presente do indicativo, como se se tratasse já de um fato consumado. No original italiano, «portino», para não deixar dúvidas. É óbvio que as vias não necessariamente conduzem, assim em ato, ao Bem; mas é importante que elas conduzam para Ele. A história de nossas vidas não necessariamente nos há de levar para Deus. Mas, se existe algum Fim Último na História, o que importa é que as nossas histórias concretas conduzam a Ele. É esta a missão da Igreja. É esta a contribuição concreta que Ela pode dar à triste situação poucas linhas atrás delineada.

Para explicá-lo melhor, o Papa parafraseia Sto. Tomás: “Cada um de nós tem uma visão do bem e do mal. Temos que encorajar as pessoas a caminhar em direção ao que elas consideram ser o Bem”. No original italiano: «Noi dobbiamo incitarlo a procedere verso quello che lui pensa sia il Bene». É o mesmíssimo ensinamento que o Aquinate expõe de maneira lapidar na Summa: «hay que decir sin reservas que toda voluntad que está en desacuerdo con la razón, sea ésta recta o errónea, siempre es mala» (I-IIae, q. 19, a. 5, resp.). E se é evidente que Santo Tomás não é um relativista, tampouco o é o Papa Francisco. Ele sabe muito bem que, embora nem sempre desculpe (cf. id. ibid., a.6), a consciência – mesmo errônea – sempre obriga; e portanto é mister incentivar a segui-la. Simplesmente não há outro caminho.

Porque o papel da Igreja obviamente não é obrigar as pessoas a agirem contra a própria consciência, e sim levá-las a uma verdadeira conversão, uma metanóia, uma “mudança de mente”, de consciência, a fim de que façam o que é certo não como uma imposição exterior, mas em harmoniosa obediência ao mais íntimo do seu ser. Para isso precisam encarar a Fé Católica não como um conjunto desconexo de normas e proibições, mas como um encontro com uma Pessoa: Jesus Cristo. E para isso é preciso à Igreja “ir ao encontro” delas, usando uma expressão cara ao Papa Francisco, a fim de que possa mostrar-lhes o Bem a que elas almejam. Para isso é preciso «conhecer um ao outro, ouvir um ao outro e melhorar o nosso conhecimento do mundo ao nosso redor», como ele falou ao Scalfari nesta entrevista, e como já o repetiu tantas outras vezes de outras formas ao longo do seu pontificado.

E a conversa prossegue: Igreja, santos, mística, graça. Alfineta o Sumo Pontífice: «Mesmo o senhor, sem o saber, poderia ser tocado pela graça». O ateu diz que não acredita em alma. «[M]as você tem uma», riposta com maestria o Vigário de Cristo. O ateu sente o chão faltar-lhe aos pés e corta a conversa: «Santidade, o senhor disse que não tem a intenção de tentar me converter e não acho que o senhor conseguiria». E o Papa: «Questo non si sa», “isto não se sabe”, não dá para saber.

O Papa Francisco então pergunta no que crê o velho ateu. Ele responde: «Acredito no Ser, que está no tecido do qual surgem as formas e o corpos». Insiste o Vigário de Cristo: «Mas você pode definir o que você chama de Ser?». E a resposta do Scalfari é digna de ser reproduzida na íntegra, em português e no original italiano, para que se tenha uma noção do quão confusa é a única cosmogonia a que foi capaz de chegar um intelectual ateu após longos 89 anos de vida:

Ser é uma fábrica de energia. Energia caótica, mas indestrutível e caos eterno. As formas emergem da energia quando ela atinge o ponto de explosão. As formas têm as suas próprias leis, os seus campos de magnetismo, os seus elementos químicos, que combinam aleatoriamente, evoluem e eventualmente são extintos, mas a sua energia não é destruída. O homem é provavelmente o único animal dotado de pensamento, ao menos, no nosso planeta e no sistema solar. Disse que ele é guiado por instintos e desejos, mas eu acrescentaria que ele também contém dentro de si uma ressonância, um eco, uma vocação de caos.

[L’Essere è un tessuto di energia. Energia caotica ma indistruttibile e in eterna caoticità. Da quell’energia emergono le forme quando l’energia arriva al punto di esplodere. Le forme hanno le loro leggi, i loro campi magnetici, i loro elementi chimici, che si combinano casualmente, evolvono, infine si spengono ma la loro energia non si distrugge. L’uomo è probabilmente il solo animale dotato di pensiero, almeno in questo nostro pianeta e sistema so-lare. Ho detto è animato da istinti e desideri ma aggiungo che contiene anche dentro di sé una risonanza, un’eco, una vocazione di caos.]

Aqui a entrevista praticamente termina. Diz o Papa, em tom condescendente: «Está certo. Não quero que você me faça um resumo de sua filosofia e o que você me disse é o suficiente». Um pouco antes das afabilidades finais, uma última coisa disse o Papa Francisco:

Demos um passo à frente em nosso diálogo. Observamos que na sociedade e no mundo em que vivemos o egoísmo tem aumentado mais do que o amor pelos outros, e que os homens de boa vontade precisarão trabalhar, cada qual com os seus pontos fortes e experiência, para garantir que o amor aos outros aumente até que seja igual e possivelmente exceda o amor por si mesmo.

Na redação que lhe conferiu o fundador do La Repubblica, este é o clímax da entrevista, o ponto de chegada ao qual ela conduz. E um jornal secular estampando na primeira capa uma reportagem onde se fala de deveres morais, de santos, de mística, de graça, e que termina conclamando as pessoas a se esforçarem por amar mais ao próximo do que a si próprias é uma vitória e tanto do Sumo Pontífice. Pela primeira vez em muito tempo, talvez a primeira vez desde que eu me entendo por gente, um Papa pautou o tom das reportagens sobre ele ao invés de ser pautado por elas. Bravo, bravissimo! Que Deus abençoe o Papa neste terreno pantanoso em que ele se move com tão assombrosa desenvoltura. Que os inimigos dele sejam confundidos e dispersados diante desta Rocha imponente contra a qual não prevalecerão as portas do Inferno. Que, olhando para ele, o mundo creia e se coloque aos pés do Crucificado. A fim de que (re)encontre o caminho. A fim de que seja salvo.

Outro Papa escreve a outro ateu

À semelhança do que o Papa Francisco fez recentemente, Bento XVI também escreveu uma carta a um ateu italiano. Piergiorgio Odifreddi é matemático e escreveu um livro – Caro Papa, ti scrivo – onde expõe as suas opiniões no formato de uma missiva ao Bispo de Roma que, hoje emérito, dignou-se dirigir-lhe uma resposta. A íntegra da carta assinada por Bento XVI tem 11 páginas, algumas das quais foram publicadas pelo La Repubblica. O Marcio Campos traduziu-lhe alguns trechos e os colocou no Tubo de Ensaio. Destaco somente um:

[S]e o senhor quer substituir Deus com “a Natureza”, fica uma questão: quem, ou o que é essa Natureza. O senhor não a define em nenhum ponto; ela aparece, então, como uma divindade irracional que não explica nada. Queria, então, acima de tudo deixar claro que na sua religião da Matemática ficam de fora três temas fundamentais da existência humana: a liberdade, o amor e o mal. Eu me surpreendo com o fato de o senhor, em uma única tacada, destruir a liberdade, que foi e é um valor fundamental da época moderna. O amor, em seu livro, não aparece; e mesmo sobre o mal não há nenhuma informação. Independentemente do que as neurociências digam ou deixem de dizer sobre a liberdade, no drama real de nossa história ela está presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece informação alguma sobre o mal. Uma religião que despreze essas perguntas fundamentais se esvazia.

E, como eu já tive a oportunidade de dizer outras vezes no Deus lo Vult! [p.ex. aqui], simplesmente dizer que não há causas ou atribuí-las a entes indefinidos (a “Natureza”, o “Acaso”, etc.) não é explicar rigorosamente nada. É na verdade o contrário mesmo de uma explicação: é um atestado de ignorância, é se esquivar a enfrentar as perguntas para as quais, por vias complementares, Filosofia e Religião sempre se empenharam em buscar respostas. Que certas pessoas imaginem poder calar dúvidas históricas do ser humano à força de repetir «não sei» é um evidente indício de decrepitude da razão, e não de florescimento intelectual.

Mas o mais engraçado dessa história é a genial perspicácia da nossa classe jornalística, rasa como um pires barato. A foto abaixo é a abordagem que o recifense Jornal do Commercio fez hoje sobre o assunto:

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Não vou nem mencionar a obviedade estampada na manchete (raios, o que eles esperavam que o Papa dissesse?!). Destaco o seguinte trecho, já no penúltimo parágrafo: «os textos [a carta anterior do Papa Francisco e esta agora de Bento XVI] mostram que o papa e o papa emérito têm a mesma opinião sobre determinados assuntos e alimentam especulações de que estejam trabalhando em conjunto».

Em nenhum momento parece ter passado pela cabeça do autor deste período que a «opinião» de ambos sobre Deus e o ateísmo é a mesma porque, ora bolas, todos os dois são católicos. O fato de ambos seguirem uma mesma religião parece não ser suficiente para explicar o curiosíssimo fato de todos os dois pensarem a mesma coisa a respeito do ateísmo. Ao invés disso, a opinião mais provável, a dar crédito ao Jornal do Commercio, é que os dois Papas «estejam trabalhando em conjunto»!

Eis o “senso crítico” que a mídia anda formando. A expressão não poderia ser mais exata: o senso adquirido por quem se acostuma a ler essas coisas é «crítico» como o estado de quem se encontra com uma doença terminal. Talvez já tenha até morrido há muito tempo e ainda não saiba. Que tempos…!

A «carta aos que não crêem» do Papa Francisco

O Papa Francisco escreveu uma curiosa «carta aos que não crêem», da qual é possível encontrar uma tradução em espanhol aqui. Não se trata de nenhum documento magisterial, mas simplesmente de uma carta pessoal do Papa Francisco ao Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, 89 anos, laicista ferrenho, promotor do aborto e do divórcio na Itália. É interessante a preocupação com os ateus que o Papa demonstra: não é a primeira vez que o Sumo Pontífice se refere diretamente a eles. Se não perdi as contas, é a terceira.

A primeira vez foi ainda em maio, e comentei sobre o assunto aqui. Na ocasião, o Papa falou que Cristo havia derramado o Seu Preciosíssimo Sangue também pelos ateus, e que também estes tinham o dever de fazer o bem. Foi numa de suas homilias improvisadas na capela da Domus Sanctae Marthae, cujo texto em italiano se encontra aqui.

A segunda vez foi na Carta Encíclica Lumen Fidei, e quando eu li tive a clara impressão de que o Papa se referia à sua meditação de 22 de maio que provocara alguma perplexidade entre crentes e não crentes. Esclarecendo agora de modo sistemático o que dissera de improviso em uma missa ferial, o Papa afirmou o seguinte:

Configurando-se como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem captar, já vivem — sem o saber — no caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar directrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio da escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem que a presença de Deus ainda a tornaria maior. Santo Ireneu de Lião refere que Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já O procurava «com o desejo ardente do seu coração» e «percorria todo o mundo, perguntando-se onde pudesse estar Deus», até que «Deus teve piedade daquele que, sozinho, O procurava no silêncio». Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor [LF 35].

A terceira vez, por fim, foi nesta recente carta ao Scalfari, sobre a qual ZENIT publicou também um interessante artigo (em espanhol) aqui. Não obstante ela valha uma leitura na íntegra, há duas passagens dignas de menção nesta carta; primeiro, quando o Papa afirma que «[e]l pecado, aún para los que no tienen fe, existe cuando se va contra la conciencia»; segundo, quando ele diz que «no hablaría, ni siquiera para quien cree, de una verdad «absoluta», en el sentido de que absoluto es aquello que está desatado, es decir, que sin ningún tipo de relación».

Quanto à primeira, é importante salientar, sim, que é pecado agir contra a própria consciência, e este é o fundamento para a possibilidade de salvação dos não-católicos que, em estado de ignorância invencível, seguem aquilo que, em consciência, parece-lhes correto. É isso, em suma: peca quem age contra aquilo em que acredita, mesmo que acredite em mentiras.

Sempre tive sinceras dúvidas quanto à possibilidade de existir uma consciência inculpavelmente mal-formada a ponto de ser incapaz de reconhecer a Deus; no entanto, a existência de fato desta peculiaridade é bem pouco importante para o estabelecimento dos princípios. Estes dizem que todo mundo tem a obrigação de seguir os ditames da Lei Natural, nos quais está incluído o dever de buscar e servir a Deus. Agir contra a Lei Divina é sempre objetivamente pecaminoso, por óbvio, mas a responsabilidade moral subjetiva de quem viola um preceito específico desta Lei pode ser atenuada dependendo da sua capacidade de reconhecê-la como o que ela é. Portanto, a descrença é desculpável se e somente se o descrente não tiver condições de crer. Ela me parece claramente desculpável nos loucos que não possuem o uso da razão; e em pessoas inteligentes e supostamente instruídas, é possível que o seja? Não sei e isso, graças a Deus, cabe a Deus julgar e não a mim. Sobre isto, basta o que a Igreja já disse: «quem será tão arrogante que seja capaz de assinalar os limites desta ignorância, conforme a razão e a variedade de povos, regiões, caracteres e de tantas outras e tão numerosas circunstâncias? (Pio IX, Alocução Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort)».

Quanto à segunda, vale lembrar que «verdade», segundo a definição dada por Santo Tomás (Summa, Prima Pars, Q. 16, A. 1, resp.) é a adequação entre objeto e entendimento, ou seja, entre o que a coisa é de fato e o que eu considero que a coisa é. Portanto, a verdade é uma relação, exatamente como diz o Papa Francisco. Com isso ele certamente não quer advogar um relativismo no qual cada um possui a sua própria “verdade” – ao contrário, ele diz expressamente que «[e]sto no quiere decir que la verdad es subjetiva y variable, ni mucho menos» -, mas ao contrário: quer colocar a Verdade ao alcance do homem, quer pontuar o homem como “capaz” da Verdade. Porque, afinal de contas, se Ela fosse «sin ningún tipo de relación», o homem não poderia relacionar-se com Ela, não poderia encontrá-La. A Verdade é o Amor, «Deus é Amor» e portanto Deus é a Verdade, e assim a possibilidade do homem encontrar a Deus precisa ser estabelecida como um pré-requisito para qualquer diálogo com aqueles que não crêem. É isso o que o Papa Francisco procura fazer.

O Papa preocupa-se com os ateus sim, sem dúvidas, porque também eles são destinatários do amor de Deus, e a vida é difícil e sem sentido para aqueles que não crêem. É o amor ao Evangelho que move o Papa a aproximar-se dos que estão longe do redil do Senhor; oxalá ele consiga arrastar uns quantos incrédulos à liberdade da Fé! Por este santo propósito, nós rezamos com toda a Igreja: «Oremos pelos que não crêem em Deus, para que, pela rectidão e sinceridade da sua vida, cheguem ao conhecimento do verdadeiro Deus». Ou na antiga fórmula latina:

Orémus et pro iis qui Deum non agnóscunt,
ut, quæ recta sunt sincéro corde sectántes,
ad ipsum Deum perveníre mereántur.

Omnípotens sempitérne Deus, qui cunctos hómines condidísti, ut te semper desiderándo quærerent et inveniéndo quiéscerent, præsta, quæsumus, ut inter nóxia quæque obstácula omnes, tuæ signa pietátis et in te credéntium testimónium bonórum óperum percipiéntes, te solum verum Deum nostríque géneris Patrem gáudeant confitéri. Per Christum Dóminum nostrum.
R. Amen.

O telefone sem fio do Conclave

Há certas coisas na imprensa leiga que seriam cômicas se não fossem trágicas. A despeito da existência de honrosas exceções, a maior parte das pessoas que escrevem sobre religião na grande mídia geralmente não faz a menor idéia do que está falando. Na ânsia pelo “furo” jornalístico, jornalistas imprudentes acabam cometendo as maiores gafes sobre assuntos que claramente não dominam.

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No meio da profusão de matérias publicadas sobre o Conclave, esta matéria do Estado de São Paulo (ontem publicada) faz, sem perceber, uma denúncia gravíssima: algum cardeal teria vazado o resultado do primeiro escrutínio, realizado ontem à noite! A reportagem é enfática:

A contagem é secreta, mas, segundo o jornal La Repubblica, o arcebispo de Milão, Angelo Scola, saiu na frente, seguido pelo arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer. Em terceiro lugar estaria o arcebispo de Budapeste, Peter Erdö, cuja candidatura teria se fortalecido após o embate, na véspera, entre integrantes contra e a favor da Cúria.

Ora, saber quem foram os cardeais mais votados no primeiro escrutínio só seria possível se alguém de dentro do Conclave tivesse repassado a informação – o que seria uma violação gravíssima das normas eclesiásticas que o mundo inteiro assistiu, ontem, cada um dos cardeais, com a mão sobre o Evangelho, jurar cumprir. Assim prescreve a Universi Dominici Gregis:

59. De forma particular, é proibido aos Cardeais eleitores revelar, a qualquer outra pessoa, notícias que, directa ou indirectamente, digam respeito às votações, assim como aquilo que foi tratado ou decidido acerca da eleição do Pontífice nas reuniões dos Cardeais, quer antes quer durante o tempo da eleição.

Como não se concebe uma razão plausível pela qual pudesse um cardeal-eleitor violar o seu juramento recém-proferido meramente para satisfazer uma curiosidade jornalística fútil (estamos falando do primeiro escrutínio!), semelhante informação já é, antes de qualquer coisa, no mínimo suspeita e por si só deveria provocar estranheza em quem a reproduz.

Mas vamos adiante. O Estadão diz que isso veio do La Repubblica. Assumamos o trabalho que o repórter aparentemente não teve e busquemos a fonte original da informação. Curiosamente, no site do La Repubblica não se encontra nada. A coisa mais parecida que existe na internet com a informação publicada com displicência pelo Estado de São Paulo é a seguinte manchete:

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O que, traduzido, é o seguinte: “Os Papáveis”, em cima. A manchete diz “Freia a corrida de Scherer, Scola [permanece] estável e Erdo desponta nas negociações do Conclave”. É de hoje (13 de março), mas a leitura da reportagem deixa claro que se trata das especulações pré-conclave, e não do resultado da primeira votação! O repórter fez inclusive questão de dizer que «[n]essuno oggi puo pero dire cosa accadra davvero nella Sistina», i.e., “hoje ninguém pode dizer o que realmente acontece na Capela Sistina”!

Ao que parece, o repórter do Estadão (o sr. José Maria Mayrink, “enviado especial”) passou os olhos pelo jornal, viu o nome dos três cardeais, viu que a edição era de hoje, leu atravessado que o cardeal Scola estaria com 35-40 voti e “deduziu” por conta própria que isto era o resultado da votação secreta realizada ontem (!). E simplesmente tocou o boi na linha, reproduzindo na mídia tupiniquim uma informação falsa cujas graves conseqüências, se fosse verdadeira, ele não é capaz de compreender – caso fosse, provavelmente não teria protagonizado esta desabonadora versão profissional da antiga brincadeira do telefone sem fio, que lança ainda mais descrédito sobre a confiabilidade do jornal.