Li n’O Antagonista a tradução de alguns trechos do primeiro editorial do ano da revista francesa Charlie Hebdo. Devemos todos nos lembrar: no dia 07 de janeiro de 2015, a redação do semanário foi metralhada por terroristas islâmicos.
Um ano após o ataque, a revista lança mais uma vez uma capa provocativa e um editorial raivoso. E o interessante aqui é encontrar, na pena do atual diretor do jornal, o mais irracional fanatismo religioso — do mesmo tipo que o sr. Laurent Sourisseau se esmera por projetar nos seus desafetos. A sua honestidade (quiçá involuntária) chega a ser tocante: em um rasgo de proselitismo, afirma que «as convicções dos ateus e dos laicos podem mover ainda mais montanhas que a fé dos crentes» e, com o fervor expectante de um religioso afrontando os infiéis, profetiza que «[n]ão serão eles [os autores do atentado] a assistir à morte de Charlie. Será Charlie a vê-los morrer.» É uma pena que ele não tenha a coragem de retratar os seus verdadeiros desafetos e, ao invés disso, tenha preferido usar, na capa de Charlie, a figura do Deus cristão ocidental e não a de Maomé. Mas os atos humanos são produtos de suas convicções mais íntimas — é outra forma de dizer «ex abundantia enim cordis os loquitur»… –, e de uma crença medíocre como o ateísmo de Charlie Hebdo é de se esperar que não venha, mesmo, de ordinário, senão atitudes medíocres.
Tudo isso, trazido aqui como exemplo, autoriza-nos a expandir a investigação a respeito do fenômeno irreligioso e concluir que o ateísmo, na verdade, não passa de um arremedo de religião. Afinal de contas, é uma cosmovisão cuja assertividade não é passível de demonstração empírica, com a qual se consente mediante argumentos de razoabilidade e de cuja adesão decorre certa tomada de posição frente aos grandes problemas da humanidade — de coisas mais abstratas como “qual o sentido da vida?” até questões mais concretas e que interessam a todos os membros da sociedade, como “o que é o certo e o errado?” ou “que crenças devem ser ensinadas às nossas crianças?”.
Esmiuce-se, para fins didáticos, a definição acima dada:
i) Trata-se de uma cosmovisão, i.e., uma visão integrada de mundo, pretensamente completa, capaz de responder inclusive às questões fundamentais da espécie humana que sempre estiveram sob o encargo das religiões. O mundo é o que é por conta do Big Bang e da evolução das espécies, a consciência é produto de reações bioquímicas no cérebro etc.
ii) Trata-se de algo, ainda, que não se pode demonstrar empiricamente. A proposição “Deus não existe” não pode ser provada em laboratório — que é o único meio de prova que a cosmovisão ateísta admite. A adesão a tal afirmativa, portanto, é, no sentido mais rigoroso do termo, uma crença, i.e., uma opinião, uma confiança, uma doxa.
iii) A esta doxa aquiesce-se mediante um raciocínio indireto: os que alegam que Deus existe não são capazes de provar a Sua existência, se Deus existisse e fosse Omnibenevolente não deveria haver mal no mundo, há uma quantidade muito grande de deuses, a maior parte dos quais patentemente falsos, então o mais provável é que todos sejam falsos mesmo, et cetera.
iv) Desta cosmovisão, finalmente, por uma razão de necessidade de coerência, decorrem posicionamentos exteriores frente às grandes questões da humanidade. Assim, como não existe um Deus para servir de ponto de referência para o Bem e o Mal, o fundamento ético precisa ser buscado em outro lugar — no consenso social, por exemplo. Por outro lado, como o conhecimento é melhor do que a ignorância, há um impulso natural para que o ateu esclarecido deseje banir a ignorância religiosa do mundo. Ainda: como toda cosmovisão é excludente, os ateus pretendem que à sua doxa somente seja socialmente concedido o status de “verdadeira” — e as outras religiões sejam todas consideradas indistintamente superstições. Os exemplos facilmente se multiplicam.
Ora, o paralelismo com as religiões tradicionais é notável; as religiões são i) visões de mundo que pretendem explicar a realidade de modo holístico, ii) cujos postulados não são passíveis de demonstração empírica, mas que por isso mesmo iii) fundamentam-se em argumentos de razoabilidade (do tipo “todo efeito pede uma causa proporcionada” ou “a ordem no Universo exige uma Inteligência ordenadora”, por exemplo) dos quais iv) decorre um determinado comportamento socialmente exigido (por exemplo, a opinião de que a sua crença é a única verdadeira e todas as outras são falsas, que se manifesta na busca por privilégios especiais para ela — como o direito do seu ensino oficial nas escolas).
Sob essa ótica, e ao contrário do que o sr. Sourisseau insinua, o problema que se coloca não é a opção entre o “ateísmo esclarecido” e a “religião irracional”. Muito ao contrário, a verdadeira questão é: dentre todas as respostas possíveis ao problema de Deus — nas quais se incluem o paganismo, o islamismo, o judaísmo, o hinduísmo, o cristianismo, o espiritismo, etc., e o ateísmo –, qual é a mais coerente? Qual das cosmovisões explica mais adequadamente a realidade? Qual é a que produz os melhores frutos? Qual a que torna os seres humanos mais íntegros, mais justos, mais felizes? Qual, enfim, a melhor entre elas? Sem dúvidas cabe muita discussão a respeito de qual o critério deste melhor; o que não dá, no entanto, é para continuar fingindo que o único critério aceitável é o raciocínio circular do “apenas o ateísmo liberta das antigas superstições, porque tudo aquilo que se refere ao sobrenatural é supersticioso”. À luz desta fundamentação, aliás, a cosmovisão ateísta se afigura a mais pobre de todas.