À primeira vista, eu achei que era brincadeira aquela história do promotor que mandou um policial que reagiu a um assalto melhorar a sua mira. Foi no Facebook que eu vi a história de Marcos Antônio, que trocou tiros com dois assaltantes e terminou abatendo um deles. No entanto, poucos dias depois, eu vi a notícia em R7 – e parece que é de fato verdade.
A história contada por R7 é exatamente a mesma que correu o Facebook: «De acordo com o pedido do Ministério Público, o policial civil Marcos Antônio Teixeira Marins foi abordado por dois bandidos enquanto dirigia pela rua Antônio Mariane, no bairro do Caxingui, em São Paulo, no dia 16 de setembro do ano passado. Embora estivesse à paisana, ele teria se identificado como policial após ser abordado pelos dois supostos criminosos: Antônio Rogério Silva Sena e Thiago Pereira de Oliveira. Houve, então, uma troca de tiros e um dos suspeitos, Sena, morreu». Legítima defesa, portanto, exatamente como entendeu o promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo. Qual a razão da polêmica?
A questão, penso, está nos termos empregados pelo promotor. A maneira irreverente de relatar uma tragédia choca um pouco a sensibilidade politicamente correta dos nossos dias; no entanto, e paradoxalmente, esta linguagem parece ser muito bem aceita pela população que está cansada de conviver com a violência generalizada do nosso país, sustentada por um lado pelo discurso contrário ao direito individual à legítima defesa e, pelo outro, pela turma dos “direitos humanos” que parece estar mais preocupada em salvaguardar a integridade dos marginais do que em proteger os cidadãos de bem.
Creio ser escusado repetir a posição católica sobre o assunto; como todos sabemos,
[q]uem defende a sua vida não é réu de homicídio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe mortal:
«Se, para nos defendermos, usarmos duma violência maior do que a necessária, isso será ilícito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito […]. E não é necessário à salvação que se deixe de praticar tal acto de defesa moderada para evitar a morte do outro: porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela alheia».
Ao que parece, a maior parte da população está de acordo tanto com a teologia moral católica quanto com o senso comum da humanidade ao defender que – nas palavras meio duras do promotor de São Paulo – bandido que dá tiro pra matar tem que tomar tiro pra morrer. Mas eu entendo um pouco o que passa pela cabeça dos pacifistas que infestam os nossos dias e os nossos meios de comunicação social. Por exemplo, eu entendo perfeitamente que um bandido é uma pessoa “como eu”. Hoje de manhã eu ouvia na CBN uma história de um sujeito que manteve a filha (pequena) e a mãe – não entendi se a mãe dele próprio ou a mãe da criança, mas não vem ao caso – sob ameaça de uma faca enquanto a polícia negociava com ele a rendição. Ora, em outros lugares tal sujeito provavelmente levaria uma bala ao primeiro vacilo que cometesse; aqui, no entanto, a irmã dele veio dizer (ao final da reportagem) que ele tinha feito isso porque tinha problemas mentais, e gostava muito da sua filha, e a companheira tinha ameaçado levá-la embora, etc., etc. Parece-me que a polícia conseguiu subjugar o sujeito – graças a Deus. Mas, às vezes, eu fico com a terrível sensação de que há uma evidente desproporção de cuidados: quer-se, parece, preservar mais o criminoso do que as suas vítimas. Eu, repito, entendo perfeitamente que o criminoso é um cidadão, tem uma vida, uma história, etc.; mas (pelo menos!) o mesmo vale para as pessoas que ele está ameaçando. E, se há riscos, é mais justo que os assuma quem é o responsável direto pela situação perigosa. Por mais que o bandido seja um ser humano – e ninguém nega que ele o seja -, simplesmente não faz sentido trabalhar como se a situação fosse uma “eventualidade” impessoal da qual tanto os bandidos quanto as vítimas têm ou devem ter igual chance de se safar. Uma situação de violência – um assalto, um seqüestro ou o que seja – só existe por culpa pessoal de alguém, e o que é razoável é que as conseqüências dos (maus) atos recaiam sobre quem os pratica – não sobre quem é vítima inocente deles.
Ainda: eu entendo que uma espada medieval é (bastante) diferente de uma pistola semi-automática, uma vez que o poder letal desta é incomparavelmente maior; e isto de tal modo que a desagradável morte do agressor injusto que poderia ser considerada uma fatalidade relativamente rara numa tradicional resistência com espadas transforma-se, ao contrário, quase que numa trágica conseqüência inevitável do ato de se defender com armas de fogo. Eu entendo perfeitamente isso e, aliás, até concordo um pouco com Don Quijote; em certa passagem da obra de Cervantes, o ilustre cavaleiro de La Mancha queixa-se do maldito inventor da pólvora porque, graças a ele, qualquer covarde poderia facilmente dar cabo – à distância… – de um valoroso cavaleiro, com o qual ele jamais teria a coragem de se indispôr se não estivesse protegido pelos incríveis poderes do pó negro. É claro que eu concedo que, hoje em dia, nós temos armas muito letais. Posso até ser simpático à idéia de que, talvez, vivêssemos em um mundo melhor se não nos fosse tão fácil matarmo-nos uns aos outros. No entanto, não dá para fechar os olhos e fingir que armas de fogo não existem ou que malfeitores não têm acesso a elas. É óbvio que a legítima defesa precisa ser exercida com meios proporcionados à ameaça, sob pena de não ser defesa verdadeira. Provavelmente isto significa que, hoje em dia, mais malfeitores vão morrer com isso do que costumava acontecer quando duelávamos à base de lâminas, mas sinceramente não me parece que exista alguma alternativa razoável. E, a despeito das renitentes tentativas da mídia de inculcar um pacifismo medíocre na nossa população, parece-me que as pessoas são via de regra bem simpáticas à idéia de que cada qual tem o direito de se defender como puder.