[OFF] Eu, com câncer (XII): Um ano se passou…!

Ontem eu completei um importante aniversário. Há exato um ano, era um sábado e eu me dirigia, pela manhã, à emergência do Hospital Português, com irritante e persistente dificuldade de respirar… O resto da história vocês já conhecem, mas chega a ser impressionante olhar para trás, agora, e ver o local privilegiado em que me encontro hoje, depois de tudo o que passei.

Um câncer é um câncer e não tem lá muito o que se fazer: é combater a doença em ato, precaver-se contra a recidiva e mudar o estilo de vida. Quanto ao primeiro desses itens, não posso classificar estes últimos doze meses senão como uma vitória completa: no final de maio eu fiz a última sessão de QT, e todos os exames então realizados mostraram uma resposta extraordinária. Após oito ciclos de R-CHOP, os mais minuciosos exames davam «negativo para neoplasia linfoproliferativa em atividade». Os bens temporais – entre os quais a saúde ocupa um lugar proeminente – as mais das vezes não estão sob nosso controle. Com relação a eles, o Senhor dá e o Senhor tira, ensina-nos o livro de Jó, e mesmo do fundo do poço é importante que se bendiga o nome d’Ele. Mas a história continua, e é reconfortante notar que, às vezes, Ele os concede novamente. Sit nomen Domini benedictum.

Um câncer tem toda aquela história de um período de monitoramento, mais ou menos longo, estendendo-se desde a última quimioterapia até (via de regra) cinco anos adiante: é a fase em que me encontro. Faço “manutenção”, como disse da última vez que escrevi sobre o assunto, o que significa que a cada dois meses eu tomo uma dose de medicamentos que objetiva acabar com qualquer resquício de células cancerígenas que porventura ainda existam em meu organismo, impedindo assim o linfoma de se restabelecer. O Rituximab é uma droga de altíssima qualidade: trata-se de anticorpos artificiais, que reagem especificamente contra as células doentes do meu tipo de linfoma, destruindo-as. Alguém perguntou certa feita se era como se fosse uma vacina para imunizar contra o câncer, mas é exatamente o contrário: é como se fosse um sistema imunológico artificial que destrói as células cancerígenas tão-logo apareçam, não dando a elas a chance de se multiplicarem.

Que Deus abençoe os responsáveis por este avanço da medicina! Sem ele, o meu tratamento seria muitíssimo mais complicado; além disso, essa manutenção que faço bimestralmente não me prejudica em nada. Lembro-me dos dias mais complicados da quimioterapia, em que eu ficava tonto, vomitando de madrugada, com o cabelo caindo, com o sistema imunológico baixo… nada disso acontece quando faço a manutenção. Vou à clínica depois do almoço, passo a tarde tomando o soro e, à noite, já inclusive saí de lá direto para a Faculdade, novo e sem maiores complicações. Não tenho nenhum efeito colateral, nada de náuseas, sem comprometer o sistema imunológico, nada, nada. Claro, há o incômodo do tempo passado na clínica, do cateter subcutâneo (que ainda mantenho) etc.; mas, perto das corredeiras bravias que tive que descer, isso é uma marola insignificante. Não dá nem para reclamar.

Ter uma doença como câncer faz você mudar o seu estilo de vida: já falei sobre isso aqui com talvez irritante frequência. Mais algumas poucas palavras, somente, sobre o assunto. Ter se debruçado sobre o abismo e praticamente sentido a vertigem da queda faz você retornar para o chão firme de um modo diferente: é como se as coisas não fossem tão firmes assim e, no fundo, como se a segurança não fosse assim tão importante. Na verdade, o que acontece é que você sabe que o chão pode voltar a se abrir sob os seus pés – e isso, depois de um tempo, tira-lhe o medo de cair. Mais do que a garantia paranóica pela firmeza do solo, você aprende a valorizar a caminhada com mais leveza e desenvoltura. Certamente alguém já falou em carpe Diem, naquele «Carpe Diem» barroco que é um eco daquela exortação de São Paulo de que «agora é o tempo favorável» (cf. IICor 6, 2), e é exatamente isso: o dia corre, e importa que ele seja bem vivido. Não dá para saber o futuro; dá pra saber, contudo, que o presente está aí e precisa ser aproveitado. O resto, como sempre, está nas mãos de Deus – e a experiência do último ano deixa essa impressão ainda marcada com vívida nitidez em minha alma. Que ela não se apague.

Muitos foram os que rezaram (e rezam ainda!) por mim, aos quais não posso senão agradecer do fundo do coração e oferecer-lhes as pequenas contrariedades – agora já tão raras…! – da minha doença em agradecimento pela caridade. Que o bom Deus os recompense com maior generosidade do que eu. Quanto a mim, que Ele não me deixe desperdiçar o “tempo extra” que me concedeu sobre esta terra; que eu saiba, sempre, na doença como na saúde, tudo ordenar para a glória d’Ele, é o que mais sinceramente desejo e o que peço aos que teimam em não se esquecer de mim em suas orações.

Hoje vivo diferente: alimento-me melhor e preocupo-me menos, por exemplo, e é realmente uma coisa extraordinária trocar a dispnéia do derrame pleural pela respiração ofegante dos exercícios físicos necessários para baixar o colesterol. Tudo já voltou ao normal; mas num nível mais alto, como numa espiral ascendente, onde me encontro no mesmo lugar de antes de adoecer, sendo que em um patamar mais elevado. Daqui dá para olhar para trás – para baixo! – e para adiante – para o Alto! – e, com um sorriso nos lábios, dar graças a Deus por este ano que já finda. Obrigado, Senhor! Superaste as minhas expectativas. E sigamos vivendo. Vejamos o que ainda posso fazer por Cristo enquanto estou cá por estas paragens. Vejamos que outras maravilhas Ele ainda tem reservadas para mim.

[OFF] Eu, com câncer (III): The road so far…

– Essa tua barba vai cair. Mas depois nasce de novo.

Assim me disse a dra. Rosa, com um sorriso, naquela – parece já tão distante! – noite em que prescreveu minha quimioterapia. A primeira parte da “profecia” já se cumpriu à risca: minha barba e meu cabelo caem aos tufos, enquanto durmo, ao banho, quando lhes passo a mão. Fico feliz de voltar a ser imberbe: o simbolismo do rejuvenescimento é óbvio demais para não ser percebido…

O cabelo que nasce depois, dizem, é um cabelo todo novo; pode inclusive nascer diferente do que era antes, se estava já branco volta a nascer preto, se era liso pode nascer encaracolado, etc. Eu, no entanto, de calvície já avançada antes dos trinta, fico já animado com a mera possibilidade de que ao final do tratamento ele nasça simpliciter. Quem sabe um cabelo novo não vem, anos depois, estabelecer-se no lugar que lhe cabe, sobre a careca antiga? E não consigo deixar de conter um sorriso: quem sabe, ainda, eu não ganho de volta os cachos de anjo que eu tinha quando criança, quando o futuro não cabia num lance de vista e se tinha a vida toda pela frente…?

Amanhã (segunda-feira, 20 de janeiro) é minha segunda sessão de QT. Este primeiro ciclo guardou as suas intercorrências para o final; só na última semana a minha imunidade baixou, os meus cabelos começaram a cair, meus pulmões voltaram a encher.

A minha contagem de leucócitos caiu para 3.310 somente na última segunda-feira. Antes se manteve em queda, mas dentro dos valores de referência. Sinal amarelo: usar máscaras com mais freqüência, reduzir o número de visitas, essas coisas. Mas não tive nada. Trata-se de um número num exame de sangue, que se eu não o tivesse visto nenhum outro sintoma perceptível me avisaria da minha imunodeficiência.

Já quanto aos meus pulmões, estes, sim, eu percebi. A minha respiração cada vez mais curta não deixava margens para dúvidas: eles estavam enchendo de novo. Terror. A quimioterapia, disseram-me, deveria secar os linfonodos do mediastino cuja compressão era responsável pelo acúmulo de líquido linfático na pleura que tanto me incomodava. Não estava funcionando. Eu estava disposto a simplesmente esperar que funcionasse; no entanto, uma angustiante falta de ar no domingo passado (após o “esforço” de caminhar em terreno plano os pouco mais de cinqüenta metros que separam a minha casa da paróquia, que fica no mesmo quarteirão) me convenceram a ir ao hospital.

Lá o raio-x foi implacável: «seios costofrênicos com derrame pleural». Seja lá o que isso for. Mas olho a chapa, e entendo perfeitamente: a ameaçadora mancha branca sobe, dos dois lados, deixando-me menos da metade de cada um dos pulmões. O que significa que eles só se expandem até metade da caixa torácica, quando muito. Discutem entre si pneumologista, hematologista, cirurgião torácico: é melhor drenar antes da quimio, concluem.

Faço a punção, de novo. Dessa vez, dos dois lados. 1,9 l do lado direito, 1,3 l do esquerdo: mais de três litros ao todo, sem contar o (muito!) que ainda foi deixado nas bases. Respiro aliviado, literalmente. Os resultados dos exames confirmam que se trata do mesmíssimo caso da vez anterior. É normal, ainda é cedo: no segundo ciclo da QT é que os efeitos devem começar a ser perceptíveis. Deus, tomara que sim. A barba já começou a cair. A contagem de leucócitos já diminuiu. Já está na hora dos linfonodos começarem a atrofiar.

Implantei um port-a-cath na última sexta-feira. Fica do lado direito do meu peito, logo abaixo da clavícula, sob a pele, e é menos horrendo do que imaginara. Fica um “calombo”, como se fosse um pequeno osso fora do lugar, nada muito grotesco. A micro-cirurgia foi simples e não tive com ela maiores problemas; só as dores normais do pós-operatório, de quando passa a anestesia. Duraram pouco. Ontem já não doía quase nada, hoje já praticamente não dói. Mantenho ainda os curativos até amanhã, e os pontos ficam pelo menos até a próxima sexta-feira. Depois, só o “calombo” e a cicatriz. Ao menos preservo as veias periféricas do braço; ao menos, como todo mundo me disse, as sessões de quimioterapia serão agora mais fáceis e mais seguras.

Do último post para cá eu recebi um sem-número de recomendações sobre como cuidar da minha saúde. Agradeço de coração por todas elas. Li-as todas. Pesquisei sobre todas e, se todas não adotei, foi porque não considero sensato fazer mudanças radicais no meu estilo de vida agora, justamente no meio de um câncer e de um tratamento quimioterápico, sem nem ao menos consultar uma nutricionista. Tenho procurado melhorar a minha alimentação, sem contudo fazer extravagâncias que não são do meu feitio. Hoje como com mais freqüência (lancho entre as refeições), como mais frutas, bebo mais água. Prefiro mel natural ao açúcar (do qual nunca fui muito fã, a propósito), e introduzi gengibre e um probiótico (Kefir) na minha alimentação diária. Estou me dando bem com isso: meu apetite funciona, meu intestino, idem, minhas funções excretoras parecem estar em ordem.

Não tenho ainda autorização e nem condições para fazer exercícios, o que tem me incomodado um pouco. Por enquanto, apenas a fisioterapia respiratória com o Respiron e o esforço de andar da sala ao quarto algumas vezes ao dia, só para fugir do temível “repouso absoluto” que provoca tromboses em quem faz viagens longas de avião. Tenho sobrevivido bem. Como diz a clássica passagem das Escrituras, até aqui tem me ajudado o Senhor. E sei que Ele não há de me faltar.

Amanhã é a minha segunda sessão de quimioterapia. A partir de amanhã, as coisas vão melhorar mais: é mais um passo, another brick in the wall, uma hora a menos da noite escura que não pode durar para sempre. Uma hora a menos…! O arrebol já vem. Há aquela história dos três pedreiros trabalhando juntos, o primeiro dos quais disse estar cimentando um tijolo, o segundo, levantando uma parede e, o terceiro, construindo uma catedral. Eu poderia dizer que amanhã estarei tomando Rituximab ou me tratando de um linfoma. Mas, agora, vou preferir dizer que amanhã estarei fazendo crescer de novo um pouco dos caracóis dos meus cabelos infantis.

[OFF] Eu, com câncer (I): diagnóstico e início de tratamento

Após quinze dias de internamento compulsório, duas tomografias, uma biópsia, uma drenagem pleural e um sem-número de exames menores de acho que todos os fluidos do meu corpo, tenho enfim um diagnóstico. Louvado seja Deus.

Possuo um linfoma folicular, de características que não entendo muito bem. Se assim aprouver ao bom Deus, passarei, começando amanhã pela manhã (28/12, festa dos Santos Inocentes e de Santa Catarina Volpicelli), por seis ciclos de quimioterapia, um a cada 21 dias, entremeados por uns corticóides e outros químicos de uso diário que serão meus fiéis companheiros pelas próximas semanas.

Não posso garantir muita coisa. Nunca fiz quimio antes, sinceramente não sei dizer o efeito que essas drogas todas terão no meu organismo. Pretendo registrar aqui alguma coisa do tratamento, como off-topic, mais ou menos como estou agora iniciando esses registros. Se tudo correr bem, dentro de muito pouco tempo – alguns dias – eu posso voltar aos trabalhos normais do Deus lo Vult!, mas procurarei soltar regulares textos sobre o meu estado de saúde e sobre a minha relação com esta doença.

Descobrir-se com câncer antes dos trinta não é a experiência mais agradável do mundo. Ficar trancafiado num quarto de hospital, tampouco: brincava por esses dias que nunca na minha vida ficara tanto tempo num mesmo lugar. Mas a presença dos familiares e dos amigos tem tornado os dias menos difíceis. Que digo: tem tornado os dias quase iguais aos de “lá de fora”! Não dá pra contar a quantidade de visitas, telefonemas, mensagens e congêneres que recebi ao longo dessas duas semanas. Não estive sozinho por um instante sequer. A todos, o meu muito obrigado: isso é muito importante para mim.

Sei que já estão rezando por mim e por minha família. Abuso um pouco ainda da caridade de vocês e peço que rezem ainda mais um pouco: para que eu saiba encontrar a vontade de Deus em meio às tribulações que Ele me permite atravessar. Para que eu consiga manter os olhos fitos n’Ele, mesmo com o olhar embaçado pelas lágrimas deste Vale onde o Altíssimo hoje não me quer deixar esquecer que sou degredado. Lembro-me, em particular, daquele bonito Cántico de S. Juan da Cruz:

Buscando mis amores, 
yré por esos montes y riberas; 
ni cogeré las flores, 
ni temeré las fieras, 
y passaré los fuertes y fronteras.

E é isso. Sem se encantar com as flores do vale, e sem se assustar com as feras do mundo. Desprezar umas e outras, com os olhos fixos n’Aquele que realmente interessa, e assim seguir em frente, ultrapassando os obstáculos que porventura encontre no meu caminho. É isso que importa. As adversidades dessa vida não são maiores do que o amor d’Aquele sem cujo consentimento nem um fio de cabelo sequer cai de nossas cabeças. Essa verdade é óbvia demais para que a permitamos ser obscurecida às primeiras dificuldades.

Uma Ave-Maria por um blogueiro pecador, é o que peço aos que por aqui passarem. É exatamente do que preciso. O resto está nas mãos de Deus. O resto, a Virgem Santíssima proverá. Não há dúvidas disso.