O infame “cantor” Falcão disse certa feita que “a besteira é a base da sabedoria”. A antológica frase – “antológica”, claro está, porque digna de uma anta – é o título de um dos seus álbuns. Ao humorista brasileiro, contudo, a gente pode ao menos dar um desconto e dizer que ele está deliberadamente procurando fazer piada, que ele não leva a sério as bobagens que diz. Coisa muito diferente ocorre quando estamos tratando de uma publicação religiosa de renome e alcance nacional.
Trata-se – sim, é ele de novo – d’O Domingo, semanário litúrgico-catequético da Paulus. Desta vez, eu não vou falar das colunas que são publicadas no final [uma delas, aliás, miraculosamente, está boa: a de D. Angélico Bernardino, que tem por título “sejam santos”], mas da primeira coisa que eu ouvi quando a Missa estava por começar. Trata-se do comentário que, no jornalzinho, encabeça os “Ritos Iniciais”, e que é lido imediatamente antes da procissão de entrada. Ontem isto ressoou dentro da Igreja enquanto os fiéis estavam piedosamente esperando a Santa Missa iniciar. O comentário diz, verbis, o seguinte:
Jesus foi rejeitado em sua própria terra por ser trabalhador e filho de Maria, mulher simples da aldeia de Nazaré. Hoje continua sendo rejeitado em tantas pessoas empobrecidas e excluídas da vida social. Celebrando a sua páscoa, somos convidados a aceitar o fato de que Deus nos fala por meio dos simples, fracos e pobres.
O Evangelho da Missa de ontem é o sexto capítulo de São Marcos (v. 1-6), que fala sobre o profeta que não é aceito em sua terra. Obviamente, há um sem-número de meditações que podem ser feitas a partir desta perícope evangélica; à guisa de exemplo, o Presbíteros traz hoje tanto um roteiro homilético quanto uma homilia de D. Henrique Soares, o Evangelho Quotidiano trouxe ontem algumas palavras do Beato João XXIII sobre o “Filho do Carpinteiro”, há a própria Catena Aurea já citada, etc. Comentários a serem feitos, havia-os aos borbotões. No entanto, O Domingo me sai com esta história de que o problema que os judeus tinham com Nosso Senhor era porque Ele era trabalhador!
Cáspita, como assim Nosso Senhor foi rejeitado por ser “trabalhador”? E Ele deveria ser o quê para que fosse bem aceito, desocupado? E que misteriosa característica proletariofóbica específica dos judeus de Nazaré é esta, uma vez que é especificamente lá (e não em outros lugares) que os Evangelhos narram a rejeição de Cristo? E o que as palavras de Nosso Senhor – sobre um profeta não ser bem aceito em sua terra – têm minimamente a ver com esta suposta rejeição trabalhista com a qual O Domingo quer engabelar os seus leitores?
Os fiéis católicos que vão à Santa Missa não merecem esta idiotice. Eles têm o direito de ouvir a palavra de Deus em sua interpretação autêntica e frutuosa que só a Igreja de Cristo é capaz de fornecer, e não esta baboseira estéril de fazer corar qualquer professor de literatura ou de garantir uma reprovação sumária em qualquer avaliação de interpretação de texto. Os fiéis vão à Igreja porque querem ser edificados pela Doutrina Católica, e não enganados com esta empulhação marxista pseudo-católica já velha e putrefata que se esqueceu de que morreu e insiste em assombrar o mundo.
Veja-se como a ideologia é agora colocada acima da hermenêutica mais elementar: de onde foi tirada esta exegese louca de que Cristo foi rejeitado por ser trabalhador? O quê, no texto ou no contexto, dá margem para que seja feita semelhante inferência? Tudo isto só porque Nosso Senhor foi chamado de “carpinteiro” pelos judeus? Ora, por este modus interpretandi obtuso, a gente pode dizer que Herodíades era uma vegan fanática enrustida e pediu a cabeça de São João Batista porque este cometia o terrível crime de comer os gafanhotinhos que são criaturas de Deus.
E ainda concedendo que houvesse nesta única palavra – “o carpinteiro” – alguma conotação depreciativa (que claramente não se depreende do texto bíblico), há tão farto material a respeito do porquê do Messias não ser aceito e é tão eloqüente – prolixa até – a Doutrina Cristã sobre o assunto que é indiscutivelmente uma falcatrua e uma empulhação querer enquadrar a rejeição de Cristo em Nazaré num esquema estúpido de luta de classes onde os trabalhadores são oprimidos e marginalizados! É verdadeiramente impressionante o volume de besteira que a gente é obrigado a ouvir nesta vida; e (ao contrário do que o Falcão poderia insinuar) não há nenhuma propriedade transmutadora de alquimia retórica capaz de fazer brotar alguma sabedoria desta infamante miséria intelectual.