Um leitor faz a gentileza de me perguntar:
Queria ver sua explicação para a imagem de Lutero no Vaticano. Sei que você terá uma boa explicação. Já vi um padre dizer no facebook que foi uma provocação dos protestantes. A sua será semelhante? Algo do tipo: os luteranos que trouxeram e seria falta de educação não colocar ali?
Não acho que tenha sido provocação. A questão me parece toda outra.
Deus criou o ser humano para Si, como diz Sto. Agostinho, e por isso o coração do homem vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Esta inquietude pode ser ignorada e pode ser posta de lado, pode ser enterrada por um tempo, pode ser disfarçada, maquiada, anestesiada, pode tudo: só não pode ser plenamente vencida. Porque ela foi posta pelo próprio Deus e, portanto, nada que o homem faça por si só, por suas próprias forças, será capaz de prevalecer sobre aquilo que Deus mesmo estabeleceu. É como, mutatis mutandis, aquela inimizade — inimicitias ponam… — que no início do Mundo foi estabelecida entre os filhos de Deus e os filhos das Trevas. Ela simplesmente não pode ser superada: o engenho humano não pode, absolutamente não pode lograr sucesso contra a vontade positiva do Onipotente.
Nada que os homens façam por sua própria conta será capaz de (re)estabelecer a unidade do gênero humano. Aqui falharam todas as empresas humanas, todos os impérios do passado, todas as potências do presente, todas as construções teóricas e os modelos de pensamento, tudo, tudo. As verdadeiras paz e concórdia só são possíveis aos pés da Cruz de Nosso Senhor, e mil vezes o mundo não queira aceitar esta verdade, mil vezes será despedaçado por guerras fratricidas. Nem sequer a própria Igreja, digo, nem sequer os próprios homens pertencentes à Igreja, os católicos, independente do prestígio do qual gozem, poderão ser vitoriosos nesta seara: os católicos podem anunciar mil e um arranjos de convivência pacífica plural, podem se esforçar pessoalmente na consecução de semelhante objetivo, e pode ser até — concedamos — que em determinados momentos eles o devam realmente fazer: o resultado assim obtido será sempre uma obra inacabada, terá sempre algo de contingente, de frágil, de periclitante, não raro prestes a desmoronar ao mais leve sopro de realidade. É evidente, todos nós o sabemos, que alguma paz cotidiana e pragmática, alguma condescendência hic et nunc, precisa ser feita para possibilitar um mínimo de vida em sociedade: nós fazemos isso o tempo inteiro. Esse armistício temporário, no entanto, essa — eis a palavra verdadeira — indiferença tolerante não se pode revestir de características deontológicas absolutas. É dizer: não se trata de um fim último a ser buscado a todo custo. Não é assim que as coisas devem ser, embora seja possível que, em determinadas circunstâncias concretas, elas praticamente (só) possam ser assim. Na percepção clara da diferença entre uma coisa e outra reside a distinção entre a Fé e a apostasia.
Volto aos luteranos para explicar o que quero dizer. Deve ser bem difícil ser herege; a posição em que se encontram os filhos da Reforma luciferina do ex-monge alemão é sem dúvidas bastante desagradável. Em todos os aspectos o luteranismo é insustentável: nos (incontáveis) vícios pessoais do seu fundador, nas conseqüências históricas dramáticas de seus pressupostos (eis aí o esfacelamento do Protestantismo em milhares de seitas mutuamente incompreensíveis entre si), na incoerência de sua visão histórica do Cristianismo (afinal de contas, por onde andaria o Paráclito no milênio e meio compreendido entre a ascensão de Cristo e as 95 Teses?), na maleabilidade promíscua de sua doutrina contemporânea (por exemplo, há diversas denominações luteranas hoje favoráveis às práticas homossexuais — talvez até mais do que contrárias), et cetera. Ora, Deus criou os homens para Si; e parece evidente que a Babel protestante, assim como a primeira, não é capaz de conduzir os homens ao céu.
E alguns luteranos o percebem. Eles notam que falta alguma coisa no arremedo de religião que eles se acostumaram a chamar de “igrejas”; é a sede de Deus que clama mais forte nas profundezas de suas almas e que, incapaz de se saciar no lamaçal da heresia luterana, reclama águas mais puras. O encontro dos luteranos com o Papa na última quinta-feira, assim, é talvez a mais eloqüente manifestação da falência do luteranismo. São os filhos degredados, sujos, maltrapilhos e machucados, voltando sobre os passos do pai louco e prestando, timidamente, a vassalagem contra a qual o seu patriarca originalmente se revoltou.
Uma peregrinação saída «dalla regione di Lutero» em direção à «sede del Vescovo di Roma» carrega um simbolismo que não se pode ignorar: são os protestantes dando as costas ao heresiarca, deixando Lutero para trás, e caminhando de maneira esforçada, firme, resoluta — ultrapassando os acidentes geográficos e as fronteiras dos países — rumo ao Doce Cristo na Terra!
No limiar da Reforma, quando Lutero não havia ainda rompido definitivamente com a Igreja, ele foi convidado a ir a Roma para defender as suas doutrinas. Recusou-se. Posteriormente o Concílio de Trento convidou os protestantes para participarem das assembleias conciliares. É possível dizer que o convite lançado há quase cinco séculos ainda estava aberto e, finalmente, de algum modo o Heresiarca lhe deu na última semana uma resposta. Leão X não logrou trazer Lutero a Roma; Francisco fê-lo ser carregado pela sua estirpe degenerada em desesperada peregrinação. O monge bêbado provavelmente encararia muito a contragosto semelhante patacoada. Mas aos filhos não deve ser impedido entrar pela porta da Vida Eterna que o pai louco fechou atrás de si.
Enfim, perguntam-me se isso foi uma provocação. Eu digo que foi uma catarse. O luteranismo chegou a tornar-se tão insuportável que, na busca desesperada pelo Deus que Lutero expulsou das igrejas que roubou ao Papa, os luteranos aceitaram até mesmo carregar nas costas o monge rebelde de volta para o Vaticano.