O motu proprio do Papa Francisco sobre Liturgia — Magnum Principium, até o presente momento apenas com versões em italiano e em latim no site da Santa Sé — é uma incógnita. Aquilo a que ele se presta é, basicamente, modificar o Cân. 838 do Código de Direito Canônico para (supostamente) descentralizar o processo de tradução dos livros litúrgicos para as línguas dos diversos países, conferindo maior autonomia às Conferências Episcopais locais. A tabela abaixo compara redação atual do Código, ainda vigente até o final de setembro, com as alterações propostas pelo Motu Proprio:
Versão Atual (PT) | Versão Atual (IT) | Nova Versão |
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Cân. 838 — § 1. O ordenamento da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja, a qual se encontra na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no Bispo diocesano. | Can. 838 – §1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano. | Can. 838 – § 1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano. |
§ 2. Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal, editar os livros litúrgicos e rever as versões dos mesmos nas línguas vernáculas, e ainda vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas litúrgicas. | §2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici e autorizzarne le versioni nelle lingue correnti, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate fedelmente ovunque. | § 2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici, rivedere gli adattamenti approvati a norma del diritto dalla Conferenza Episcopale, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate ovunque fedelmente. |
§ 3. Compete às Conferências episcopais preparar as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados nos próprios livros litúrgicos, e editá-las, depois da revisão prévia da Santa Sé. | §3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, dopo averle adattate convenientemente entro i limiti definiti negli stessi libri liturgici, e pubblicarle, previa autorizzazione della Santa Sede. | § 3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare fedelmente le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, adattate convenientemente entro i limiti definiti, approvarle e pubblicare i libri liturgici, per le regioni di loro pertinenza, dopo la conferma della Sede Apostolica. |
§ 4. Ao Bispo diocesano, na Igreja que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar. | §4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti. | § 4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti. |
As alterações são mínimas, e estão grafadas em negrito acima.
Os parágrafos primeiro e quarto permanecem iguais. No parágrafo segundo, a diferença entre os verbos «autorizzarne» (redação antiga) e «rivedere» (nova redação) não importa diminuição das competências da Santa Sé — como se antes ela precisasse autorizar as mudanças e, agora, passasse-as simplesmente a rever. Primeiro porque o verbo latino da versão nova é idêntico ao da redação atual — «(…) eorumque versiones in linguas vernaculas recognoscere (…)» — e, segundo, porque (e sobre isso há uma nota explicativa no Motu Proprio) o Pontifício Conselho para a interpretação dos textos canônicos e legislativos já esclareceu, em 2006, que a recognitio «não é uma aprovação genérica e sumária nem muito menos uma simples “autorização”, tratando-se, ao contrário, de um exame ou de uma revisão atenta e detalhada». Tanto é assim que outras traduções (como a portuguesa) já grafam, na versão atual, «rever as versões» em vez de «autorizar as versões».
Assim, a meu ver, a diferença é que antes a Santa Sé revia as próprias traduções feitas pelas Conferências (le versioni nelle lingue correnti) e, agora, passa a precisar rever somente as adaptações (gli adattamenti) eventualmente aprovadas pelas Conferências Episcopais.
O que muda no parágrafo terceiro — afora a (oportuna) ênfase na necessidade de que as traduções sejam feitas fielmente — é que as Conferências passam a poder «aprovar» as traduções dos livros litúrgicos, após a “confirmação” da Santa Sé («post confirmationem Apostolicae Sedis»). Ou seja, para a publicação (e consequente entrada em vigor) dos livros litúrgicos traduzidos, antes, exigia-se a recognitio da Santa Sé, hoje, é preciso a confirmatio da Sé Apostólica.
As diferenças são, assim, entre as traduções e entre as adaptações, e entre a revisão e a confirmação:
Antes do MP | Após o MP | |
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Traduções para o vernáculo | Exigiam revisão da Santa Sé | Exigem confirmação da Santa Sé |
Adaptações litúrgicas | Não eram mencionadas no Código | Exigem revisão da Santa Sé |
Revisão | Era devida para as traduções dos livros litúrgicos | É devida para as adaptações litúrgicas |
Confirmação | Não era mencionada no Código | É devida para as traduções dos livros litúrgicos |
Na teoria a diferença entre essas coisas está bem clara, como mostrou o Mons. Arthur Roche, o secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que apresentou um comentário sobre o motu proprio. A recognitio é uma atividade ativa e criteriosa, em cujo seio é permitido à Santa Sé inclusive modificar o trabalho das Conferências Episcopais; a confirmatio é mera ratificação do trabalho levado a cabo pelos bispos, que «pressupõe uma avaliação positiva da fidelidade e da congruência dos textos elaborados em relação à Edição Típica» dos livros litúrgicos. Na prática, contudo, podem surgir dificuldades.
Imagine-se a hipótese de a tradução de uma determinada Conferência não guardar congruência ou fidelidade para com a Editio Typica — ou seja, faltar um pressuposto da confirmatio como exigido pelo Magnum Principium. Neste caso, não podendo mais a Santa Sé intervir diretamente na tradução (hipótese só admitida para a recognitio), o motu proprio parece tornar todo o processo mais lento e burocrático: o texto deveria então voltar para a Conferência, que deveria proceder por conta própria às correções devidas, para depois enviá-lo novamente a Roma e aguardar a chancela dicasterial — que pode inclusive não vir mais uma vez, se não houverem sido sanados os vícios que levaram a Sé Apostólica a negar a confirmação da primeira vez. Não se vislumbra, destarte, o benefício que a mudança do Cân. 838 pode trazer.
Sobre as adaptações litúrgicas — inclusive profundiores aptationes, como consta no documento… –, tendo em conta os horrores dos abusos litúrgicos com os quais os fiéis católicos foram desgraçadamente forçados a conviver nas últimas décadas, não é possível sequer imaginar que bem aos fiéis possa delas advir. No entanto, como o procedimento para a aprovação delas permanece mais rigoroso (sendo inclusive, s.m.j., o mesmo já em vigor há mais de duas décadas por força da Varietatis Legitimae), parece não haver nenhuma mudança nesta matéria por conta do Magnum Principium.