Não obstante o excelente trabalho que a Canção Nova vem fazendo (já há alguns anos!) com a tradução dos discursos, homilias, audiências gerais e tudo o que envolve o Santo Padre, há uma pequena crítica que precisa ser feita. No último dia 18 de outubro, no encerramento do Sínodo dos Bispos, o Papa Francisco pronunciou uma extraordinária homilia. Quase que imediatamente, com a celeridade que lhe é própria, a Canção Nova publicou a versão em português do texto que, por ter sido a primeira, foi provavelmente a única a que muitos católicos tiveram acesso. No entanto, a tradução apresentada pela comunidade estava truncada em um ponto – justamente um dos mais bonitos do texto! -, o qual não foi (acabei de consultar) ainda corrigido até o presente momento. As mensagens que enviei através do site ficaram sem resposta.
Foi um erro muito simples, certamente de deleção involuntária de um par de linhas, que no entanto tornou o trecho da mensagem pontifícia obscuro e lhe tirou parte considerável da sua força. A versão que está no site da Canção Nova – assim desde a semana subsequente ao pronunciamento papal – é a seguinte:
E a versão correta e oficial, que atualmente já consta no site da Santa Sé, é a seguinte (destaquei, em azul, o texto que foi inadvertidamente cortado na tradução pioneira da Canção Nova):
Momentos de consolação, graça e conforto, ouvindo os testemunhos das famílias que participaram no Sínodo e compartilharam connosco a beleza e a alegria da sua vida matrimonial. Um caminho onde o mais forte se sentiu no dever de ajudar o menos forte, onde o mais perito se prestou para servir os demais, inclusive através de confrontos. Mas, tratando-se de um caminho de homens, juntamente com as consolações houve também momentos de desolação, de tensão e de tentações, das quais poderíamos mencionar algumas possibilidades:
— uma: a tentação do endurecimento hostil, ou seja, o desejo de se fechar dentro daquilo que está escrito (a letra) sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o espírito); dentro da lei, dentro da certeza daquilo que já conhecemos, e não do que ainda devemos aprender e alcançar. Desde a época de Jesus, é a tentação dos zelantes, dos escrupulosos, dos cautelosos e dos chamados — hoje — «tradicionalistas», e também dos intelectualistas.
— A tentação da bonacheirice destrutiva, que em nome de uma misericórdia enganadora liga as feridas sem antes as curar e medicar; que trata os sintomas e não as causas nem as raízes. É a tentação dos «bonacheiristas», dos temerosos e também dos chamados «progressistas e liberalistas».
— A tentação de transformar a pedra em pão para interromper um jejum prolongado, pesado e doloroso (cf. Lc 4, 1-4) e também de transformar o pão em pedra e lançá-la contra os pecadores, os frágeis e os doentes (cf. Jo 8, 7), ou seja, de o transformar em «fardos insuportáveis» (Lc 10, 27).
— A tentação de descer da cruz, para contentar as massas, e não permanecer nela, para cumprir a vontade do Pai; de ceder ao espírito mundano, em vez de o purificar e de o sujeitar ao Espírito de Deus.
— A tentação de descuidar o «depositum fidei», considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores ou, por outro lado, a tentação de descuidar a realidade, recorrendo a uma terminologia minuciosa e uma linguagem burilada, para falar de muitas coisas sem nada dizer! Acho que a isto se chamava «bizantinismos»…
As razões, enfim, pelas quais estou dedicando tanto espaço a esmiuçar essa banalidade são duas:
i) eu considero bastante sério o trabalho de tradução da Canção Nova, já o recomendei aqui no Deus lo Vult! e em outros foros, acompanho-o com freqüência e a muito (senão à maior parte) das notícias corriqueiras envolvendo o Sumo Pontífice eu tenho acesso mediante o citado portal; por isso, uma má tradução nele apresentado tem o desagradável efeito de esconder, dos seus leitores habituais, a mensagem correta (eu próprio só percebi essa falha por puro acaso, quando alguém, no Facebook, chamou-me a atenção para a versão em outro idioma que estava diferente), o que tenho certeza de não ser o objetivo da comunidade; e
ii) a passagem é verdadeiramente magnífica para responder à questão – com tanto açodamento debatida nos últimos meses! – da comunhão dos divorciados recasados, e o faz com imagens fortes extremamente eloquentes: o que seria uma tal autorização senão tratar os sintomas «e não as causas nem as raízes»? O que seria semelhante mudança de disciplina senão capitular diante da tentação demoníaca e, por não suportar o calor do deserto, dar ouvido a Satanás e buscar transformar, por conta própria e à revelia da vontade de Deus, as pedras em comida?
Esta é a resposta que a mídia laica não faz a menor questão de divulgar – perceberam o quanto ela ficou pianinha depois do fim do Sínodo? -, esta é a mensagem que nós, por outro lado, temos a obrigação de difundir. Satanás ronda à nossa volta, ávido por nos fazer chamar o mal de bem, o justo de injusto, as pedras de pães…! É importante lhe darmos um rotundo e sonoro “não!”. É importante divulgarmos a Doutrina da Igreja, quando ninguém mais parece interessado em lhe dar a conhecer.
A mídia quer que a Igreja troque a doutrina de Cristo pelas demandas imorais modernas; qual Satanás, insta-A a transformar as pedras em pão para Lhe matar a fome – para acabar com o sofrimento dos que tiveram o seu matrimônio destruído… – e a cobrir as feridas purulentas ainda, escondendo-as, apenas para as tirar de vista, por não lhes conseguir suportar a fealdade. Ora, tal a Igreja não pode jamais aceitar, e é da mais alta importância que todos o saibam com clareza. Para que escutem Aquela somente que possui palavras de Vida Eterna. Para que – trocando a voz da Igreja pela do mundo – não morram de gangrena ao abafar as próprias feridas abertas, não quebrem os dentes ao morder as pedras que têm junto a si.