Escola sem Partido: méritos e riscos

A proposta do “Escola sem Partido” está dando o que falar, principalmente por conta de uma consulta pública no site do Senado que vem provocando uma verdadeira guerra virtual nos últimos dias — com a vitória pendendo ora para um lado, ora para o outro. Muita gente me havia pedido para escrever sobre o assunto, e eu estava reticente. Talvez a própria escrita deste texto esclareça as razões da minha resistência original.

Antes de qualquer outra coisa, cabe deixar claro que não se trata de um tema propriamente católico; quero dizer, não se trata de um tema sobre o qual seja possível apresentar uma “resposta católica” universalmente aceita. Conheço gente que está muito entusiasmada com o projeto; conheço, igualmente, gente que tem ressalvas contra ele. Com isso não quero dizer que o problema seja de tal natureza que mereça a indiferença dos católicos; é claro que não. Apenas a solução apresentada não é a única aceitável. A um mesmo problema se pode quase sempre apresentar soluções distintas: por exemplo, a morte de mulheres em decorrência da prática do aborto é sem dúvidas um problema. Isto reconhecem, facilmente, os católicos e as feministas. Já as soluções apresentadas por um grupo e pelo outro são em tudo distintas: os primeiros querem evitar todas as mortes evitando o próprio aborto, e as últimas querem evitar as mortes das mães mediante o asséptico, legal e profissionalizado assassinato dos filhos.

Escola_sem_partido

Aqui a situação é diferente. O problemaa existência de doutrinação nas escolas — é no geral incontestável, ao menos entre os católicos; os inimigos da proposta, por sua vez, debatem-se entre afirmar que não há doutrinação e reclamar o próprio direito de doutrinar em paz. Não nos ocupemos tanto com estes últimos. Procuremos entender o porquê de haver discórdias entre nós.

Os católicos temos uma diferença radical para com os incrédulos do século moderno: nós acreditamos firmemente na existência de uma verdade, com relação à qual os homens têm um dever moral de reconhecimento. Isto significa que não nos é permitido ficar inertes diante das mentiras que contam nas nossas escolas — das quais a comparação entre um santo católico e um assassino comunista é apenas o absurdo mais patente. Teríamos este dever, aliás, ainda que as escolas não tivessem nada a ver conosco; sendo compulsórias para os nossos filhos como o são, no entanto, este dever se nos reveste de maior premência. Trata-se de um problema da mais alta gravidade, cujo reconhecimento é necessário ainda que se possa licitamente divergir quanto aos meios de o enfrentar.

A questão é que, havendo este problema, há (pelo menos) três coisas diferentes em jogo.

a inspiração original do Escola sem Partido, que pode ser resumida na seguinte proposta:

Nada mais simples: basta informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores; basta informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar.

Há modelos de projeto de lei do mesmo Escola sem Partido, dos quais o Federal contém coisas como a que segue:

Art. 8º. O ministério e as secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

E há o projeto de lei efetivamente em tramitação no Congresso, que é praticamente igual ao modelo acima apresentado, com talvez uma única diferença — um dispositivo que proíbe “a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” –, sobre a qual o próprio idealizador do movimento já se manifestou de maneira contrária.

A grande questão é que da inspiração primeira ao que é possível fazer vai uma distância muito longa, por vezes maior do que aceitável pelos partidários da insatisfação original. Que há um problema de doutrinação nas nossas escolas, há; mas como combatê-lo eficazmente? Uma lei não funciona somente para o que ela “foi pensada” para fazer; mormente no caos jurídico contemporâneo, uma lei tem vida própria e os seus efeitos podem se espraiar por situações muito distantes das que os seus idealizadores originalmente imaginaram. O PL 867/2015, por exemplo, diz um dos princípios aos quais atenderá a educação nacional é o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”.

A justificativa do projeto e o histórico da educação brasileira nos dizem que, com isso, pretende-se limitar o discurso hegemônico da esquerda; mas não é difícil imaginar uma situação na qual professores decentes passem a ser perseguidos com base nesta lei. Afinal de contas, se é para haver “pluralismo de idéias”, então um professor que diga que os homens e as mulheres são naturalmente diferentes entre si precisa, também, contrabalancear esta afirmação dizendo igualmente — e de forma neutra, isenta — que há quem diga que ser homem ou ser mulher é meramente uma construção social, e que qualquer das duas teorias é em princípio aceitável. Do mesmo modo, uma professora de biologia que diga que a vida do indivíduo humano se inicia com a concepção deverá, de maneira equilibrada e imparcial, afirmar que há também quem diga que ela só inicia em outro momento — com a nidação, a formação do sistema nervoso central ou sabe-se lá o quê, e antes disso o embrião ou o feto humano não passa de um punhado de células com as quais é possível fazer qualquer coisa. Em suma: a lei, que objetiva dar espaço à verdade no meio de um oceano de mentiras, pode muito facilmente ser usada para exigir que a mentira seja introduzida naqueles (já escassos!) espaços onde a verdade é privilegiada.

Não vou me alongar muito. Não sei exatamente o que pensar sobre o projeto; por um lado intuo que a gritaria das esquerdas é sinal de que o Nagib acertou no ponto correto e, ao mesmo tempo, não quero simplesmente fazer “fogo amigo” contra pessoas que têm uma visão de mundo correta, sadia e necessária. Por outro lado, compreendo as ressalvas que outras pessoas — também católicas, também sérias, também preocupadas com os rumos da sociedade — fazem a respeito do projeto, e até faço minhas algumas delas. Arrisco-me a dizer somente duas coisas.

Uma: que o efeito simbólico do projeto de lei pode ser salutar. O próprio Miguel Nagib já disse que, no seu projeto, “o que interessa é o cartaz com os deveres do professor”. Talvez fosse interessante, então, remover os elementos burocráticos que podem dar azo a perseguições políticas e insistir somente no constrangimento que o cartaz onipresente pode provocar em educadores picaretas. A lei assim não haveria de ensejar punições administrativas; mas teria um efeito retórico que talvez não seja de se negligenciar.

Duas: que o mais importante em matéria de educação é firmar independência frente ao Estado, e não chamá-lo para tutelar os interesses legítimos da sociedade! O importante é que os pais eduquem os filhos — e exijam que eles sejam bem educados se, por acaso, precisarem terceirizar este seu dever. O importante é garantir o direito de ensinar o que é correto, e não demandar que o Estado exija quotas iguais para a verdade e para a mentira a todos os que exercem o múnus da docência. Não é suficiente fazer concessões para limitar o avanço do mal; é preciso, corajosamente e com uma santa altivez, fazer o bem. De peito aberto, de fronte erguida, sem a ninguém dever nada.