III
Respeito e devoção com que se deve celebrar
Em segundo lugar, é necessário que o sacerdote celebre a missa com respeito e devoção. Sabe-se que o uso do manípulo foi introduzido, para que o padre enxugasse as lágrimas; porque outrora tais sentimentos de devoção experimentavam os sacerdotes, ao celebrarem, que não faziam senão chorar.
Já dissemos que o padre ao altar é o representante do próprio Jesus Cristo, como escreveu S. Cipriano. É nesta qualidade que diz: Hoc est corpus meum; hic est calix sanguinis mei. Mas, ó Céu! Que lágrimas, que lágrimas de sangue se deveriam chorar, quando se pensa no modo como a máxima parte dos padres celebram a missa! Causa pena, digamo-lo, ver o desprezo com que Jesus Cristo é tratado por tantos padres, até religiosos, e pertencentes a Ordens reformadas! Ao ver-se a negligência com que esses padres de ordinário dizem a missa, bem se lhes poderia fazer a censura que Clemente de Alexandria dirigia aos sacerdotes pagãos: que faziam do Céu um teatro, e de Deus o objeto da sua comédia. E que direi? Uma comédia! Ó, se eles tivessem um papel a representar no teatro, que cuidado empregariam! Ao contrário, que fazem eles ao altar? Truncam palavras, fazem genuflexões que mais parecem atos de desprezo e faltas de respeito; traçam bênçãos que não se sabe o que são; esboçam gestos ridículos; falam às rubricas, antecipando cerimônias e misturando-lhes palavras. E no entanto a verdade é que essas rubricas todas são de preceito, por isso que S. Pio V, na bula que pôs à frente do missal, manda districte, in virtute sanctae obedientiae, que a missa seja celebrada segundo as rubricas do missal. Donde resulta que quem transgride as rubricas não pode eximir-se de pecado, que será grave desde que a matéria o seja.
Tudo isso procede do desejo de chegar de pressa ao fim da missa. Celebram- na como se a igreja estivesse a desabar, ou como se os bandidos se avizinhasse e não restasse tempo para a fuga.
Eis um padre que, depois de ter dado horas inteiras a uma vida inútil, ou a negócios mundanos, lá vai a celebrar a missa todo apressado!
Começa com precipitação, prossegue do mesmo modo; chega à Consagração, toma Jesus Cristo nas suas mãos, e comunga-o com tanta irreverência como se ali só houvesse um bocado de pão! Seria necessário que tais padres sempre tivessem ao seu lado alguém, para lhes dizer o que um dia o venerável João de Ávila, chegando-se ao altar em que celebrava um desses, lhe disse: “Por piedade tratai-o melhor, que é o filho dum pai respeitável”.
Queria o Senhor que os sacerdotes da Lei antiga tremessem de santo respeito ao aproximarem-se do santuário. E um sacerdote da Lei nova, achando-se ao altar, em presença do próprio Jesus Cristo, a falar-lhe, a toma-lo nas suas mãos, a oferecê-lo a Deus-Pai, a alimentar-se dele, — mostra-se tão irreverente! Na Lei antiga, ameaçou o Senhor com muitas maldições os sacerdotes que fossem negligentes nas cerimônias desses sacrifícios, que eram apenas uma mera figura do nosso: Se cerrares os ouvidos à voz do Senhor teu Deus, que te manda guardar as cerimônias, virão sobre ti todas estas maldições… Serás maldito na cidade e maldito nos campos. Dizia Sta. Teresa: “Pela mínima cerimônia da Igreja, daria eu mil vezes a minha vida”. E o padre as despreza! Ensina o Pe. Suarez que a omissão de qualquer cerimônia, na missa, não pode escusar-se de pecado. Muitos doutores ajuntam que uma negligência notável nas cerimônias pode chegar a pecado mortal.
Na nossa Teologia moral demonstramos, com a autoridade de muitos doutores, que o que celebra em menos de um quarto de hora não pode escusar-se de falta grave, e isto por duas razões: primeira, por causa da irreverência contra o sacrifício, resultante da sua precipitação; segunda, por causa do escândalo que dá ao povo.
Quanto ao respeito devido ao divino sacrifício, já citamos o que diz o Concílio de Trento: que a missa deve ser celebrada com a máxima devoção possível. E ajunta que a falta de respeito, mesmo exterior, constitui uma irreverência, que de algum modo chega a ser impiedade. Assim como as cerimônias, quando são bem feitas, infundem e significam respeito; também quando são mal executadas denotam irreverência que, em matéria grave, é um pecado mortal. Deve-se notar além disto que, para nas cerimônias haver o testemunho de respeito, que convém a um tão grande sacrifício, não basta fazê-las; porque uma pessoa qualquer poderia ter a língua assaz desembaraçada e os movimentos bastante livres para expedir tudo isso em menos de um quarto de hora; mas é preciso que sempre sejam feitas com a gravidade conveniente, que pertence também intrinsecamente ao respeito que se deve ter pela missa.
Por outro lado, celebrar a missa em tão pouco tempo é falta grave, em razão do escândalo que se dá aos fiéis que assistem a ela. Sobre este ponto, é necessário considerar ainda o que noutro lugar diz o Concílio de Trento: que as cerimônias da missa foram instituídas pela Igreja, para inspirar aos fiéis uma alta idéia deste augusto sacrifício, e toda a veneração devida aos divinos mistérios que encerra. Ora, quando estas cerimônias são feitas muito à pressa, nenhuma veneração inculcam ao povo, antes lhe fazem perder o respeito que merece um mistério tão santo. Observa Pedro de Blois que os padres que celebram com pouco respeito, dão ocasião a que os fiéis façam pouco caso do Santíssimo Sacramento. Não se pode dar um tal escândalo sem se incorrer em pecado mortal. Também o Concílio de Tours, em 1583, mandou que os sacerdotes fossem bem instruídos nas cerimônias da missa, para não destruírem a devoção no coração das suas ovelhas, em vez de as levarem à veneração pelos ministérios sagrados.
Celebrando sem devoção, — como querem esses padres obter de Deus graças, sendo certo que ao oferecerem o santo sacrifício, o ofendam e, quanto deles depende, mais o desonram do que o honram? O padre que não acreditasse no Sacramento do altar, sem dúvida ofenderia a Deus; mas quanto mais o ofende o que nele crê e não só lhe recusa o respeito que lhe é devido, senão que ainda é causa de que outros, à vista da sua conduta, lhe percam igualmente o respeito? Os judeus a princípio respeitaram Jesus Cristo, mas, quando o viram desprezado pelos sacerdotes, perderam então a alta idéia que tinham dele, e acabaram por gritar com os sacerdotes: Tolle, tolle, crucifige eum! Do mesmo modo, para não sairmos do nosso assunto, os seculares que hoje vêem os padres a celebrar com tanta irreverência, perdem toda a estima e veneração por este divino mistério.
Uma missa, celebrada com recolhimento, inspira devoção aos assistentes; pelo contrário, faz-lhes perder a devoção e quase a fé também, quando celebrada sem piedade. Eis um fato passado em Roma e que me foi contado por um religioso de todo o crédito. Tinha um herege resolvido renunciar aos seus erros; mas, tendo visto celebrar a missa sem devoção, foi ter com o papa e disse-lhe que não queria abjurar, porque estava persuadido de que nem os padres nem o papa tinha na Igreja católica uma fé verdadeira: “Se eu fosse papa, dizia ele, e soubesse que um padre celebrava a missa com tão pouco respeito, mandava-o queimar vivo; ao ver porém que os padres dizem assim a missa e não são castigados, persuado-me de que nem o próprio papa acredita nela”. Dito isto, retirou-se, e não consentiu que lhe falassem mais em abjuração.
Mas objetam certos padres que os leigos se queixam, quando a missa se prolonga. — O quê! Então, lhes respondo eu de pronto, a pouca devoção dos seculares há de ser a regra do respeito devido ao santo sacrifício! Ouçam mais: se os padres celebrassem a missa com o devido respeito e gravidade, os seculares se compenetrariam da veneração a prestar a tão grande mistério, e não lamentariam a meia hora que lhe devessem consagrar. Como porém, de ordinário, a missa é tão breve e nenhuma devoção inspira, os seculares à imitação dos padres, assistem a ela sem devoção, e com pouca fé; quando vêem que ela dura mais de um quarto de hora, aborrecem-se e queixam-se, em razão do mau hábito contraído. Assim, os mesmos que sem dificuldade passam muitas horas a uma mesa de jogo, ou numa praça pública, desperdiçando o tempo, não podem sem tédio gastar uma meia hora a ouvir missa! A causa de tudo isso são os padres: É convosco que falo, ó sacerdotes, que desonrais o meu nome e dizeis: Como desonramos nós o vosso nome? Nisso que dizeis: A mesa do Senhor é de pouca importância. O pouco que os padres se importam do respeito devido à missa, faz que também os outros a desprezem.
Pobres padres! Ao saber que um sacerdote acabava de morrer após a sua primeira missa, o venerável João de Ávila exclamou: “Ó que terrível conta esse padre tem de prestar a Deus, por essa primeira missa!” À vista disso, que se deverá dizer dos padres que, no decurso de trinta ou quarenta anos, cada dia deram ao altar o escândalo de que vimos falando! E, repito, — como poderão tais padres tornar o Senhor propício e obter graças da sua misericórdia, celebrando a missa de modo antes a ultrajá-lo que a honrá-lo? Todos os crimes são expiados pelo sacrifício, diz o papa Júlio, mas por que oferenda se há de reparar a ofensa feita ao Senhor, se é na mesma oblação do sacrifício que se peca? Pobres padres! E pobres bispos que permitem a tais padres celebrarem! Segundo o decreto do Concílio de Trento, são os bispos obrigados a impedir as missas celebradas com irreverência. Notem-se estas expressões: Prohibere curent ac teneantur; significam elas que os bispos estão obrigados a suspender os que celebram sem respeito conveniente; e esta obrigação tanto abrange os sacerdotes regulares como os outros, visto que os bispos a esse respeito são constituídos pelo Concílio legados apostólicos, e por isso obrigados a vigiar pelas missas que se dizem nas suas dioceses.
E nós, padres, irmãos meus, cuidemos de nos corrigir: se no passado temos celebrado o santo sacrifício com pouca devoção e respeito, atalhemos ao mal, ao menos daqui para o futuro. Antes de celebrar, pensemos no que vamos fazer: é a ação maior e mais santa que um homem pode realizar. Demais, que grande bem é uma missa celebrada com devoção, grande bem para o celebrante, e para os ouvintes! — Eis como João Herolt, de sobrenome o Discípulo, fala aos que assistem à missa: Quando fazeis a vossa oração na igreja, na presença de Deus, mais seguramente ela é ouvida… porque todo o sacerdote está obrigado a orar pelos assistentes em cada missa. Ora, se a oração dum secular, quando feita em união com a do celebrante, é mais prontamente ouvida de Deus, quanto mais ainda a do próprio sacerdote, se celebra com devoção! Um padre que oferece todos os dias o santo sacrifício com alguma devoção, há de receber sempre de Deus novas luzes e novas forças. Jesus Cristo o instruirá, o consolará, o animará cada vez mais, e lhe concederá as graças que deseja.
É sobretudo depois da consagração que o padre pode estar seguro de conseguir do Senhor todas as graças que pede. O venerável Pe. Antônio Colelis dizia: “Quando celebro e tenho o meu Jesus nas minhas mãos, consigo dele quanto quero”. O celebrante obtém o que quer para si e para os que assistem à missa. Lê-se na Vida de S. Pedro de Alcântara que as missas fervorosas que celebrava produziam mais fruto, que todos os sermões dos pregadores da província em que estava. Quer o Concílio de Rodez que os padres pronunciem as palavras e façam as cerimônias com uma devoção, que dê testemunho da sua fé e amor para com Jesus Cristo, presente no altar. A compostura exterior, diz S. Boaventura, manifesta as disposições interiores do celebrante. Recorde-se aqui de passagem o que ordenou Inocêncio III: Nós ordenamos também que os oratórios, os vasos, corporais e alfaias sagradas se conservem em perfeita limpeza; porque é de todo o ponto contrário ao bom senso abandonar as coisas santas a uma imundícia, que não se sofria nem mesmo nas coisas profanas. Ai! Tinha o papa toda a razão para assim falar, porque se encontram padres que não se envergonham de celebrar com corporais, sanguíneos e cálices, de que não quereriam servir-se à sua mesa.
[Santo Afonso de Ligório, “A Selva”, para ordenandos e sacerdotes; download em .pdf aqui]