Dois assuntos que, nos últimos dias, ganharam uma certa projeção e merecem alguns comentários.
Em primeiro lugar, saiu no início da semana um artigo no L’Osservatore Romano no qual criticava-se a utilização do conceito de “morte cerebral” como parâmetro para se aferir o fim da vida humana. A mídia brasileira não perdeu tempo e, no dia seguinte, anunciou aos quatro ventos que, “para o Vaticano, morte cerebral não caracteriza mais morte”. A manchete é claramente tendenciosa e tenta induzir o leitor menos atento a acreditar que o Vaticano tenha mudado alguma coisa; sobre o assunto, inclusive, o Marcio Antonio escreveu muito bem no seu BLOG (aliás, aproveito o ensejo para anunciar que o jornalista está com um excelente blog na Gazeta do Povo sobre ciência e religião, recém-saído do forno, chamado TUBO DE ENSAIO; vale a pena conferir).
Quanto a isso, é importante salientar que não existe posição definitiva da Igreja sobre o assunto; a tendência dos últimos anos é a de se considerar, sim, que a “morte cerebral” coincide com a “morte” no sentido teológico do termo (i.e., a separação entre o corpo e a alma) e que, por conseguinte, é lícita a doação de órgãos. Neste sentido, há um pronunciamento do Papa João Paulo II em agosto de 2000 que diz o seguinte:
Diante dos parâmetros hodiernos de certificação da morte quer se refira aos sinais “encefálicos”, quer se faça recurso aos mais tradicionais sinais cardiorrespiratórios a Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa, evidenciando semelhanças e eventuais contradições, que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente adoptado, isto é, a cessação total e irreversível de toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia.
Não obstante, tal pronunciamento de maneira alguma pode ser considerado como uma definição dogmática, de modo que é perfeitamente lícito discordar desta posição e debater o assunto (como o fizeram os signatários do já citado artigo que foi publicado no L’Osservatore). Deste modo, no que concerne à aceitação da Igreja da definição de morte cerebral, temos que (1) a posição da Igreja inclina-se atualmente para a licitude da doação de órgãos (como conseqüência do reconhecimento de que o critério de “morte cerebral” é realmente um indicativo da morte humana); (2) o artigo publicado no L’Osservatore não é uma “mudança de opinião” do Vaticano, como foi noticiado nos jornais tupiniquins; e (3) nada impede que a posição da Igreja, devido ao avanço científico, venha a ser reconsiderada no que concerne a esta questão, posto que o conceito de “morte cerebral” é um conceito científico, não religioso e, portanto, foge à alçada da Igreja (devendo Ela “somente” se pronunciar sobre se estes conceitos são ou não compatíveis com a realidade humana considerada em sua integridade).
A outra questão – levantada por ocasião do debate sobre o assassinato de crianças anencéfalas – pode ser resumida no seguinte: se o critério de “morte cerebral” pode ser usado para assinalar o fim da vida, e tal utilização é adotada inclusive pela Igreja, por que o mesmo critério não pode ser usado para se demarcar o início da vida humana e, destarte, considerar como “mortos” os fetos portadores de anencefalia? A resposta – por mais que possa soar ridícula – é muito simples: não pode, porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Na verdade, o conceito de “morte cerebral” não se assenta sobre um reconhecimento de que, sem o cérebro, o homem não existe; não tem nada a ver com a “consciência”, ou o “pensamento” do sujeito. A questão é que o funcionamento do corpo inteiro é controlado pelo sistema nervoso e, este falhando, todo o corpo inevitavelmente falha também. Após a morte cerebral, já que o sistema nervoso “morto” deixa de controlar os demais órgãos do corpo, todos eles deixam de funcionar em seguida – a menos que sejam mantidos artificialmente em funcionamento.
Coisa diametralmente oposta ocorre no início da vida humana: em um embrião cujo sistema nervoso ainda não está formado, não só o seu desenvolvimento transcorre naturalmente, como ainda o próprio sistema nervoso é formado a partir do zigoto. Ou seja, se é verdade que, no fim da vida, o sistema nervoso é o “responsável” pelo funcionamento do organismo inteiro, no início da vida ocorre o contrário e o organismo já existente é auto-sustentável, sendo inclusive responsável pelo desenvolvimento do seu sistema nervoso. Na morte cerebral, a falha irreversível do sistema nervoso vai fazer com que todo o organismo venha a falecer; nos estágios embrionários do desenvolvimento humano, o organismo não só funciona perfeitamente sem o sistema nervoso como também vai produzi-lo no decorrer do seu desenvolvimento. Portanto, é evidente que são situações completamente distintas e – poder-se-ia dizer – até opostas.
Não é, portanto, um imperativo lógico que duas coisas distintas sejam tratadas de maneira idêntica; ao contrário, isto é irracional. Não é verdade que a Igreja não possa aceitar o conceito de morte cerebral se afirma haver vida nos fetos anencéfalos, e nem que Ela precise concluir que os fetos anencéfalos não estão vivos se considera o critério de morte cerebral como válido para a constatação da morte humana. Coisas distintas devem ser distintamente tratadas. No mais, é só mais um sofisma dos abortistas de todos os naipes. Nada de novo sob o sol.