Hoje é a festa de Nossa Senhora do Carmo e calhou de eu me encontrar em João Pessoa; há lá uma bela igreja erigida em honra à Virgem do Carmelo, que eu não conhecia e que remete ao século XVI. Aos alvores portanto da colonização brasileira; à tenra infância da Terra de Santa Cruz. Contemplar aquele templo é contemplar, em um lance de vista, todo o tempo transcorrido daquela época aos dias de hoje. Há nisto duas coisas que me chamaram particularmente a atenção nesta visita despretensiosa e não planejada. Admira o que se perdeu; é de se pasmar o que se manteve.
Singela a igreja. É tombada pelo IPHAN e, como é infelizmente comum acontecer nestes casos, não se encontra no seu melhor estado de conservação. Todavia esta circunstância, providencial, tornava a edificação toda ainda mais admirável aos meus olhos. Hoje em dia as coisas que construímos se desfazem com assustadora facilidade; a cultura do descartável, presente nas roupas e nos aparelhos eletrônicos, já se espraia confortavelmente sobre o mercado automobilístico e parece exigir seu espaço também nas nossas construções. Lembro o viaduto que caiu em Minas Gerais durante a Copa ou o a ciclovia tragada por um vagalhão no Rio de Janeiro ainda este ano; e hoje, na Igreja do Carmo, eu olhava para cima — o teto estava nu, sem o forro, mostrando apenas as vigas de madeira cobertas de telhas — e pensava em como os nossos antepassados se sentiriam se pudessem conversar com os nossos engenheiros e mestres-de-obras sobre a durabilidade das edificações do século XXI.
Porque não deixa de haver nisso uma espécie de “moral da história”, como se da comparação entre as velhas igrejas e os passeios modernos pudesse exsurgir uma parábola — se não a respeito da verdade das coisas, ao menos da maneira diferente como os nossos antepassados e os nossos contemporâneos concebiam e concebem as suas obras. Parece que em algum momento da história nós já construímos coisas para durar até a Segunda Vinda de Cristo; e, hoje, com todo o progresso e toda a técnica de que dispomos — ou talvez até mesmo por conta destes progressos e técnica –, nós realizamos obras para serem substituídas dentro de um espaço de tempo cada vez mais curto. Nós já acreditamos na Eternidade e, disto, os templos antigos nos dão testemunho; hoje não acreditamos em nada além de nós mesmos, e as coisas que construímos são feitas para morrer conosco. Tudo isso me dizia a igreja quinhentista, e eu não podia senão concordar com ela: chega a ser impressionante como foi possível termos regredido tanto em apenas quatro séculos.
Mas talvez até mais impressionante do que o declínio da arquitetura seja a preservação da Fé; e, hoje, ao final da solene celebração de Nossa Senhora do Carmo, um irmão terciário dizia, com orgulho, que o Sodalício Carmelita da Parahyba (ele não disse deste jeito; assim chamo-o eu) tinha 310 anos. “Só não é mais antigo que o de Recife” — e eu não pude conter um sorriso ufano. Bairrismos à parte, o que importa é perceber como a festa atravessa gerações e chega ao nosso século ateu, se não com a vivacidade original, ao menos com algo daquele antigo frescor. Algo que se recusa a passar. “Temos até algumas orações e cânticos em latim, que os bispos sempre nos deixaram manter”.
E isto, na verdade, é uma vitória retumbante, um triunfo glorioso, um refrigério do Céu que nos permite manter acesa a chama da esperança: enquanto as obras deste século ruem estrondosamente e jazem no chão, os servos da Virgem ainda hoje cantam as glórias da Rainha do Carmo — e cantam-nas nos templos que foram construídos para durar até a consumação dos séculos porque Aquela em cuja honra eles foram levantados não passará jamais. As antigas construções são em si mesmas uma profissão de Fé. Ela vencerá o mundo porque a cada ano, a cada festa, a cada nova geração ela é renovada. Sempre haverá quem ouse desfraldar bem alto o estandarte da Virgem; sempre haverá porque até hoje não faltou quem o desfraldasse.
O Imaculado Coração da Virgem triunfará. Acima de todas as coisas que passam reina a Senhora do Carmo, e a vitória d’Ela é tão certa quanto o raiar de um novo dia após uma noite longa, por escura que ela seja. O mundo dá voltas mas o Carmelo permanece — é o testemunho que cada 16 de julho dá ao mundo. Não precisamos nos atormentar. Acima de nós e a nos proteger, resplandece e fulgura Aquela que é o esplendor do Céu.