O Diário de Pernambuco publicou recentemente uma matéria sob a manchete «Cães e gatos podem ir ao céu? Frase do Papa Francisco reabre discussão»; lê-la é uma daquelas experiências que nos dão alguma dimensão de o quanto o homem moderno está perdido, sem fazer a mais remota idéia daquilo do que fala.
O nonsense perpassa a reportagem inteira. Logo no subtítulo, é possível se ler que o «[t]ema é controverso na Igreja Católica, com opiniões contrárias e a favor». Ora, isso é um completo disparate: não há e nem pode haver controvérsia alguma com relação a isso, que envolve aspectos tão básicos do Cristianismo que qualquer conhecimento mínimo seu revela, de maneira cabal e evidente, o quanto a discussão toda é embaraçosamente estapafúrdia e sem lógica.
“Céu”, no sentido estrito, é o estado de amizade definitiva com Deus do qual gozam os Bem-Aventurados. Amizade, na medida que envolve uma relação entre duas pessoas, pressupõe e exige uma natureza racional: dotada de inteligência e vontade, capaz de conhecer o outro e querê-lo. Não tem lógica absolutamente nenhuma perguntar-se, por exemplo, se uma pedra ou uma árvore pode “gozar da amizade de Deus” (!): tais seres não possuem a natureza necessária ao estabelecimento de uma relação interpessoal – e, por conseguinte, nem muito menos podem “ir ao Céu”, que é a realidade relacional por excelência.
Os únicos seres capazes do Céu são, portanto, por definição de «Céu», aqueles que possuam natureza racional: que sejam dotados de inteligência e de vontade. A única possibilidade, assim, de “animais irem ao Céu”, para que essa pergunta fizesse algum sentido, seria se os animais fossem seres espirituais, capazes de estabelecer uma relação pessoal com os seres externos a eles. E, embora haja de fato quem queira atribuir inteligência a – e.g. – golfinhos, o fato totalmente indiscutível é que, no âmbito da filosofia católica, semelhante hipótese não foi jamais aventada. Nenhum santo, Papa ou mesmo teólogo católico afirmou, nunca, que os animais possuíssem alma racional. O tema não é controverso: é ponto pacífico mesmo entre as mais distintas correntes heterodoxas que a História viu surgirem em vinte séculos de Cristianismo. Ninguém, no Oriente ou no Ocidente, na antiguidade ou no mundo contemporâneo, entre os protestantes ou os ortodoxos orientais, ninguém jamais pretendeu que os animais possuíssem alma como a do homem!
Fiz questão de destacar alma racional e como a do homem acima porque (e isso é também ponto pacífico na filosofia católica) todos os seres vivos possuem alma. As pedras, por exemplo, são seres inanimados; mas as plantas possuem alma vegetativa, os animais, sensitiva, e, o homem, intelectiva (também dita racional, ou espiritual). Isso é outra coisa sobre a qual ninguém discute; confira-se a Summa, I-a Pars, q.78. Não é, portanto, verdade que o «Papa João Paulo II causou frisson em 1990 ao dizer que os animais possuíam alma», como afirmou o Diário de Pernambuco: quem disse isso foi Santo Tomás na Idade Média, repetindo o que Aristóteles já dissera na Antiguidade Clássica, e tal jamais provocou “frisson” algum – porque é óbvio!
São, portanto, três coisas bastantes simples, fáceis de entender e sobre as quais não há nem nunca houve controvérsia alguma na Igreja:
- todos os seres vivos – as plantas e os animais inclusive – possuem “alma”;
- apenas os seres humanos possuem alma racional;
- “pecado”, “salvação” e “Céu” são realidades somente aplicáveis aos seres racionais.
A conclusão, evidente, é que não existe sentido nenhum em se perguntar se os cães e gatos podem “ir ao céu”, e nem muito menos em rematar uma matéria nonsense sobre o assunto afirmando que «[o] Papa Francisco está escrevendo uma encíclica sobre questão (sic) ambientais, mas não se sabe se ele vai tocar no assunto». Ora, não há um “assunto” aqui para ser tocado. Ler uma coisa dessas dá vergonha.
E o pior é que haveria espaço para se escrever alguma coisa lógica sobre o tema. Por exemplo, “Paraíso” é uma expressão multívoca, que designa tanto o estado de visão beatífica das almas que morrem na amizade de Deus quanto o próprio mundo material criado que se há de transformar após o Juízo Final: os «novos céus e nova terra» de que fala o Apocalipse. Sobre estes, ensina o Catecismo (cf. até o parágrafo 1060):
1046. Quanto ao cosmos, a Revelação afirma a profunda comunidade de destino entre o mundo material e o homem:
Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus […] com a esperança de que as mesmas criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza […]. Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente, esperando a adopção filial e a libertação do nosso corpo» (Rm 8, 19-23).
1047. Assim, pois, também o universo visível está destinado a ser transformado, «a fim de que o próprio mundo, restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço dos justos», participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado.
Algumas perguntas poderiam ser colocadas aqui: como será esse cosmos «restaurado no seu estado primitivo»? De que maneira se dará essa transformação do «universo visível»? De modo mais específico: o quê, exatamente, haverá nos «novos céus e nova terra»? Árvores? Plantas? Rios e cachoeiras? Animais…?
Note-se que a pergunta sobre se haverá animais após a Ressurreição da Carne é completamente diferente da primeira, se os «cães e gatos podem ir ao céu»! Nesta, eles seriam sujeitos da Redenção, o que é um completo absurdo e nonsense; naquela, pergunta-se qual o papel do mundo visível (incluídos aí os animais, mas também as plantas e o mundo inorgânico) no mundo futuro que Deus tem planejado para os que O amam. E, não, perguntar se ainda haverá praias e montanhas após o Juízo Final não é o mesmo que perguntar se as montanhas e praias “vão ao Céu” quando deixam de existir. Ser incapaz de separar uma coisa da outra não é senão um sinal de que não se sabe (mais) o que é o homem, o que o mundo, o que é o Paraíso – e, mesmo assim, tem-se a pretensão de informar os outros sobre o assunto.