Encontrei um pequeno texto – disponível no blog “Pacientes na Tribulação” – que se chama “O esplendor da hipocrisia” e se presta a atacar o Veritatis Splendor por um artigo sobre o Magistério da Igreja que foi publicado lá no final do mês passado. Ao terminar de ler o texto – do “Pacientes na Tribulação” -, fico com a incômoda impressão de que o seu autor incorre quase no mesmo erro de que acusa o Veritatis.
Este é acusado de falsificar os “argumentos tradicionalistas”:
Argumento Tradicional: O Magistério Ordinário pode ser rejeitado quando apresentar erros contra a Fé.
Deturpação do argumento: o Magistério Ordinário pode ser rejeitado sempre e livremente
Oras, eu não tenho procuração para defender o Veritatis Splendor, mas há dois problemas com o “argumento tradicional” da maneira como é apresentado que preciso apontar. Primeiro problema: é necessário demonstrar de maneira clara e insofismável que o Magistério Ordinário é passível de apresentar erros contra a Fé, pois esta proposição é bastante discutível (aliás, antes disso, é necessário definir precisamente o que significa “Magistério Ordinário”). Segundo problema (e este é o mais sério): concedendo que seja possível ao Magistério Ordinário apresentar erros contra a Fé, a quem compete julgar se, num situação concreta, tal coisa se observa ou não?
Às vezes, eu tenho a impressão de que alguns “tradicionalistas” comportam-se como se a existência de “erros contra a Fé” nos textos conciliares fosse uma evidência incontestável. Como se o Concílio tivesse dito expressa e inequivocamente heresias. Justamente os que acusam o Concílio de “ambigüidade”, agem no entanto como se o seu problema fosse não este, e sim o de heresias explícitas. Lembram-me um pouco alguns que se dizem agnósticos e, começando por dizer que não dá para saber se Deus existe, comportam-se contudo como se fosse certa a Sua não-existência.
Os supostos “erros contra a Fé” do Vaticano II são extremamente discutíveis. Não apenas por mim, porque a minha opinião tem bem pouca importância: os Papas – portanto, o Magistério – nunca afirmaram que houvesse erro contra a Fé no Concílio e, ao contrário, sempre corroboraram a sua ortodoxia e a sua perfeita harmonia com a Doutrina Tradicional. Se, portanto, o “argumento tradicional” diz que só se pode rejeitar o Magistério Ordinário quando este contém “erros contra a Fé”, tal argumento não justifica a rejeição do Vaticano II, posto que o Magistério da Igreja (o único intérprete autorizado do Concílio) já afirmou que este não contém erros contra a Fé.
A menos que seja possível ao leigo contradizer o Magistério da Igreja e afirmar que existem erros onde o Magistério diz que eles não existem; a menos que seja da competência de qualquer fiel julgar os textos magisteriais para discernir, por conta própria, se, neles, há erros ou não há. E, se for este o “argumento tradicional”, então a “deturpação” do Veritatis corresponde quase perfeitamente à realidade: se qualquer um pode “sempre e livremente” pegar os textos do Magistério e sentenciar por conta própria que eles contêm “erros contra a Fé”, então isso é, na prática, equivalente a dizer que qualquer um pode, sim, rejeitar sempre e livremente o Magistério Ordinário, bastando para isso proferir a sentença condenatória de heresia. Apresentando, pois, o “argumento tradicional” de uma forma abstrata e destoante da sua aplicação concreta na realidade, há pelo menos tanta “falsificação” aqui quanto na caricaturização feita pelo Veritatis.
Quanto a isso, por fim, já houve – e, aliás, ainda há – na história da Igreja uma coisa muito parecida com isso, só que ao contrário: quando da condenação do Jansenismo, alguns católicos disseram que, nos textos de Jansenius condenados, não havia heresia, a despeito dos papas afirmarem com muita clareza que, sim, havia. Existe um interessante artigo (cuja leitura vale muito a pena – procurem por The heresy of the anti-Jansenist popes) “provando” que os Papas da época cometeram heresias, ao condenar proposições que não poderiam ser condenadas (porque – óbvio, segundo eles – já aprovadas anteriormente pela Igreja). Tal artigo prova que há heresia em Inocente X, Clemente XI, e até mesmo em São Pio V (!). Note-se que é um artigo atual; há, hoje em dia, pessoas defendendo essas coisas. Estes tradicionalistas que se auto-atribuem o múnus de contradizer os papas no tocante ao Vaticano II agem, provavelmente sem o saber, com a exata mesma mentalidade dos que se permitem dizer que a condenação do jansenismo foi herética. Não acredito, ao contrário do “Pacientes na Tribulação”, que haja uma argumentação hipócrita nestes que me proponho a refutar aqui; no entanto, há – para dizer o mínimo – sem dúvidas uma excentricidade, que não é sadia e não faz bem à Igreja de Nosso Senhor.