A foto abaixo tornou-se viral na semana passada; não sei exatamente em que contexto ela foi tirada (pelo que li nas redes sociais, teria sido uma manifestação da CUT da qual participou o frei Aloísio Fragoso — isso contudo pouco importa), mas ela se presta bem para falarmos um pouco sobre o que há de errado com determinada visão religiosa contemporânea. Para representá-la, essa imagem é de uma preciosidade ímpar.
A primeira coisa errada nesta foto é a forte conotação político-partidária que ela apresenta. A política, no sentido clássico, da arte relacionada ao cuidado das coisas públicas — da polis, da cidade — é uma coisa conatural ao ser humano: viver em sociedade é, sempre e necessariamente, de algum modo fazer política. Mas não é este o sentido corrente do termo, e (principalmente!) não é este o sentido que se depreende de uma imagem onde se protesta contra uma decisão judicial que condenou um ex-presidente por corrupção e lavagem de dinheiro. O sr. Luís Inácio, ali, não está retratado como um cidadão esmagado sob a tirania estatal: é um líder político a cuja defesa o manifestante empresta o próprio nome, a honra, tudo.
Ora, isso não tem nada a ver com religião e além disso: a religião é tanto mais importante quanto mais consegue fazer as pessoas perceberem a mesquinharia dessas lutas conjunturais pelo poder terreno. A frase da coroação dos papas — sic transit gloria mundi — tem muito a ensinar tanto aos que assumem poderes temporais (os Papas, lembremo-nos, governavam os Estados Pontifícios) como também àqueles que se sujeitam aos poderes constituídos: todas essas coisas passam e, portanto, não vale a pena dedicar-lhes a própria vida com este devotamento religioso tão comum de se encontrar no Brasil de hoje em dia. É saudável manter uma relativa distância das disputas político-partidárias. Quem não o faz corre o risco de passar vexame.
A segunda coisa terrivelmente errada com a imagem é a blasfêmia grosseira em que consiste a comparação. Nosso Senhor Jesus Cristo era verdadeira e propriamente um inocente, no sentido mais próprio, ontológico em que se pode afirmar a inocência de alguém. Ele era a própria Inocência encarnada e pendurada em um madeiro. Ora, quem, por cândido e puro que seja, pode se afirmar inocente assim? Quem ousaria se comparar ao Filho de Deus?
Uma pessoa realmente inocente se sentiria aliás ofendida com a comparação. Algum místico espanhol (Santa Teresa? São João da Cruz? Agora não me recordo…) certa feita estava sendo terrivelmente caluniado. Perguntaram-lhe se eram verdadeiras aquelas coisas. O santo respondeu algo como: “meu filho, essas coisas que estão falando de mim são tudo mentira. No entanto, eu já fiz tantas coisas horríveis e das quais ninguém ficou sabendo que tomo umas pelas outras e ainda saio no lucro”.
Com certeza os nossos tribunais estão repletos de sentenças injustas, e com certezas há inocentes injustamente condenados. Mas o máximo que se pode dizer de qualquer ser humano é que ele seja inocente do crime pelo qual foi condenado. Assumamos, unicamente para argumentar, que o sr. Luís Inácio não tenha realmente nada a ver com o Triplex do Guarujá. Isso o faria inocente, sim, mas de uma inocência por assim dizer relativa: ele seria inocente de ter recebido propina de um construtora. Este é o máximo de inocência a que ele pode aspirar. Aliás, este é o máximo de inocência a que qualquer ser humano pode aspirar.
Coisa completamente diferente é o caso de Cristo — e espanta que um líder religioso não perceba esta coisa tão básica! Ora, Nosso Senhor não era somente inocente da acusação de blasfêmia que os judeus Lhe lançaram: Ele era inocente completamente, inocente simpliciter, inocente de toda e qualquer culpa porque Ele jamais cometeu pecado algum. Não dá, simplesmente não dá para comparar Nosso Senhor nem mesmo com a vítima da maior injustiça que Thêmis tenha algum dia sido capaz de cometer.
A terceira coisa errada, terrivelmente errada com a imagem é a figura nela retratada. Admitir-se-ia, vá lá, mesmo com a impropriedade da comparação, que Cristo Crucificado fosse comparado com a inocência de uma criança covardemente assassinada. Agora compará-Lo logo com o senhor Luís Inácio…! Ninguém em sã consciência acredita de verdade na inocência do ex-presidente. O máximo a que consegue chegar a militância minimamente pensante é dizer que ele foi condenado sem provas. Ora, qualquer pessoa que tenha uma compreensão ainda que rudimentar de como funciona a justiça sabe que uma coisa é não haver provas e outra, completamente diferente, é o acusado ser inocente. Provas por provas, também não as há de que o goleiro Bruno tenha assassinado Eliza Samudio. Alguém cogitaria retratá-lo de coroa de espinhos na cabeça e protestar contra tão aviltante reencenação do Pretório de Pilatos? Tal não seria profundamente ridículo? E quão ridículo não é o presente protesto, onde as imagens de Cristo e de Lula são colocadas juntas em uma cruz no meio da rua?
A respeito de Cristo não se pode simplesmente dizer que os judeus não se desincumbiram do ônus de provar a sua acusação; no Gólgota a questão era verdadeiramente fática, constitutiva, substancial — não era uma reles questão procedimental! Transformar a Paixão em uma “condenação sem provas” é de um reducionismo tacanho, verdadeiramente inimaginável em épocas mais civilizadas. Os dias atuais, no entanto, sempre surpreendem em matéria de estupidez.
Os inimigos da Igreja gostam de dizer que a religião aliena, e a frase segundo a qual ela seria o ópio do povo tem cada vez mais se tornado um lugar-comum entre as classes soi-disant pensantes. O que se percebe, no entanto, no dia a dia, é justamente o contrário: não é a Cidade de Deus quem aliena, mas sim a Cidade dos Homens. O que torna o homem alheio à realidade a seu redor não é a religião e sim a ideologia política. A triste cena que ilustre este artigo dá, disso, uma demonstração perturbadora.