A polêmica do dia é esta: Psiquiatras dos EUA aceitam pedofilia como “orientação sexual”. O assunto está correndo a internet. O Constantino também comentou. Parece por demais escancarado para ser verdade. Afinal, do que se trata?
Li o seguinte na ACI Digital:
A Associação Americana de Psiquiatria dos Estados Unidos (APA, por suas siglas em inglês) aceitou dentro da quinta edição do seu Manual de Diagnóstico e Estatística das Desordens Mentais a “orientação sexual pedofílica”, e a diferenciou da “desordem pedofílica”.
Fui procurar. O tal Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders existe. A sua quinta edição foi de fato recém-lançada. Trata-se realmente de um texto de referência da American Psychiatric Association.
Não tive acesso à íntegra do manual na internet, mas encontrei (no site oficial do DSM-5) um documento falando sobre parafilias na nova versão. Lá é realmente dito que a quinta edição do livro traçou uma linha separativa entre comportamento humano atípico e comportamento que causa angústia mental [mental distress] para o indivíduo ou faz com que ele seja uma ameaça séria ao bem-estar físico e psicológico de terceiros. E estabeleceu a diferença entre o comportamento atípico e a doença (possivelmente) decorrente dele:
É uma diferença sutil mas crucial, que torna possível a um indivíduo envolver-se consensualmente em comportamentos sexuais atípicos sem ser inapropriadamente rotulado com um distúrbio mental. Com esta revisão, DSM-5 claramente distingue entre interesses sexuais atípicos e distúrbios mentais envolvendo estes desejos ou comportamentos.
[It is a subtle but crucial difference that makes it possible for an individual to engage in consensual atypical sexual behavior without inappropriately being labeled with a mental disorder. With this revision, DSM-5 clearly distinguishes between atypical sexual interests and mental disorders involving these desires or behaviors.]
E aí começou a brincadeira: masoquismo sexual virou “distúrbio sexual masoquista”, fetichismo virou “distúrbio fetichista”, etc. Finalmente chegamos à cereja do bolo: o que era simplesmente pedofilia (pedophilia) virou “distúrbio pedofílico” (pedophilic disorder).
À primeira vista, portanto, vale tudo o que foi dito acima: a “sutil” mudança objetivava distinguir o comportamento do distúrbio, tornando assim possível a existência de um «desejo ou comportamento» pedofílico que não fosse intrinsecamente doentio. Porém, contudo, todavia, o mesmo documento dedica o parágrafo final a este espinhoso caso, explicando o seguinte:
No caso do distúrbio pedofílico, o detalhe (sic) notável é o que não foi revisado no novo manual. Embora tenham sido discutidas propostas durante o processo de elaboração do DSM-5, os critérios diagnósticos terminaram permanecendo os mesmos do DSM-IV TR. Apenas o nome do distúrbio será mudado de pedofilia para distúrbio pedofílico, a fim de manter a consistência com [a nomenclatura adotada n]os outros itens do capítulo.
[In the case of pedophilic disorder, the notable detail is what wasn’t revised in the new manual. Although proposals were discussed throughout the DSM-5 development process, diagnostic criteria ultimately remained the same as in DSM-IV TR. Only the disorder name will be changed from pedophilia to pedophilic disorder to maintain consistency with the chapter’s other listings.]
Note-se, portanto, a gambiarra: fez-se uma revisão completa no conceito de parafilias, a fim de distinguir entre o “comportamento atípico” e o distúrbio que o envolve. Para expressar essa mudança conceitual, adotou-se uma nova terminologia, transformando a “parafilia X” no “distúrbio X-parafílico”. Única e exclusivamente no caso da pedofilia, mantiveram-se os critérios de diagnóstico da versão anterior (i.e., para ela não vale a distinção recém-introduzida). No entanto, para manter uma nomenclatura padrão, alterou-se o nome da doença de “pedofilia” simpliciter para “distúrbio pedofílico”. Ao contrário de todos os outros casos, aqui esta nova terminologia não significa uma mudança conceitual no distúrbio psicológico.
A emenda saiu pior do que o soneto. É bastante óbvio que se vai questionar este tratamento diferenciado, feito sem o menor rigor científico. Ou pior, estas notas de rodapé serão facilmente ignoradas quando as pessoas começarem a citar e a usar somente a nova nomenclatura, havendo já introjetado a razão da mudança. No fundo, esta tentativa de salvar a credibilidade da psiquiatria ficou patética, e não terá força alguma para conter a revolução moral que já há décadas se lança impetuosa contra o que resta de bom senso na civilização ocidental. A APA não reclassificou a pedofilia como uma “orientação sexual”, mas deu todas as ferramentas para que isso – por engano ou má fé – doravante possa ser facilmente feito.