Muito interessante este artigo do Rodrigo Constantino sobre as crises atuais. Analisando a maneira como o homem moderno encara o mundo ao seu redor, o articulista sentencia:
Somos os herdeiros de uma geração mimada, que colheu os frutos do árduo trabalho de seus pais, acostumados com vidas mais duras, com guerras, com diversas restrições. Essa geração, principalmente na década de 1960 e 70, pensou que bastava demandar, e todos os seus desejos seriam atendidos, sabe-se lá por quem.
A tese não é nova. Ela já se encontra na clássica obra do filósofo espanhol Ortega y Gasset, “A Rebelião das Massas”; curiosamente, o livro foi escrito no final da década de 20 do século passado, mostrando que o fenômeno se encontrava bem delineado já quarenta anos antes do período histórico citado pelo articulista d’O Globo. A análise, não obstante, é precisa. Não creio que tenhamos melhorado muito de lá para cá.
A idéia de que «[o] Estado de bem-estar social criou uma bomba-relógio, mas ninguém quer pagar a fatura» pode parecer catastrofista para alguns, mas esta recusa em aceitar o diagnóstico só reforça a existência da moléstia. Afinal, como diz o Constantino, a crise não é somente econômica, mas também moral; e o desprezo que a sociedade nutre para com os valores que foram fundamentais à sua construção é a característica mais pungente e universal das crises modernas.
Ortega y Gasset não padece das mesmas limitações de espaço que o Constantino na sua coluna de jornal e, portanto, pode se dar ao luxo de ser mais persuasivo. O filósofo espanhol gasta longas páginas para explicar como o homem moderno deixou de se sentir obrigado pelas circunstâncias exteriores – as intempéries da natureza, os conflitos entre os indivíduos e os povos, a penúria e a escassez de recursos, etc. – para se enxergar como um detentor de direitos ilimitados cujo merecimento é pressuposto como se fosse uma lei básica da natureza. Em uma palavra: estamos falando do fenômeno que produz adultos vivendo como adolescentes mimados, incapazes de fazer as coisas por conta própria e acreditando sinceramente que a tudo têm direito, bastando-lhes bater o pé e exigi-lo a plenos pulmões. Mas o alto grau de civilização ao qual fomos capazes de chegar (e que possibilita, sim, alguns benefícios perfeitamente inimagináveis a civilizações passadas) não se sustenta por si só, muito pelo contrário: exige o trabalho árduo de homens valorosos que possam mantê-lo. E as atuais circunstâncias nas quais vivemos fazem com que homens assim sejam cada vez mais raros: é a própria civilização que, se mal vivida, enseja e produz a barbárie.
Num tal cenário, são em princípio bem-vindas todas as iniciativas que intentem chamar a atenção para os riscos que corremos, por impopulares que sejam. Mas temo que elas caiam na irrelevância exatamente por pintarem um quadro demasiado tétrico, excessivamente indigesto à sensibilidade moderna. Como – a comparação é-me inevitável – o homem d’A República de Platão que, tendo saído da caverna para ver o mundo verdadeiro, é tratado com escárnio e hostilidade ao voltar para os seus e lhes contar que eles não vêm senão sombras. Penso que é necessário tomar o devido cuidado para evitar este tipo de reação: afinal de contas, não nos interessa simplesmente que as gerações futuras reconheçam o acerto de nossas análises, interessa-nos oferecer a nossa contribuição para evitar (ou pelo menos minimizar) as agruras que se anunciam no horizonte.
Muita água rolou por debaixo da ponte nesses últimos oitenta anos, e alguém pode dizer que a realidade, no geral, tem se mostrado muito mais aprazível do que os vaticínios feitos há tantas décadas por um espanhol que morreu antes do nascimento dos Beatles; à parte a Segunda Guerra, a tensão que se lhe seguiu e alguns conflitos menores aqui e acolá, o mundo ainda parece ser um lugar bem habitável e não parece que estejamos caminhando rumo à borda do penhasco. Por quê, então, ressuscitar estas teorias ultrapassadas, que o decurso dos anos já demonstrou falsas e excessivamente pessimistas?
De minha parte, eu penso que aqueles princípios estão corretos, mas tão corretos que as únicas tentativas de desmenti-los se dão no campo da casuística seletiva: “isto ainda não aconteceu”, “as coisas não estão tão ruins assim”, “em tais e quais aspectos estamos melhores do que há vinte anos”, et cetera. E, exatamente por isso, penso que é desejável apresentar o discurso sob uma ótica mais propositiva. Eu não sei se o mundo vai se transformar num lugar impossível de se viver (e nem muito menos quando isso se dará); mas sei que ele possui incontáveis problemas que poderiam ser resolvidos se as pessoas tivessem um senso moral mais apurado. Eu não sei se os netos pobres seremos nós ou os nossos filhos; mas sei que diversas coisas foram perdidas ao longo das últimas gerações e recuperá-las vai indiscutivelmente nos enriquecer. Eu não sei quais os limites exatos de flexibilidade moral que uma sociedade pode suportar antes de entrar em colapso; mas sei que existem valores, que eles são uma coisa positiva e, portanto, sempre vale a pena – independente das circunstâncias históricas que nos cerquem – defendê-los e os promover.