* O título deste post não está “errado”, e sim em português arcaico: veja-se, p.ex., Camões n’Os Lusíadas ou estes versos de Nicolau Tolentino de Almeida: «Cuja alma não conhece vís mudanças, / Ou corrão tempestades, ou bonanças».
Todo mundo sabe que o fim do mundo está marcado para este mês e, portanto, qualquer coisa relativamente fora do comum que acontece é apresentada como um dos muitos indícios de que o mundo está acabando mesmo e só não vê quem não quer. Naturalmente, os melhores indícios do Fim são os apresentados em caráter lúdico. A nós, católicos, não interessa a hora exata em que o mundo vai acabar porque todos nós sabemos que podemos morrer a qualquer momento e, portanto, para cada um de nós o Juízo sempre pode ser nos próximos minutos. Mas isto não nos impede de saborear os memes.
Ontem morreu o Oscar Niemeyer, e a já proverbial longevidade do arquiteto carioca era uma piada pronta. Não pude evitar pensar que isto era mais um sinal de que estamos mesmo na iminência do fim do mundo, mas o pior ainda estava por vir. O verdadeiro sinal de que o Armageddon já começou e não nos avisaram é a celebração de uma Missa de corpo presente para o recém-falecido arquiteto ateu!
Ateu! Não estamos falando simplesmente de um “católico não-praticante” ao qual o repentino interesse pelas coisas divinas no ocaso da vida provoca nos céticos uma suspeição de hipocrisia. Muito diferente disso, aqui se trata de um ateu público e convicto! Qual o sentido de que se lhe celebrem exéquias católicas?
Não se trata, absolutamente, de sentenciar o pobre arquiteto a cruzar aquela Porta Terrível que, na Comédia de Dante, manda a todos os que por ela entram deixar fora toda a esperança. É claro que somente Deus é Juiz de todos e, portanto, qualquer pessoa, até mesmo um ateu de carteirinha, pode em princípio ter-se aberto à graça de Deus na hora da morte e partido deste mundo na amizade com Ele. É claro que devemos rezar pela salvação de todos os homens, não-católicos inclusive, cujo destino eterno não conheceremos até o Dia do Juízo Final. É claro que os familiares e amigos – aliás, qualquer pessoa que o deseje – podem rezar a Deus pela alma do Niemeyer: que o Todo Poderoso tenha dele misericórdia.
Acontece que as exéquias católicas são para os católicos, pois assim prescreve o Direito e isto tem uma razão de ser. Com efeito, lemos no Direito Canônico:
Cân. 1184 — § 1. Devem ser privados de exéquias eclesiásticas, a não ser que antes da morte tenham dado algum sinal de arrependimento:
1.° os apóstatas notórios, os hereges e os cismáticos;
2.° os que escolheram a cremação do corpo próprio, por razões contrárias à fé cristã;
3.° os outros pecadores manifestos, aos quais não se possam conceder exéquias eclesiásticas sem escândalo público dos fiéis.
Todo auto-declarado ateu é, por definição, um “apóstata notório”. Quando o ateu, além disso, é uma figura pública que sempre deu claras e ostensivas mostras do seu ateísmo, torna-se um “pecador manifesto” para o qual a celebração de uma Missa de Requiem provoca perplexidade e “escândalo público dos fiéis” – portanto, tal Missa não deveria ser celebrada. A questão aqui não é privar a alma do falecido da – necessária! – misericórdia divina, mas sim demarcar clara e publicamente o abismo que separa a Fé da Incredulidade. Afinal, se o culto público da Igreja de Deus não se destina aos Seus fiéis… o que ele é, então? Se celebram-se missas igualmente por católicos fervorosos e por ateus convictos, como convencer as pessoas de que não se trata de um “evento social” filantrópico qualquer que se realiza para qualquer um e por qualquer motivo? Se um ateu tem direito a uma Missa Pro Defunctis, como evitar que as pessoas percam de vista o significado profundo do Sacrifício Eucarístico?
Houve um tempo em que aos suicidas – mesmo os católicos! – era negada sepultura eclesiástica. E isto nunca teve nada a ver com afirmar a impossibilidade do arrependimento final “entre a ponte e o rio”: Deus sempre foi o único Juiz dos homens! Mas a sepultura da encruzilhada, embora não determine a sorte eterna do que lá jaz, tem um profundo valor catequético para os que cá ficam. Trata-se – como expôs brilhantemente Chesterton – de reconhecer no suicida «um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo». Trata-se simplesmente de testemunhar aos homens como se deve viver. E a morte, ainda que seja uma tragédia, não autoriza ninguém a mitigar a necessária força deste testemunho.
Enfim, está morto Niemeyer: que lhe possa ter valido a Virgem Soberana no instante derradeiro. Mas não nos é lícito pressupô-lo tão ligeira e levianamente, conferindo funerais católicos a quem viveu longamente como inimigo da Igreja. Em suma, que o Altíssimo não nos negue a ninguém a Sua Infinita Misericórdia da qual somos, todos, absolutamente necessitados. Supliquemo-Lha! Mas que isto não se faça às custas de semear o indiferentismo e disseminar ainda mais a confusão entre os homens do nosso tempo, que já vivem suficientemente longe da Igreja de Deus e para a Qual precisam voltar-se muito antes da sua Missa de corpo presente.